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Concertação Administrativa Interorgânica
Concertação Administrativa Interorgânica
Concertação Administrativa Interorgânica
E-book771 páginas10 horas

Concertação Administrativa Interorgânica

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Sobre este e-book

Nesta obra, o autor trata de um dos mais relevantes temas do Direito Administrativo na atualidade: a construção uma dogmática constitucionalmente orientada dos acordos jurídicos entre órgãos despersonalizados, a partir da desconstrução de velhos dogmas da organização administrativa. Segundo afirma José Manuel Sérvulo Correia, catedrático jubilado da Universidade de Lisboa, "Ao revelar um elevado grau de conhecimento da Teoria Geral do Direito Administrativo contemporâneo e a capacidade de o mobilizar na desmontagem de arcaísmos tornados prejudiciais e na construção de novas respostas conformes às diretrizes axiológicas dos nossos dias e a uma dogmática sistemicamente coerente, Eurico Bitencourt Neto coloca-se, a meu ver, na primeira linha da nova geração de cultores do Direito Administrativo no Brasil".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de mai. de 2019
ISBN9788584933044
Concertação Administrativa Interorgânica

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    Concertação Administrativa Interorgânica - Eurico Bitencourt Neto

    Concertação Administrativa

    Interorgânica

    DIREITO ADMINISTRATIVO E ORGANIZAÇÃO NO SÉCULO XXI

    2017

    Eurico Bitencourt Neto

    logoAlmedina

    CONCERTAÇÃO ADMINISTRATIVA INTERORGÂNICA

    DIREITO ADMINISTRATIVO E ORGANIZAÇÃO NO SÉCULO XXI

    © Almedina, 2017

    AUTOR: Eurico Bitencourt Neto

    DIAGRAMAÇÃO: Almedina

    DESIGN DE CAPA: FBA

    ISBN: 978-85-8493-304-4

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)


    Neto, Eurico Bitencourt

    Concertação administrativa interorgânica : direito administrativo

    e organização no Século XXI / Eurico Bitencourt Neto. -

    - São Paulo : Almedina, 2017. Bibliografia

    ISBN: 978-85-8493-304-4

    1. Administração pública - Brasil 2. Direito administrativo

    3. Direito administrativo – Brasil I. Título.

    17-02591 CDU-35


    Índices para catálogo sistemático:

    1. Direito administrativo 35

    Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora.

    Março, 2017

    EDITORA: Almedina Brasil

    Rua José Maria Lisboa, 860, Conj.131 e 132, CEP: 01423-001 São Paulo | Brasil

    editora@almedina.com.br

    www.almedina.com.br

    No Meio do Caminho

    No meio do caminho tinha uma pedra

    tinha uma pedra no meio do caminho

    tinha uma pedra

    no meio do caminho tinha uma pedra.

    Nunca me esquecerei desse acontecimento

    na vida de minhas retinas tão fatigadas.

    Nunca me esquecerei que no meio do caminho

    tinha uma pedra

    tinha uma pedra no meio do caminho

    no meio do caminho tinha uma pedra.

    CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

    À Clara e ao Pedro.

    Eu nunca havia me dado conta, antes de conhecê-los,

    de que há uma lacuna na língua portuguesa:

    amor é pouco para descrever o que sinto por vocês.

    À Luísa, amor, amiga, companheira.

    À memória de Luís Carlos da Costa Novo.

    NOTA DO AUTOR

    O trabalho que agora vem a lume com o prestigiado selo da Editora Almedina corresponde à minha tese de doutoramento intitulada Concertação Administrativa Interorgânica, entregue à Universidade de Lisboa em julho de 2014 e discutida em provas públicas em outubro de 2015 perante o júri formado pelos seguintes Professores Doutores: Pedro Pais de Vasconcelos (presidente), José Manuel Sérvulo Correia (orientador), Maria João Estorninho, David Duarte, Alexandra Leitão e Nuno Cunha Rodrigues, todos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, bem como Licínio Lopes Martins, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Isabel Celeste Fonseca, da Faculdade de Direito da Universidade do Minho.

    Para além dos agradecimentos já registrados no texto da tese, é preciso, nesta altura, manifestar meu reconhecimento a todos os membros do júri que me honraram com a apreciação do texto e, em especial, às arguentes principais, Professora Doutora Alexandra Leitão e Professora Doutra Isabel Celeste Fonseca. Suas intervenções me permitiram esclarecer pontos de dúvida, reforçar convicções e alargar meu campo de reflexões. À Professora Doutora Alexandra Leitão agradeço ainda pelo fato de os ecos de sua arguição me terem suscitado, nos meses que precederam esta publicação, a necessidade de tornar mais sólida a argumentação que sustenta a possibilidade de se firmarem contratos administrativos interorgânicos no âmbito de relações hierárquicas, para admitir, de modo explícito, a suspensão de tais relações nos campos abrangidos pelos referidos ajustes.

    O texto ora publicado corresponde quase que integralmente à tese apresentada, com alterações de pormenor, basicamente de natureza formal ou decorrente de atualização legislativa. A opção pela manutenção da estrutura do texto e das referências bibliográficas utilizadas decorre do reconhecimento de uma obrigação acadêmica de sujeição à comunidade jurídica do produto da investigação que possibilitou ao Autor a obtenção do título de Doutor em Direito.

    AGRADECIMENTOS

    Este trabalho significa a conclusão de um percurso de intenso aprendizado e amadurecimento. E, nele, várias contribuições institucionais e pessoais se devem registrar, a começar pelos apoios financeiros sem os quais teria sido muito difícil concretizar esse projeto. A presente investigação contou, num primeiro momento, com o apoio do Programa Alβan, Programa de bolsas de alto nível da União Europeia para a América Latina, bolsa n. E06D101808BR e, posteriormente, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia de Portugal, bolsa SFRH/BD/43508/2008.

    Uma palavra de especial agradecimento é devida ao Senhor Professor Doutor José Manuel Sérvulo Correia que, desde o primeiro momento, se dispôs a ser o tutor acadêmico, junto ao Programa Alβan, de um casal de brasileiros que mal conhecia. Seu apoio constante, suas lições que conjugam elevada cultura jurídica, precisão analítica e atualidade, bem como seu modo cortês e generoso e seu elevado espírito público constituem exemplo marcante que levarei por toda a vida.

    À Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, agradeço o acolhimento e a oportunidade de fazer parte de um círculo que cultiva as mais nobres tradições da Academia. No âmbito do curso de formação avançada para o doutoramento, agradeço aos Senhores Professores Doutores Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Otero, Jorge Miranda e José de Melo Alexandrino, pelas lições e pelos instigantes debates que me prepararam para os desafios desta investigação e para outros que a vida ainda me proporcionará.

    Ao Senhor Professor Doutor Paulo Otero, ainda mais uma palavra de agradecimento, por me ter mostrado como a crítica pode significar respeito acadêmico e contribuição efetiva para o crescimento pessoal.

    Aos servidores da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, mais especialmente da Biblioteca e do Gabinete de Estudos Pós-Graduados, é necessário um agradecimento particular, pela disponibilidade constante. E, em nome de todos os servidores da Faculdade, registro meu muito obrigado à Dra. Maria José Abreu, pelo carinho e pela amizade.

    Uma palavra de gratidão também deve ser dirigida às senhoras bibliotecárias das Bibliotecas do Tribunal Constitucional e da Procuradoria Geral de Justiça de Portugal, bem como da Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pela disponibilidade e amabilidade em atender às minhas solicitações.

    Àqueles que tiveram sempre gestos ou palavras de incentivo para que se pudesse levar a bom termo essa empreitada é também devido um agradecimento. Especialmente à Professora Doutora Carla Amado Gomes, agradeço o apoio e o estímulo constantes, bem como a amizade generosa. Ainda em Lisboa, à Professora Doutora Ana Fernanda Neves, e, no Brasil, ao Professor Ricardo Arnaldo Malheiros Fiúza.

    Aos caríssimos amigos que fizeram a estada em Lisboa se tornar ainda mais feliz: Marta Luz, Juca, Júlia, Frederico, Maria João, Inês, Bernardo, Marta Alves e o saudoso amigo Luís.

    À família não podem faltar agradecimentos, que se devem a contribuições mais profundas. À minha mãe, que me ensinou a olhar para além das montanhas; ao meu pai, que me tem legado o exemplo de retidão pessoal, de devoção à causa pública e do valor do trabalho; aos meus irmãos, que a cada dia se tornam mais amigos.

    À Cida, meu especial agradecimento pelo inestimável apoio e dedicação à nossa família. Ao José Paulo, por me ter ensinado o caminho de Lisboa. E a ambos por me terem legado amigos especiais.

    Registro, ainda, uma menção saudosa ao meu caríssimo Professor Doutor Paulo Neves de Carvalho, de quem sinto a ausência nesses momentos especiais.

    E, por fim, meu muito obrigado a Portugal e, em particular, à cidade de Lisboa, que me permitiu, como nunca antes, querer tão bem a um lugar.

    PREFÁCIO

    Não têm de se radicar no Direito português e nem sequer no Direito comparado luso – algum outro as teses de doutoramento sustentadas numa universidade portuguesa. O saber é universal e um júri constituído numa das nossas universidades tem de se poder preparar para apreciar uma dissertação radicada noutro Direito nacional – nomeadamente graças ao contributo prestado pelo próprio candidato no domínio da informação necessária. Aquilo que sempre se exigirá – como se exige das teses de Direito português – é que a investigação se tenha integrado num invólucro de teoria geral comum ou multinacional e haja buscado no Direito comparado contrapontos ao instituto que constitui o cerne da investigação.

    É precisamente isso aquilo que sucede com a "Concertação Administrativa Interorgânica" de Eurico Bitencourt Neto, tratada como figura do Direito positivo brasileiro sob a dupla vertente constitucional e administrativa.

    O Autor só se abalança ao trabalho micro-analítico depois de nos ministrar, na Parte I, um excelente retrato do estado do Direito Administrativo contemporâneo. Arguir-se-ia eventualmente que uma tal panorâmica poderia abrir quaisquer monografias dedicadas a temas deste ramo do Direito, revelando-se como apêndice dispensável à parte nuclear e específica da investigação. Não cremos no entanto que essa imaginária crítica fosse justa. Aquelas que nos são apresentadas como características gerais da Administração Pública contemporânea formam um cenário sobre o qual se torna admissível, como realidade dogmática, e inteligível, à luz de uma função própria, o instituto da concertação administrativa interorgânica, considerada como relação entre dois ou mais órgãos administrativos desprovidos de personalidade visando a sua atuação pactuada.

    Uma administração que tenda a reduzir o peso das clássicas funcionalidades policial e prestacional em benefício de um crescente papel infra-estruturante depende cada vez mais de instrumentos de vinculação bi- ou plurilateral que não pressuponham necessariamente a personalidade jurídica das estruturas emparceiradas. A imposição do procedimento como modo geral de ação da Administração Pública conduz à conjugação de instrumentos de carácter organizatório e procedimental e as relações interorgânicas representam um afloramento de tal tendência, dado o seu habitual perfil endoprocedimental. A multipolaridade da atuação administrativa não se confina ao campo externo e a intersetorialidade e a transversalidade no âmbito das pessoas coletivas públicas complexas fazem emergir novas formas de relacionamento jurídico intrasubjetivo. A impregnação do fenómeno administrativo por valores como os da participação, eficiência e proximidade impele no sentido da parcial substituição da organização administrativa piramidal pela organização administrativa em rede. E esta nova fórmula organizatória coloca em inter-relação órgãos destituídos de personalidade. O alargamento do âmbito da contratualização em detrimento da unilateralidade de comportamentos administrativos é também ele uma feição unanimemente reconhecida do Direito Administrativo contemporâneo que teve entre outros efeitos o da remoção de obstáculos não só, num primeiro momento, à contratação inter-administrativa, mas, também, a fórmulas (a que em Portugal reconhecemos, ao menos em parte, natureza contratual) de coordenação e colaboração concertada entre órgãos da mesma pessoa coletiva. Um outro dado relevante para a compreensão do Direito Administrativo dos nossos dias é, por seu turno, a consolidação da eficiência não apenas como valor, mas princípio normativo suscetível de assumir em certos contextos o papel de parâmetro invalidante ou, ainda que mais dificilmente, de objeto de direito subjetivo público, específico ou diluído no direito à boa administração. Mas, sintetizando-se a eficiência (como faz Bitencourt Neto) na … vinculação da Administração Pública a um dever de atuar de modo célere, com a otimização de meios e recursos, para realizar adequadamente os resultados normativamente fixados, a sua consecução em face da pluralidade material interna e da correspondente estruturação orgânico – subjetiva plural e multinível exige fórmulas de conciliação de interesses públicos libertas de peias concetuais desmentidas pela evolução da praxis. Fica assim demonstrada pelo Autor a correspondência da nova figura da concertação administrativa interorgânica com múltiplas coordenadas do Direito Administrativo contemporâneo. Na sua dupla essência procedimental e material, a concertação interorgânica reflete uma Administração Pública cuja unidade já não assenta principalmente em elos organizatórios de concentração hierárquica, mas antes em veículos procedimentais inter- e intra-administrativos de harmonização de interesses graças à atuação concertada de órgãos portadores de competências repartidas em razão da matéria.

    Bitencourt Neto demonstra que a Constituição Brasileira consagra um imperativo geral de Administração Pública participativa sob uma dupla perspetiva externa e interna. A nível da União, a competência de coordenação dos Ministros de Estado pressupõe a pluralidade dos órgãos dirigidos e a dos interesses públicos que prosseguem. Assim sendo, a substancialidade das competências dos diversos órgãos coordenados indica a necessidade da respetiva participação na formação das decisões complexas dos órgãos coordenadores. Deixando de lado as relações inter-pessoais (ou seja, entre entes públicos distintos), o Autor enfrenta o fenómeno das relações interorgânicas, intra- ou inter-administrativas, de mais difícil inventariação através de uma análise jurídica rigorosa. Penetra-se assim numa realidade ainda insuficientemente tratada no âmbito da doutrina administrativista comparada: a consideração dos órgãos públicos como centros de imputação, dotados de capacidade jurídica parcial. Para o Autor, a negação da admissibilidade das relações jurídicas interorgânicas constitui uma remanescência de uma fase ultrapassada na evolução do Direito Administrativo, em que se sobrepunha a unidade formal da pessoa coletiva à pluralidade material dos interesses subjacentes às competências de diversos órgãos e à necessidade de imputar distintas situações jurídicas no âmbito de uma mesma entidade. Hoje, porém, sem prejuízo da relevância da personalidade coletiva do Estado e de outros entes administrativos como nexo de imputação de efeitos jurídicos, há que reconhecer modulações no tocante à capacidade jurídica de estruturas internas servidoras de interesses públicos diferenciados. Como afirma Bitencourt Neto, merece atenção … a relevância acrescida que os órgãos têm no Direito Administrativo, em relação ao Direito Privado, tendo em conta a pluralidade e complexidade decorrentes da prossecução de múltiplos e concorrentes interesses públicos.

    O Autor não labora no puro campo das abstrações rarefeitas, antes identificando e analisando diversas manifestações de uma opção constitucional brasileira pelo reconhecimento de órgãos públicos dotados, como centros de imputação, de capacidade jurídica parcial.

    Para Bitencourt Neto, a administração concertada é um fenómeno mais amplo do que o da contratualização da atividade administrativa. Assenta este entendimento na distinção entre o uso de contratos e de outros instrumentos insuscetíveis de ser reconduzidos ao conceito clássico de contrato. A busca de acordo e consenso como novos modos de legitimação da atuação administrativa envolve o recurso a acordos, pactos ou convénios. Este é um ponto relativamente ao qual admitimos que as qualificações possam variar entre as diversas ordens jurídicas por razões que excedam as puras preferências nominalistas em razão de se prenderem com diferenças na construção normativa dos institutos jurídicos. Em Portugal, o Código Civil acolhe um conceito amplo de contrato que dispensa o caráter patrimonial do objeto, pelo que nos não parece que a distinção entre contrato administrativo e acordo ou convénio se justifique sempre que esteja em causa a produção de efeitos vinculantes para os que estipulam. Aquilo que importa é que, de declarações de vontade concordantes proferidas na prossecução de interesses distintos, resultem vinculações jurídicas. Teremos, pois, contratos administrativos quando a concertação intra-administrativa se mostre idónea para constituir efeitos materialmente próprios do Direito Administrativo e vinculativos para os que entram em concertação.

    Do ponto de vista do Direito brasileiro, é, a nosso ver, de particular importância o tratamento dado nesta obra à figura da concertação administrativa interorgânica no tocante quer à sua habilitação constitucional quer à tipificação de alguns dos seus instrumentos mais em evidência. A par do imperativo de existência de uma base legislativa, o Autor identifica toda uma série de fundamentos constitucionais para a instituição legislativa de instrumentos de concertação administrativa interorgânica. Mas a Lei federal nº 9.784, de 1999, que regula o processo (procedimento) administrativo no âmbito da Administração Pública federal, não prevê instrumentos de concertação interorgânica. Estes afloram portanto no ordenamento de modo ainda incipiente, assistemático e nem sempre admissível. Por vezes, não ultrapassam a natureza de atuação informal da Administração. De outras, uma base normativa infralegislativa justifica dúvidas de legalidade. Em outros casos, por fim, a base legislativa existe, designadamente no campo da atividade regulatória.

    Ao longo da evolução do Direito Administrativo, é uma constante a resistência de setores importantes da doutrina à aceitação de institutos que se desenham na praxis e através da legislação avulsa e que, apesar de justificáveis à luz de princípios fundamentais e de corresponderem a novas necessidades, obrigam a uma revisão concetual mais ou menos profunda. Assim sucede ainda hoje, por parte de alguns quadrantes doutrinários, quanto à admissibilidade das relações jurídicas entre órgãos desprovidos de personalidade jurídica. A isto responde-se com a reivindicação da licitude da concertação informal nos casos de ausência de meios legislativamente instituídos para concretizar, à luz das circunstâncias concretas, tarefas fundamentais da Administração. Por outro lado, representará um esforço não só contraprodutivo mas estéril contestar a substituição, decidida no âmbito da competência do superior hierárquico, de certos poderes de comando unilateral por uma programação de controle pactuada. A contratualização de resultados através dos chamados contratos internos veio, com o seu crescente sucesso, demonstrar no Brasil a inanidade de sobrepor à jurisprudência dos interesses uma jurisprudência dos conceitos cega à necessidade funcional de imputar relações jurídicas pactuadas a estruturas operativas para o efeito destacadas da pessoa coletiva como um todo.

    Mas a concertação administrativa interorgânica não assume exclusivamente perfil contratual em sentido amplo, centrado na reciprocidade entre as vinculações assumidas pelos órgãos participantes em prossecução de finalidades autónomas. Expoente de uma outra modalidade é a conferência de serviços, originária do Direito italiano (conferência procedimental em Portugal), já introduzida no Brasil pelo menos através da legislação de Minas Gerais. Trata-se de um subprocesso administrativo, intercalado em outro ou outros processos administrativos principais, a fim de concentrar numa única competência (individual ou coletiva) as competências de diversos órgãos chamados a intervir na conformação de uma situação jurídica administrativa complexa, ou de conjugar o simultâneo exercício plural de tais competências em termos compatíveis. Através deste procedimento, os órgãos administrativos participantes não se obrigam mutuamente com assunção de vinculações sinalagmaticamene entrecruzadas. Trata-se antes de acertar previamente o conteúdo do exercício unilateral das diversas competências por modo a regular uma situação complexa de maneira sincrónica e desprovida de contradições. O objetivo é o de simplificar e acelerar a regulação de situações nas quais a multiplicidade das competências envolvidas e dos interesses a estas subjacentes torna problemática a satisfação do direito à boa administração. O exame da disciplina da figura da conferência procedimental no Direito comparado evidencia que ela se forma de uma tessitura de situações jurídicas ativas e passivas dos órgãos envolvidos, mas não da constituição de vinculações justiciáveis entre eles.

    Uma outra modalidade de concertação administrativa interorgânica que não escapa à análise minuciosa de Bitencourt Neto é a do funcionamento de órgãos colegiados constituídos por outros órgãos administrativos que, no respetivo âmbito, curem de interesses públicos parcelares. E, por fim, é a concertação substitutiva de procedimentos sancionatórios através da pactuação do ajustamento de modos de atuação desconformes com o ordenamento jurídico que, frequente na legislação dos Estados federados brasileiros, demonstra as virtualidades da concertação interorgânica e o irrealismo da negação da sua viabilidade jurídica.

    A presente obra carateriza-se em suma por eleger como objeto um instituto nascente do Direito Administrativo, por examinar detidamente as suas manifestações ainda carecidas de um aparelho normativo expressamente votado à sua sistematização, por mostrar como elas correspondem apesar disso às linhas estruturantes do Direito Administrativo contemporâneo (excelentemente retratadas), por tentar, em termos não insuscetíveis de controvérsia mas nem por isso menos esclarecedores, a sua categorização em torno das noções de ato unilateral, contrato e acordo administrativo, e, finalmente, empreender um esforço dogmático de balisamento através de requisitos de validade.

    Ao revelar um elevado grau de conhecimento da Teoria Geral do Direito Administrativo contemporâneo e a capacidade de o mobilizar na desmontagem de arcaísmos tornados prejudiciais e na construção de novas respostas conformes às diretrizes axiológicas dos nossos dias e a uma dogmática sistemicamente coerente, Eurico Bitencourt Neto coloca-se, a meu ver, na primeira linha da nova geração de cultores do Direito Administrativo no Brasil.

    JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA

    Professor catedrático jubilado da Faculdade

    de Direito da Universidade de Lisboa

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO

    1. Justificativa do objeto

    2. Delimitação do objeto

    3. Metodologia e plano de investigação

    PARTE 1 – ENQUADRAMENTO HISTÓRICO

    CAPÍTULO 1 – ESTADO CONSTITUCIONAL E EXERCÍCIO AUTORITÁRIO DAS COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS

    1. Estado liberal

    1.1. Administração agressiva e Direito Administrativo autoritário

    1.2. Personalidade jurídica do Estado

    1.3. Teoria do órgão

    1.4. Impermeabilidade jurídica do Estado

    2. Estado autoritário de perfil social

    CAPÍTULO 2 – ESTADO CONSTITUCIONAL E EXERCÍCIO DEMOCRÁTICO DAS COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS

    1. Estado de Direito democrático e social

    1.1. Características centrais

    1.1.1. Juridicidade

    1.1.2. Democracia

    1.1.3. Socialidade

    2. Administração Pública contemporânea

    2.1. Características gerais

    2.1.1. O caráter infraestrutural da atuação administrativa

    2.1.2. A procedimentalização da atuação administrativa

    2.1.3. A multipolaridade da atuação administrativa

    2.1.4. A organização administrativa em rede

    2.1.5. A difusão de formas contratualizadas de atuação administrativa

    2.1.6. A vinculação a um imperativo de eficiência da atuação Administrativa

    2.2. O legado da organização administrativa liberal

    2.2.1. O regime da função pública

    2.2.2. A unidade da Administração Pública

    2.2.3. A desvalorização do fenômeno procedimental

    2.2.4. A dificuldade de aceitação da figura da Administração Contratante

    PARTE 2 – ENQUADRAMENTO DOGMÁTICO-CONSTITUCIONAL

    CAPÍTULO 1 – CONCEITO DE CONCERTAÇÃO ADMINISTRATIVA INTERORGÂNICA

    1. Noção de concertação

    1.1 Considerações gerais

    1.2 Principais concepções

    2. Delimitação conceitual

    2.1. Concertação interadministrativa

    2.2. Concertação entre órgãos despersonalizados e particulares

    2.3. Concertação interorgânica fora da função administrativa

    2.4. Concertação administrativa interorgânica informal ilícita

    2.5. Contatos interorgânicos sem acordo

    3. Síntese

    CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTOS DA CONCERTAÇÃO ADMINISTRATIVA INTERORGÂNICA

    1. Pluralidade material interna da Administração Pública

    1.1. Enquadramento teórico

    1.2. Enquadramento constitucional

    2. A consideração dos órgãos públicos como centros de imputação dotados de capacidade jurídica parcial

    2.1. Enquadramento teórico

    2.1. Enquadramento constitucional

    3. Administração concertada

    3.1. Enquadramento teórico

    3.2. Enquadramento constitucional

    4. A admissão de autovinculação administrativa concertada

    4.1. Enquadramento teórico

    4.2. Enquadramento constitucional

    5. Administração em rede

    5.1. Enquadramento teórico

    5.2. Enquadramento constitucional

    6. Administração procedimentalizada

    6.1. Enquadramento teórico

    6.2. Enquadramento constitucional

    7. Administração eficiente

    7.1. Enquadramento teórico

    7.2. Enquadramento constitucional

    CAPÍTULO 3 – INSTRUMENTOS DA CONCERTAÇÃO ADMINISTRATIVA INTERORGÂNICA

    1. Considerações gerais

    1.1. Habilitação constitucional

    1.2. Exemplos em sistemas estrangeiros

    2 Direito positivo brasileiro

    2.1. Âmbito da União Federal

    2.2. Âmbito dos Estados Federados

    3 Enquadramento sistemático

    3.1. Acordos informais

    3.1.1. Atuação administrativa informal: generalidades

    3.1.2. Exemplos de acordos informais

    3.1.2.1. Contatos interorgânicos

    3.1.2.2. Instrumentos de concertação instituídos por normas infralegais

    3.2. Contratos internos

    3.3. Concertação procedimental terminativa

    3.4. Concertação em órgãos colegiados

    3.5. Concertação substitutiva de procedimentos sancionatórios

    CAPÍTULO 4 – NATUREZA DA CONCERTAÇÃO ADMINISTRATIVA INTERORGÂNICA

    1. Considerações gerais

    2. Concertação administrativa interorgânica e contrato

    2.1. Considerações gerais

    2.2. Contratos internos

    2.3. Concertação procedimental terminativa

    2.4. Concertação substitutiva de procedimentos sancionatórios

    3. Concertação administrativa interorgânica e acordo administrativo

    4. Concertação administrativa interorgânica e ato administrativo

    CAPÍTULO 5 – REQUISITOS PARA A CONCERTAÇÃO ADMINISTRATIVA INTERORGÂNICA

    1. Considerações iniciais

    2. Requisitos decorrentes do princípio da legalidade

    2.1. Competência

    2.2. Forma

    2.3. Finalidade

    3. Requisitos decorrentes do princípio da eficiência

    4. Requisito decorrente do princípio da imparcialidade

    CONCLUSÕES

    REFERÊNCIAS

    Introdução

    1. Justificativa do objeto

    As últimas décadas têm revelado a consolidação de alguns importantes vetores de transformação da Administração Pública e do Direito Administrativo, já se podendo, ao menos em linhas gerais, identificar a face com que se apresentam neste início de século, especialmente nos países da família jurídica romano-germânica. Tal feição contemporânea deixa ver vários pontos em comum em distintos ordenamentos nacionais, como consequência da intensificação de um processo de globalização, que tem difundido novos modos de organização e funcionamento da Administração em todos os quadrantes¹. E, no âmbito da União Europeia, se tem desenvolvido a partir de um processo complexo de influências recíprocas entre os ordenamentos nacionais e o comunitário.

    Compõem essa expressão da Administração Pública e do Direito Administrativo do século XXI, especialmente: a perda do monopólio do ato administrativo unilateral como modo normal de atuação administrativa; a compreensão do Direito Administrativo como direito da cidadania, mais que do poder; o crescimento de um modo de atuação administrativa prospectiva, infraestrutural e reguladora; a valorização do procedimento administrativo; a contratualização da atuação administrativa; a difusão de formas de organização administrativa em rede; a multilateralidade de muitas das relações administrativas; a vinculação da atuação administrativa a um imperativo de eficiência; a crise do princípio da territorialidade e da nacionalidade como âmbito de incidência do Direito Administrativo, com a emergência de um Direito Administrativo global e a consolidação de um Direito Administrativo europeu.

    Não obstante o amplo leque de transformações, ainda se pode identificar, especialmente no campo da organização administrativa, um poderoso legado do Direito Administrativo liberal, cujas raízes ainda se mostram sólidas, como a confirmar a vetusta fórmula de Otto Mayer de que o Direito Constitucional passa, o Direito Administrativo permanece. Embora se deva reconhecer que, aqui e acolá, o novo Direito Administrativo convive com o velho Direito Administrativo², não se pode deixar de assinalar que a afirmação de Mayer não resiste ao tempo: "os direitos constitucional e administrativo ‘passam’ em face da emergência de novos elementos e mecanismos de evolução da moderna sociedade"³.

    Embora devam passar, seguindo os passos de um constitucionalismo já sepulto, ainda teimam em permanecer, no âmbito da organização administrativa, fragmentos da noção de impermeabilidade do Estado, couraça doutrinária que impediu o campo de atuação interna da Administração Pública de receber os influxos da legalidade, a par de ecos de uma concepção antropomórfica da personalidade do Estado e de uma construção monolítica da unidade da Administração.

    Daí que o desenvolvimento da dogmática jurídica da organização e dos modos de atuação da Administração Pública se vê constrangido pelo legado liberal, que se pode sentir com força, por exemplo, no Direito Administrativo brasileiro: a) no Direito da função pública, com a dificuldade em se admitir sua contratualização⁴ e, por consequência, de se formalizarem procedimentos de negociação coletiva⁵, bem como na sobrevivência da teoria das relações especiais de sujeição⁶; b) na concepção conservadora de uma unidade granítica da Administração, que desvaloriza a pluralidade material interna e mantém um modelo bonapartista ⁷ de organização administrativa, fortemente hierarquizada, que convive com uma visão da personalidade do Estado incapaz de reconhecer a autonomia dos órgãos públicos; c) na desvalorização do procedimento administrativo, ao expressar uma feição quase que exclusivamente processualizada, que se concentra em sua vertente de proteção do cidadão contra agressões do poder público⁸, subestimando suas múltiplas virtualidades na Administração contemporânea; d) na dificuldade que, ainda hoje, parte da doutrina tem em aceitar o uso do contrato pela Administração Pública, chegando-se ao extremo de negar a hipótese de a Administração celebrar quaisquer contratos⁹.

    Apesar da persistência de tais influxos do Direito Administrativo novecentista, a Administração Pública, como realidade dinâmica e adaptável às novas necessidades de uma organização social em transformação, não se deixa aprisionar por velhos dogmas e tem revelado novos modos de se organizar e de atuar, que não têm sido acompanhados de perto pela dogmática jusadministrativista. Entre essas transformações, a que nesta oportunidade releva são os novos modos de relacionamento interno entre os órgãos administrativos, em especial, a proliferação de pactos e acordos entre órgãos públicos despersonalizados.

    Já não é novidade o reconhecimento de relações jurídicas interorgânicas¹⁰, chegando-se a afirmar que se trata de um dos problemas mais importantes do Direito Administrativo moderno¹¹. Além disso, o Estado de Direito, caracterizado como pluriclasse¹², não apenas tolera distintos e conflitantes interesses, mas se organiza para, por meio de um complexo aparato de órgãos, prosseguir múltiplos e muitas vezes contrapostos interesses públicos¹³, implicando a quebra da unidade material interna da Administração.

    Os grandes traços característicos da Administração contemporânea têm ampliado as virtualidades da organização administrativa e trazido novos desafios à dogmática do Direito Administrativo, em especial no que toca à profusão de acordos interorgânicos que têm marcado muitos dos novos modos de atuação administrativa, visando, em especial, à eficiência. De um mundo a que o Direito era indiferente para um novo campo de experimentações com relevantes implicações jurídicas, de que é exemplo a contratualização de resultados, travada no seio da Administração, em acordos aplicados em diversas ordens jurídicas nacionais¹⁴, a atividade administrativa interna está sob holofotes.

    Para além das novas formas de gestão, como no caso dos contratos internos, a atividade concertada no interior da Administração se manifesta de inúmeras maneiras, como nas diversas espécies de acordos interorgânicos procedimentais, de que é exemplo marcante a conferência de serviços italiana¹⁵, que tende a ser aplicada em outros ordenamentos por suas múltiplas virtualidades¹⁶, ou no âmbito de instrumentos concertados substitutivos de procedimentos sancionatórios, como o termo de ajustamento de conduta previsto na Lei de Ação Civil Pública brasileira¹⁷.

    Também constituem exemplo de ação concertada os consensos havidos no seio de órgãos colegiados formados por representantes de órgãos singulares que titularizam interesses públicos que devem ser ponderados, para além de um largo campo de acordos informais¹⁸, que buscam uma atuação pactuada, especialmente em atividades administrativas transversais e de organizações administrativas em rede.

    Não se pode, portanto, desconhecer a proliferação de inúmeros modos de atuação consensual entre órgãos despersonalizados, que se inserem em um movimento mais amplo que se pode chamar Administração concertada ou consensual¹⁹, em que a atuação unilateral, impositiva, vai cedendo espaços para uma atividade pactuada, seja com particulares, seja no próprio interior do aparato administrativo. Esta é uma realidade inafastável das vistas do jusadministrativista contemporâneo.

    Apesar de se tratar de matéria de vivo interesse na atualidade e de compor um espaço cada vez mais alargado no âmbito da atuação administrativa interna, a concertação administrativa interorgânica ainda permanece ao largo das principais considerações doutrinárias. Se os contratos sobre o exercício de poderes públicos e os contratos interadministrativos, novos veios da Administração consensual, com espectro de incidência mais amplo, têm merecido tratamento monográfico²⁰, o mesmo não se pode dizer da concertação interorgânica, como fenômeno particularizado no âmbito dos modos de atuação administrativa.

    O tratamento jurídico-dogmático da concertação administrativa interorgânica, se deve levar em conta as características gerais do Direito Administrativo de nosso tempo e, dentro delas, aquelas que se referem especialmente à atividade interna da Administração, não se pode fazer sem ter em conta um referencial normativo positivo. Em outras palavras, se é preciso traçar um cenário da Administração de nossos dias e de grandes traços do Direito Administrativo generalizáveis em um conjunto de ordenamentos nacionais, é indispensável ter como referência principal um determinado ordenamento jurídico para balizar uma análise dogmática de tal fenômeno, já que podem ser distintos os regimes jurídico-positivos aplicáveis a instrumentos semelhantes.

    E, nesse caso, o ordenamento jurídico de referência, para a análise dogmático-constitucional da Parte II da presente dissertação, é o brasileiro, o que se explica, sem maiores dificuldades, pela nacionalidade do autor e pelo fato de nele estarem presentes as características da Administração contemporânea, embora os instrumentos de concertação interorgânica ainda tenham papel secundário nas cogitações do Direito Administrativo. As grandes linhas argumentativas partem de uma construção doutrinária comum ao espaço jurídico euro-atlântico, seja pela origem comum do Direito Administrativo material, seja pelas semelhanças verificadas entre instrumentos de pactuação interorgânica.

    Assim, se há uma referência nacional para o tratamento dogmático-constitucional, indicando uma dimensão jurídico-positiva da presente investigação, muito da análise se pode generalizar no âmbito dos vários ordenamentos jurídicos nacionais que expressam a nova face da Administração Pública e do Direito Administrativo neste início de século, o que demonstra sua dimensão teórica.

    Daí que, devidamente consideradas: a) a relevância que assumem, na Administração Pública contemporânea, os diversos modos de acordos celebrados no âmbito intestino da Administração Pública, entre órgãos despersonalizados; b) a prevalência de alguns dogmas do passado no seio do Direito da organização administrativa; c) a ausência de tratamento sistêmico das relações interorgânicas e, particularmente, dos modos de concertação interorgânica, em monografias especializadas de Direito Administrativo; d) no caso do Direito brasileiro, a resistência da doutrina em admitir a existência de relações interorgânicas²¹ e, muito mais, de acordos interorgânicos juridicamente vinculantes, o que se pode exemplificar pelo mal-estar que tem causado a expressa previsão constitucional de contratos entre órgãos, nos termos do art. 37, § 8º, da Constituição²²; tudo isso considerado, pode-se concluir que o tema da concertação administrativa interorgânica se reveste de relevância, de atualidade e de singularidade no quadro do Direito Administrativo, em especial o de língua portuguesa e, mais especificamente, o brasileiro.

    Relevância, pela constatação de que a concertação administrativa interorgânica se tem difundido em diversas experiências nacionais, em múltiplos instrumentos, sendo os polêmicos acordos internos para definição de metas de desempenho e ampliação de autonomia um exemplo marcante de uma nova forma de programação de relações hierárquicas. Atualidade, já que a concertação administrativa interorgânica tem estado no centro da nova face da Administração Pública, atuando como elemento de articulação e coordenação de uma organização plural, muitas vezes em rede, podendo-se dizer, também no âmbito das relações interorgânicas, que um modelo de negociação e concertação constitui mecanismo ordinário de coordenação, ao lado do modelo hierárquico²³. E singularidade, já que não se tem notícia, na literatura especializada de língua portuguesa, de um tratamento sistêmico dos fundamentos, dos instrumentos, dos regimes, da natureza e dos requisitos da concertação administrativa interorgânica.

    2. Delimitação do objeto

    A concertação, como processo decisório próprio do Estado de Direito democrático e social, se manifesta de diferentes maneiras, de acordo com as funções desempenhadas pelo Estado, tendo em conta os conflitos de interesses que marcam as sociedades pluralistas²⁴. E, como tal, num sentido alargado, a concertação, como modo de atuação do Estado, se manifesta em distintos campos, com o das relações internacionais, o das relações no espaço europeu, nos quadros de uma Administração composta²⁵, ou o das relações econômicas e sociais, entendida como um método de governar²⁶, em que o Estado atua na busca de consensos com os diversos corpos sociais, como é o caso da concertação no âmbito das relações de trabalho.

    A concertação, como processo decisório do Poder Público, pressupõe o reconhecimento e a consideração de diversos interesses, potencialmente conflitantes e, como tal, propõe a negociação e a pactuação como modos de atuação. Assim, num Estado pluriclasse e num ambiente de múltiplos interesses públicos, a concertação é alternativa à imposição, como meio de exercício das atribuições estatais.

    No âmbito da função administrativa, fala-se em Administração concertada para designar um modo de atuação por meio do consenso e da produção de acordos²⁷. Mas tal noção ultrapassa o objeto de investigação, na medida em que a Administração concertada alcança três campos de incidência: a) a concertação com particulares, que, em geral, conduzem a uma Administração contratual; b) a concertação entre entidades públicas, seja no âmbito de relações federativas, seja no campo da coordenação de entidades instrumentais; c) a concertação interorgânica, envolvendo ajustes entre órgãos despersonalizados.

    Assim, sob o ponto de vista das partes envolvidas na concertação, o objeto de investigação se limita aos acordos entre órgãos públicos despersonalizados e, mais especificamente, entre órgãos públicos pertencentes à mesma pessoa jurídica. Em outras palavras, a concertação administrativa interorgânica de que se trata nesta oportunidade é a aquela travada no interior das pessoas jurídicas estatais.

    Como já referido, a expressão Administração concertada é utilizada, em geral, com o mesmo sentido de Administração consensual, significando o uso de instrumentos pactuados, em alternativa a uma atuação administrativa unilateral. Não obstante, tendo em vista a multiplicidade de instrumentos que podem compor esse campo de atuação administrativa, formais e informais e o uso alargado que a expressão concertação permite²⁸, revela-se a dificuldade em construir um conceito universal de concertação administrativa e, mais especificamente, de concertação administrativa interorgânica, agora tendo em vista relações internas, operativo na dogmática do Direito Administrativo.

    Daí que a utilidade de um conceito de concertação administrativa interorgânica, no âmbito desta dissertação, está ligada à sua vinculação a um dado sistema jurídico positivo, no caso, o brasileiro, ainda que se devam indicar traços generalizáveis no âmbito de uma Teoria Geral do Direito Administrativo. Em outras palavras, mesmo tendo em conta que o fenômeno da concertação administrativa é decorrência de transformações na Administração Pública e no Direito Administrativo, que, com algumas distinções, se encontram, de modo geral, em boa parte dos Estados ocidentais contemporâneos, a identidade própria dos sistemas jurídicos e dos ordenamentos constitucionais indica a necessidade de se obter um conceito de concertação administrativa interorgânica que, refletindo os traços generalizáveis de uma cultura jusadministrativa comum, se amolde nas balizas de um dado ordenamento constitucional positivo.

    Assim, em termos provisórios, já que o conceito de concertação administrativa interorgânica será referido em Capítulo próprio, na abertura da Parte II, relativa ao enquadramento dogmático-constitucional, pode-se dizer que a concertação administrativa interorgânica, objeto de análise nesta dissertação, consiste na relação entre dois ou mais órgãos administrativos despersonalizados, visando a uma atuação pactuada.

    3. Metodologia e plano de investigação

    O estudo que se segue parte de algumas ideias gerais: a) as formas concertadas de atuação da Administração Pública têm se intensificado, alcançando, para além de suas relações externas, o núcleo da atividade administrativa interna; b) tal fenômeno está diretamente conectado com os grandes traços da Administração contemporânea; c) o enquadramento dogmático da concertação administrativa interorgânica tem esbarrado em alguns postulados oriundos do período liberal; d) faz-se necessária uma análise das relações administrativas internas em perspectiva constitucional, a fim de que se possam estruturar as amarras dogmáticas da concertação administrativa interorgânica.

    Assim, o trabalho tem como pano de fundo a identificação das linhas gerais de evolução da Administração Pública e do Direito Administrativo, dos pontos críticos que o legado da Administração liberal cria para a evolução da dogmática das relações interorgânicas concertadas, para, posteriormente, utilizado o ferramental adequado da Teoria Geral do Direito Administrativo, apontar os fundamentos, os instrumentos, os regimes gerais, a natureza e os requisitos da concertação administrativa interorgânica, tendo como matéria de análise um determinado sistema jurídico-constitucional, no caso, o brasileiro.

    É preciso ter em conta que a análise das questões relativas à atividade interna da Administração Pública e, especialmente, às relações concertadas entre órgãos públicos, não se pode fazer apenas em nível infraconstitucional. A compreensão da realidade subjacente à organização e ao funcionamento da Administração, incluída aí sua manifestação interna, somente será possível partindo de sua dimensão constitucional e, sendo a Constituição o elemento unificador do sistema jurídico, é a partir dela que se deve proceder à análise da realidade administrativa em termos jurídico-dogmáticos²⁹.

    Daí que a investigação parte, inicialmente, de uma dimensão geral da evolução da Administração Pública e do Direito Administrativo, desde a moderna consagração do Estado de Direito, passando pelos traços gerais de suas transformações num período de formação de um Estado assistencial, embora autoritário, até a consolidação do Estado de Direito democrático e social, no segundo pós-guerra. E, neste paradigma, registra-se um primeiro momento de Administração prestadora e uma fase subsequente, que corresponde aos nossos dias, em que se podem identificar manifestações de Administração reguladora ou de garantia.

    Esse pano de fundo permite constatar profundas alterações na estrutura orgânica da Administração Pública e, por consequência, do Direito Administrativo, para adaptá-los a novas exigências e a desafios acrescidos. E, ao lado desse cenário efervescente, é necessário identificar algumas cunhas do velho Direito Administrativo, no âmbito da organização administrativa, que aumentam as dificuldades de articulação dos postulados tradicionais com as novas formas de atuação administrativa.

    Este é o cenário, construído a partir de traços generalizáveis da evolução da Administração em distintas realidades nacionais, a partir do qual se pode passar a uma dimensão jurídico-positiva da investigação, a partir da eleição de um determinado sistema normativo para, a partir das grandes linhas constitucionais relativas à organização e ao funcionamento da Administração Pública, analisar a sua incidência sobre os modos de concertação administrativa interorgânica e, em seguida, alinhavar os traços gerais de seu enquadramento jurídico-dogmático.

    O desenvolvimento do trabalho parte, então, da ideia geral segundo a qual a Administração interna tem passado por profundas transformações, desde o tempo em que era desconsiderada pelos juristas, até este início de século, no bojo das transformações gerais da Administração Pública, e a concertação administrativa interorgânica é uma das faces visíveis dessa transformação. Para além disso, a relevância dessa manifestação administrativa postula a estruturação de seu enquadramento dogmático-constitucional, sem o que continuará à margem das principais cogitações dos juristas, atuando em campo quase franco, sob o rótulo genérico e impreciso de Administração informal³⁰.

    Assim, o objetivo geral da presente investigação é, partindo dos traços gerais da Administração contemporânea e seus reflexos no Direito Administrativo, especialmente no âmbito das relações internas, proceder a um enquadramento dogmático-constitucional dos modos de concertação administrativa interorgânica, tendo como supedâneo o ordenamento jurídico brasileiro.

    E tal tarefa se estrutura num plano de investigação estruturado em duas grandes partes: a Parte I, relativa ao Enquadramento Histórico, composta de dois capítulos: o Capítulo I, denominado Estado Constitucional e Exercício Autoritário das Competências Administrativas, que envolve o período do Estado liberal e o que se optou por designar Estado autoritário de perfil social, para distinguir os vários regimes autoritários que mantiveram aparatos de assistência social do verdadeiro perfil do Estado social de Direito. E o Capítulo II, nomeado Estado Constitucional e Exercício Democrático das Competências Administrativas.

    A Parte II trata do Enquadramento Dogmático-Constitucional e é composta de cinco capítulos: o Capítulo I, sobre o Conceito de Concertação Administrativa Interorgânica; o Capítulo II, que trata dos Fundamentos da Concertação Administrativa Interorgânica; o Capítulo III, relativo aos Instrumentos da Concertação Administrativa Interorgânica; o Capítulo IV, intitulado Natureza da Concertação Administrativa Interorgânica; e, por fim, o Capítulo V, que cuida dos Requisitos para a Concertação Administrativa Interorgânica. Por fim, são articuladas as conclusões gerais que desta investigação se puderam extrair.

    -

    ¹ Um exemplo de adoção de formas semelhantes de organização e funcionamento da Administração em âmbitos nacionais distintos é o fenômeno denominado New Public Managment. Para uma visão geral da chamada Nova Gestão Pública, FERLIE, Ewan; ASBURNER, Lynn; FITZGERALD, Louise; PETTIGREW, Andrew. A nova administração pública em ação.

    ² CASSESE, Sabino. Le trasformazioni del diritto amministrativo dal XIX al XXI secolo, p. 39.

    ³ CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O direito constitucional passa; o direito administrativo passa também, p. 707.

    ⁴ MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 261; 265.

    ⁵ Conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 492-1, do Distrito Federal. Para uma posição crítica quanto a tal acórdão, ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Negociação coletiva dos servidores públicos, p. 351-353.

    ⁶ SILVA, Clarissa Sampaio. Direitos fundamentais e relações especiais de sujeição; Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 841-844; ZOCKUN, Carolina Zancaner. Sujeição especial e regime jurídico da função pública no Estado de Direito democrático e social, p. 278-281; OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 251-262.

    ⁷ SUNDFELD, Carlos Ari. Uma lei de normas gerais para a organização administrativa brasileira, p. 60.

    ⁸ MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno, p. 167-168.

    ⁹ MARTINS, Ricardo Marcondes. Contratos administrativos, p. 11.

    ¹⁰ Achterberg já entendia a relação jurídica como uma conexão conformada pelo Direito entre dois ou mais sujeitos e, como sujeitos, entedia os pólos finais de imputação, expressão que, como se demonstra ao longo deste trabalho, pode alcançar órgãos despersonalizados (citado por CORREIA, José Manuel Sérvulo. As relações jurídicas administrativas de prestação de cuidados de saúde, p. 533). Sérvulo Correia também entende que as relações jurídicas administrativas podem ser travadas entre pólos finais de imputação pertencentes à própria Administração (Correia, José Manuel Sérvulo. As relações jurídicas administrativas de prestação de cuidados de saúde, p. 533), a par de reconhecer a crescente relevância jurídica das relações interorgânicas (CORREIA, José Manuel Sérvulo. Noções de direito administrativo, v. 1, p. 62-66). Também reconhecendo a existência de relações jurídicas administrativas interorgânicas, SILVA, Vasco Pereira da. Em busca do acto administrativo perdido, p. 94; LEITÃO, Alexandra. Contratos interadministrativos, p. 29 ss.

    ¹¹ CASSESE, Sabino. Le basi del diritto amministrativo, p. 162.

    ¹² GIANNINI, Massimo Severo. Il pubblici poteri negli stati pluriclasse, p. 392.

    ¹³ CASSESE, Sabino. Le basi del diritto amministrativo, p. 165-166.

    ¹⁴ Por exemplo, na Inglaterra, os contratos internos (DAVIES, A. C. L. Accountability, p. 27 ss); em Portugal, os contratos-programa (GONÇALVES, Pedro. Reflexões sobre o Estado regulador e o Estado contratante, p. 93, nota 165); e, no Brasil, os contratos internos de autonomia consagrados no art. 37, § 8º, da Constituição da República.

    ¹⁵ Lei nº 241, de 1990, art. 14 e seus dispositivos. Pela atual redação da citada Lei, decorrente de reforma de 2010, a conferência de serviços italiana não pode mais ser considerada um instrumento tendente a um acordo, mas um procedimento de sopesamento de posições e interesses interorgânicos, culminando com a substituição das competências dos órgãos participantes pelo órgão responsável pelo procedimento.

    ¹⁶ Por exemplo, na Lei Delegada nº 180, de 2011, do Estado de Minas Gerais, art. 5º, §§ 1º e 2º e no novo Código do Procedimento Administrativo português (aprovado pelo Decreto-Lei nº 4/2015), arts. 77º a 81º.

    ¹⁷ Lei nº 7347, de 1985, art. 5º, § 6º: Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.

    ¹⁸ IRELLI, Vincenzo Cerulli. Lineamenti del diritto amministrativo, p. 365.

    ¹⁹ GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho administrativo, v. 1, p. 665 ss; CASSESE, Sabino. Le trasformazioni del diritto amministrativo dal XIX al XXI secolo, p. 35; SCHMIDT-AβMANN, Eberhard. La teoría general del derecho administrativo como sistema, p. 325 ss; ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado, p. 44; OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Contrato de gestão, p. 45-46; KIRKBY, Mark Bobela-Mota. Contratos sobre o exercício de poderes públicos, p. 26.

    ²⁰ Por exemplo, KIRKBY, Mark Bobela-Mota. Contratos sobre o exercício de poderes públicos; HUERGO LORA, Alejandro. Los contratos sobre los actos y las potestades administrativas; LEITÃO, Alexandra. Contratos interadministrativos; OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Contrato de gestão.

    ²¹ MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 145.

    ²² MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 238-240; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 346.

    ²³ SCHMIDT-AβMANN, Eberhard. La teoría general del derecho administrativo como sistema, p. 39, tratando especialmente das relações com particulares.

    ²⁴ OTERO, Paulo. O poder de substituição em direito administrativo, p. 530.

    ²⁵ SCHMIDT-AβMANN, Eberhard. Le modèle de l’administration composée et le rôle du droit administratif européen, p. 1246-1249.

    ²⁶ MACHADO, J. Baptista. Participação e descentralização, democratização e neutralidade na Constituição de 76, p. 45-46.

    ²⁷ GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho administrativo, v. 1, p. 667; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novas tendências da democracia, p. 11-12.

    ²⁸ Assinalando aspectos políticos, constitucionais e administrativos da expressão concertação ou Administração concertada, indicando um genérico sentido de substituição da unilateralidade pelo consenso, GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo, FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho administrativo, v. 1, p. 683-687.

    ²⁹ OTERO, Paulo. O poder de substituição em direito administrativo, p. 121 ss.

    ³⁰ SILVA, Vasco Pereira da. Em busca do acto administrativo perdido, p. 138-139; SCHMIDT-AβMANN, Eberhard. La teoría general del derecho administrativo como sistema, p. 332-338; SILVA, Suzana Tavares da. Actuações informais da administração – verdade ou mito?, p. 82 ss.

    Parte I

    Enquadramento Histórico

    Capítulo 1

    Estado Constitucional e Exercício Autoritário

    das Competências Administrativas

    1. Estado liberal

    1.1. Administração agressiva e Direito Administrativo autoritário

    As revoluções liberais que marcaram os últimos anos do século XVIII e o início do século XIX consagraram o chamado Estado Constitucional ou Estado de Direito³¹, que consolidou a ideia de divisão de Poderes e a materialização de uma função de administração geral.³² A Administração Pública que se estruturou a partir da tomada do poder pela classe burguesa, vitoriosa na Revolução Francesa, caracterizou-se pela afirmação de um Poder Executivo forte e centralizador³³.

    Para tanto, a interpretação que se deu à teoria da divisão de Poderes foi no sentido de verdadeira separação de Poderes, garantindo à Administração imunidade contra o controle judicial de sua atividade³⁴, bem como assegurando sua competência regulamentar frente ao parlamento³⁵. Tal noção francesa de separação de Poderes, garantindo à burguesia ascendente proteção contra os corpos judiciais identificados com a nobreza e pavimentando o terreno para ampla atuação do Poder central, afastou-se da original doutrina de Montesquieu e das realidades constitucionais inglesa e norte-americana³⁶.

    A nova estrutura social que se impôs pela Revolução deu causa a um poder administrativo universal, sem paralelo no Antigo Regime³⁷. A consolidação dessa Administração forte e centralizada³⁸ se pode atribuir, especialmente, ao desaparecimento da antiga estrutura social de classes privilegiadas e poderes intermediários, que faz reunir todos esses poderes, antes dispersos, na Administração centralizada. Advirta-se, no entanto, que a centralização administrativa não se pode considerar obra inédita da Revolução. Antes, significou aprofundamento de estrutura administrativa já verificada no crepúsculo do Antigo Regime francês, em que o Conselho do Rei, o Inspetor Geral e os intendentes centralizavam amplos poderes públicos em quase todo o território, embora a face mais visível do governo ainda se encontrasse na figura quase exclusivamente honorífica dos representantes da realeza feudal³⁹.

    O objetivo revolucionário de abolir a antiga forma de organização social e a ideia de igualdade impuseram o fim dos privilégios e poderes secundários, com a consequente institucionalização dessa centralização administrativa⁴⁰. Livraram-se os revolucionários das amarras ainda impostas pelos tribunais a esforços maiores de centralização feitas pela administração real⁴¹. Pode-se dizer que houve verdadeira contradição liberal, com a afirmação dos valores revolucionários da liberdade individual, da legalidade e da separação de Poderes, ao mesmo tempo em que se deu a edificação de uma Administração Pública quase absoluta, controlada pela nova classe dominante⁴²: Desde a queda do império romano não se via no mundo um poder semelhante⁴³.

    Essa Administração liberal, embora sujeita à legalidade, atuava por meios autoritários, tendo no ato administrativo unilateral sua principal forma de manifestação nas relações com os particulares. Caracterizava-se como Administração autoritária, expressão de poder administrativo, sendo o cerne de sua atividade de natureza policial⁴⁴. A legalidade liberal era entendida como mecanismo de garantia da liberdade individual contra uma Administração agressiva em relação aos direitos dos particulares⁴⁵. A legalidade, como fonte de legitimidade da atuação administrativa, marcou o início de um processo de sujeição administrativa ao Direito: na legitimação legal-constitucional reside a grande diferença entre a Administração iluminista-absolutista e a Administração liberal⁴⁶.

    O Direito Administrativo, nascido a partir das transformações decorrentes da Revolução Francesa⁴⁷, forjou-se, em seus primeiros tempos, por consequência, como Direito especial de uma Administração Pública de cariz autoritário⁴⁸, que manteve feições da organização administrativa pré-liberal⁴⁹, embora se tenha racionalizado e concentrado, como condição para a expansão capitalista⁵⁰. Naquela altura, a Administração atuava fortemente hierarquizada⁵¹, sob o pálio da ideia de Estado mínimo⁵², como autômata aplicadora da lei⁵³; os vazios de regulação legal legitimavam uma atuação à margem do Direito, especialmente no que se refere à atividade administrativa interna, ficando fora de cogitação jurídica os procedimentos decisórios que culminavam na decisão final, unilateralmente adotada.

    A problemática do Direito Administrativo, em seus primórdios, concentrou-se no contencioso administrativo, como espaço de correção do ato administrativo material: aí esteve o ponto de partida da dogmática europeia continental⁵⁴. Tal marco inicial revelou que a concepção do juiz como mecânico aplicador da lei não se materializou na atuação do Conselho de Estado francês, cujo ativismo forjou as bases dogmáticas do Direito Administrativo nascente⁵⁵. Pode-se assim afirmar que o Direito Administrativo foi, em sua gênese francesa, elemento perturbador da doutrina da separação de Poderes, atuando a Administração como julgadora e legisladora, de si e para si própria⁵⁶.

    Embora haja respeitáveis posições na doutrina jusadministrativista que afirmem que o Direito Administrativo nasceu como Direito do cidadão⁵⁷, verdadeiro filho legítimo do Estado de Direito⁵⁸, ou instrumento de liberalismo frente ao Poder⁵⁹, não se pode deixar de reconhecer que o Estado de Direito liberal trouxe consigo um compromisso prático⁶⁰ entre princípios liberais, no campo da organização política e princípios autoritários, no campo administrativo. A própria noção de ato administrativo, elemento central do Direito Administrativo liberal, serviu, numa fase inicial, como afirmação da autoridade administrativa, na medida em que se configurava como ato unilateral, coativamente imposto aos particulares e, como noção intimamente ligada ao contencioso administrativo, estava excluído do controle judicial⁶¹. A emancipação do Direito Administrativo se deu pela afirmação da autoridade e do poder público⁶².

    Deve-se ressaltar que, ao menos em um primeiro momento, o controle realizado pelo contencioso administrativo era feito pelos próprios órgãos da Administração ativa⁶³. Não se tratava, nessa primeira fase, de um controle externo, no âmbito de um equilíbrio entre os Poderes do Estado, mas de verdadeiro autocontrole⁶⁴, com a afirmação de uma Administração forte, para além dos princípios revolucionários, especialmente afirmada na Constituição do Ano VIII⁶⁵. Por consequência, o ato administrativo, elemento principal do Direito Administrativo nascente, foi instrumento de subtração da atuação administrativa do controle jurisdicional.

    Só com a paulatina jurisdicionalização do contencioso administrativo é que, com o controle passando à competência de órgãos julgadores independentes, a noção de ato administrativo passa a servir como garantia dos particulares⁶⁶. Nesse sentido, é com a evolução do Direito Administrativo que se pode afirmar, sem dúvida, que passa a ser elemento de garantia do cidadão contra o poder, reconciliando-se com o ideário revolucionário. É a partir da construção de um instrumental de controle efetivo da atuação administrativa e do reconhecimento de garantias instrumentais do particular que o Direito Administrativo pode se considerar, por excelência, o Direito defensivo do cidadão⁶⁷.

    O labor criativo do Conselho de Estado francês, reconhecido ponto de partida para o Direito Administrativo⁶⁸, demonstra que sua origem não teve o traço revolucionário da legalidade, expressão da vontade geral e instrumento de contenção do poder em favor da liberdade individual. As primeiras manifestações do Direito Administrativo não se deram por meio de lei, mas de decisões de um órgão que exprimia função judicial, encartado na própria Administração Pública⁶⁹. Seus princípios gerais, derrogando o Direito comum, foram produzidos à margem da vontade geral expressa pela lei do parlamento⁷⁰, o que caracterizou tal atuação dos tribunais administrativos, nesse período inicial, como claramente pró-administrativa⁷¹.

    Em outras palavras, a lei,

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