Forma e Substância no Direito Tributário: Legalidade, capacidade contributiva e planejamento fiscal
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Forma e Substância no Direito Tributário - João Rafael L. Gândara de Carvalho
Forma e Substância
no Direito Tributário
LEGALIDADE, CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E PLANEJAMENTO FISCAL
2016
João Rafael Lavandeira Gândara de Carvalho
logoAlmedinaFORMA E SUBSTÂNCIA NO DIREITO TRIBUTÁRIO: LEGALIDADE, CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E PLANEJAMENTO FISCAL
© Almedina, 2016
AUTOR: João Rafael Lavandeira Gândara de Carvalho
DIAGRAMAÇÃO: Almedina
DESIGN DE CAPA: FBA
ISBN: 978-858-49-3339-6
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Carvalho, João Rafael Lavandeira Gândara de Forma e substância no direito tributário / João Rafael Lavandeira Gândara de Carvalho. -São Paulo : Almedina, 2016.
Bibliografia
ISBN 978-858-49-3339-6
1. Direito tributário 2. Direito tributário Brasil I. Título.
16-00473 CDU-34:336.2
Índices para catálogo sistemático:
1. Direito tributário 34:336.2
Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).
AVISO: O presente trabalho não representa parecer legal ou a opinião de Pinheiro Neto Advogados sobre o assunto tratado, mas apenas de seu autor, para fins acadêmicos.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora.
Outubro, 2016
EDITORA: Almedina Brasil
Rua José Maria Lisboa, 860, Conj.131 e 132, CEP: 01423-001 São Paulo | Brasil
editora@almedina.com.br
www.almedina.com.br
[Die Form]… ist im innersten Wesen des Recht begründet
.
A forma está enraizada na essência mais interna do Direito
.
RUDOLF VON JHERING
Geist des Römischen Rechts: auf dert verschiedenen Stufen seiner Entwicklung, vol. 2,
Scientia Verlag, Aalen, 1993 apud Robert Summers, Form and Function in a Legal System
– A General Study. New York: Cambridge University Press, 2006.
Those who are impatient with the forms of law ought to reflect that it is through form that all organization is reached. Matter without form is chaos; power without form is anarchy
.
JUSTICE BLECKLEY,
Cochran v. State, 62 Ga. 731, 732 (1879).
Oxalá fôssemos uma nação de juristas. Mas o que somos, é uma nação de retóricos. Os nossos governos vivem a envolver num tecido de palavras os seus abusos, porque as maiores enormidades oficiais têm certeza de iludir, se forem lustrosamente fraseadas. O arbítrio palavreado, eis o regime brasileiro. Agora mesmo, a usurpação de que me queixo perante vós, nunca se teria sonhado, se a espada, que nos governa, estivesse embainhada no elemento jurídico. Mas a espada, parenta próxima da tirania, detesta instintivamente esse elemento
.
RUY BARBOSA,
Obras completas de Rui Barbosa, Página 92,
Publicado por Ministério de Educação e Saúde, 1942.
AGRADECIMENTOS
Este livro é a publicação na íntegra da minha dissertação de mestrado em Direito Público na Universidade do Estado do Rio de Janeiro defendida e aprovada em 2013.
Não há forma de retribuir todas as contribuições substanciais que recebi para que pudesse concluir este trabalho. Palavras dizem muito pouco sobre o muito que as pessoas adiante citadas representam e o que fizeram por mim. Dizer muitas palavras, nesse momento, só contribuiria para aumentar um texto já por demais extenso. Nada agregaria às enormes contribuições que recebi dessas pessoas, por vezes, na forma dos mais simples gestos.
Talvez, o mais indicado, em retribuição a todo esse apoio, seja seguir justamente pelo caminho oposto e trocar as muitas palavras que poderiam ser ditas nesse momento, por um único gesto – o de agradecer – com a única palavra existente na Língua Portuguesa que é capaz de expressar, minimante, a gratidão que sinto. Essa palavra é obrigado
e o melhor que consigo fazer nessa hora para agradecer a todos vocês que me ajudaram é dizer: muito obrigado
!
Muito obrigado aos meus pais, Fátima e João, por tudo que me deram ao longo da vida, e, mais ainda, pelo que me ensinaram. Foram, são e serão fontes eternas de inspiração e carinho. Minha maior realização será poder algum dia fazer por um filho, algo um pouco parecido do que fizeram por mim. À minha irmã, Lívia, agradeço por ter me ensinado, desde cedo, que, na vida, dividir, pode ser multiplicar. Agradeço também aos meus avôs Virgílio e Faustino (ambos in memoriam), onde quer que eles estejam, e às minhas avós, Maria e Zélia, pelo carinho infinito que recebo e recebi, em especial à minha avó Maria, por fazer, ao lado da UERJ, o almoço mais prático e, ao mesmo tempo, mais carinhoso que alguém pode ter. Aos meus tios e padrinhos, Olívia e Carlos, agradeço, como o filho que não tiveram – mas que têm, por consideração recíproca – por ter tido a rara felicidade de ter, em uma mesma família, mais dois pais. Aos meus sogros, Maristela e Paulo, e ao meu cunhado, Renato, só tenho a agradecer por terem me incorporado à família, na qualidade de filho e irmão.
À UERJ, agradeço por ter feito Mestre em Direito, o menino curioso, que entrou ali, pela primeira vez, aos 10 anos, para fazer a única prova na vida em que foi reprovado. Saí dali com a certeza de que não havia passado na prova, mas com a estranha sensação e desejo de voltar. Apesar de todos os pesares que se possam apresentar em relação a essa instituição, o que mais pesou sempre foi a UERJ e o desejo de estar ali estudando, aprendendo e ensinando. Tive a felicidade de fazer minha graduação e minha pós-graduação na Faculdade de Direito da UERJ, um dos centros excelência do ensino jurídico no Brasil, inteiramente gratuito, cujo valor maior é a sintonia entre professores e alunos. Que o conhecimento e a qualidade acadêmica continuem prevalecendo sobre a vaidade e os projetos pessoais. A todos os professores, alunos e funcionários que fazem da querida Faculdade de Direito da UERJ o que ela é, a minha singela e eterna gratidão.
Muito obrigado, em especial, aos Professores Doutores Luís Cesar Souza de Queiroz, Ricardo Lodi Ribeiro e Celso Albuquerque Silva, que compuseram a banca de defesa da dissertação, a qual, generosamente, foi aprovada, com grau dez, louvor e distinção.
O Professor Luís Cesar Queiroz é um desses professores que faz a UERJ ser o centro de excelência que ela é. Tive o privilégio de ter sido orientado por ele tanto na monografia da graduação quanto no mestrado. Um exemplo de professor de Direito Tributário, cujos vastos conhecimentos de Teoria Geral do Direito e de Filosofia do Direito geraram intensos debates jurídicos ao longo dos nossos encontros. Agradeço imensamente pela atenção minuciosa dispensada ao trabalho, pelas valiosas contribuições dadas e pelo rigor analítico dos mestres que têm especial cuidado pela produção acadêmica, que fica até evidenciada no gentil e denso prefácio elaborado. Ao Professor Ricardo Lodi Ribeiro, um dos grandes mestres e doutrinadores de Direito Tributário no País, agradeço pela cuidadosa análise do trabalho, pelas gentis palavras durante a defesa, pelo estímulo acadêmico e pelo espaço que vem dando à nova geração de tributaristas. Ao Professor Celso Albuquerque, grande juspublicista, agradeço por ter aceito o convite para integrar a banca e pelas construtivas críticas que animaram a defesa da dissertação. Não poderia deixar de agradecer também ao Professor Humberto Ávila, um dos grandes tributaristas do Brasil, por ter gentilmente aceito o convite para integrar a banca. Mesmo não tendo podido participar da defesa, por fatores alheios à sua vontade, suas lições estão aqui presentes em boa parte do trabalho, além de ter me honrado muito com uma generosa apresentação para o livro.
A Pinheiro Neto Advogados tenho a agradecer por ter dado a um jovem estudante de Direito uma oportunidade profissional única na vida: o desafio, o prazer e o eterno aprendizado de começar advogar em um dos escritórios mais tradicionais do Brasil, com muitos dos mais admirados profissionais do ramo, que ali começaram suas carreiras, como jovens estudantes de Direito. Sem o apoio institucional do escritório e a compreensão pessoal dos colegas, a realização do mestrado teria sido impossível; sem o prazeroso ambiente de trabalho, a vida jurídica não seria tão plena de realizações. O apoio institucional do escritório também fez possível a publicação dessa obra.
Agradeço a José Olinto de Arruda Campos (in memoriam) por ter aberto as portas do escritório para estagiar em seu grupo e por ter me dado um apoio do tamanho de sua generosidade. A Carlos Henrique Bechara, agradeço imensamente por ter feito do meu primeiro estágio, meu primeiro emprego, e por todo o valioso estímulo acadêmico e profissional que dele recebo, a todo tempo, nos mais variados fóruns. Agradeço a Marcos de Vicq de Cumptich, por ter sido, ao longo de quase uma década, muito mais do que um chefe, mas um professor, um amigo, um mentor, um interlocutor, a quem tenho que agradecer por uma infinidade de coisas, sem contar – sem contar mesmo – a infinidade de cafés tomados em sua sala durante todo esse tempo. A Emir Nunes de Oliveira, agradeço por todo o apoio e auxílio profissional, no seu outro mundo
do Direito Tributário. Tenho que agradecer, imensamente, a todos os integrantes e amigos da área tributária do escritório, em especial do escritório do Rio de Janeiro, pelo engrandecimento profissional que tenho no nosso convívio diário, e pelo quanto os atarefei ainda mais durante o mestrado. De fora da área tributária, faço agradecimentos a todos os grandes amigos que tenho no escritório e em especial a Saul Tourinho Leal, pelos diálogos constitucionais em Direito Tributário.
O mundo jurídico me deu a oportunidade de fazer muitos amigos e companheiros, cujas conversas sobre o Direito, mesmo que por algumas horas, influenciaram meu pensamento ao longo desses anos e, cujas reflexões, direta ou indiretamente, estão refletidas nessa obra. Evidentemente, seria impossível citá-los nominalmente. Mas, tenho a felicidade de ter grandes amigos de infância, que ingressaram comigo no mundo do Direito, cujos nomes não poderia deixar de mencionar nesse momento: Daniel, Vinicius, Rafael, Philippe, Augusto e Thiago. Outros, não seguiram o caminho jurídico, mas a amizade seguiu: Daniel Veloso, Leandro e Marcello. Aos colegas da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), agradeço por terem me recebido muito bem desde o início e pela oportunidade de poder participar de uma das instituições científicas mais sérias, plurais e ativas do país nos debates eternos que, felizmente, teremos sobre o Direito Financeiro e Tributário. Faço esse agradecimento na pessoa de Bruno Lyra, um dos expoentes da nova geração de tributaristas, que já alcança merecido reconhecimento internacional na International Fiscal Association, (IFA). Aos amigos e membros da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB/RJ, agradeço pela oportunidade de poder fazer parte de um grupo seleto de grandes profissionais, que tem trabalhado não apenas na defesa dos advogados tributaristas – o que já seria motivo de muita honra e muito trabalho – mas também em prol de um Direito Tributário mais justo e equilibrado – o que nos motiva e orgulha ainda mais. Aos amigos da Sociedade Brasileira de Direito Tributário (SBDT), fundada pelo professor Ricardo Lodi, na etapa final do meu mestrado, muito obrigado pelo fato de o fim do mestrado não significar o fim dos nossos debates sobre Direito Tributário.
Muito obrigado a todos que fizerem tudo isso por mim. Vocês foram, são e serão mestres desse meu mestrado.
Mas "ainda que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria" (Coríntios 13:2). A você, Juliana, meu amor, que viu isso tudo acontecer, do meu lado, e meu deu força, incentivo e, sobretudo, amor. A você, que, na verdade, não me viu por todo o tempo que passei estudando, lendo e escrevendo, logo nos primeiros anos do nosso casamento. A você, por tudo o que construímos e vamos construir juntos, não posso dizer só muito obrigado. Eu preciso dizer que te amo muito. E te dizer que é só com muito desse nosso amor que consegui chegar até aqui.
Entre a defesa de mestrado e a publicação deste livro, um curto espaço de tempo foi suficiente para plantar algumas árvores e ter um filho, seguindo aquela velha máxima das três coisas que um homem deve fazer durante a vida. João Gabriel, esse livro foi escrito muito antes de você chegar ao mundo, mas seu nascimento foi a benção necessária para que ele ganhasse vida e que vida ganhasse um livro com muitas páginas a serem preenchidas.
APRESENTAÇÃO
João Rafael Gândara começa de onde não muitos terminam: escrevendo um trabalho denso e amplo sobre um tema relevante, atual e controvertido. Em alguns aspectos, a sua dissertação assemelha-se a uma tese de doutorado, em razão de algumas proposições que formula a respeito da dicotomia entre substância e forma e da própria teoria que anuncia na sua parte final. A sua dissertação de mestrado, portanto, é uma dissertação realmente extraordinária, por várias razões, algumas das quais enuncio aqui de forma abreviada, dado o caráter conciso da apresentação que tenho a alegria de elaborar.
Em primeiro lugar, pelo tema: planejamento tributário. Hoje, assim no Brasil como no mundo, este tema passou de importante a crucial, em virtude tanto da necessidade de incremento da arrecadação quanto do aumento das reestruturações societárias que buscam mais ou menos ousadamente dela se afastar. Mais do que nunca, os operadores do Direito Tributário precisam dominar conceitos como os de simulação, dissimulação, abuso de forma, abuso de direito, fraude à lei, negócio jurídico indireto e propósito negocial. Este trabalho trata justamente destes conceitos fundamentais com a extensão e a profundidade necessárias à sua melhor compreensão e aplicação.
Em segundo lugar, pela estrutura: bem organizada e concatenada, partindo do geral para o particular e perpassando os princípios fundamentais ligados ao tema. O trabalho inicia examinando o conceito de forma em geral, indo buscar subsídios na Filosofia, na História e na Teoria do Direito. Após, analisa o conceito de forma no âmbito do Direito. Somente após esta parte propedêutica essencial é que o trabalho examina a dicotomia forma e substância no âmbito do Direito Tributário, fazendo-o, porém, por meio do exame dos princípios fundamentais da legalidade e da capacidade contributiva, e mediante a análise das concepções particulares dos tributaristas pátrios mais eminentes, tanto de ontem quanto de hoje.
Em terceiro lugar, pela amplitude: embora tenha por objeto imediato o planejamento tributário, o presente trabalho examina uma variedade enorme de temas relevantes, desde incursões sobre as capacidades institucionais dos Poderes da República até um cuidadoso exame da teoria das regras e das suas justificações. O resultado desse esforço é recompensador, pois no lugar de um trabalho acadêmico tradicional, que apenas relata e compila o que os outros autores disseram sobre determinado tema, o que se tem é uma obra fundamentada nas grandes categorias da Filosofia e da Teoria do Direito – como deveriam ser todas as obras de Direito Tributário. Para cumprir esse desiderato, o presente trabalho valeu-se de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial primorosa – extensa, profunda e específica. Em face dessa enorme quantidade de informação, o autor empreendeu notável esforço, em geral bem sucedido, para evitar o mal que acomete a maior parte das dissertações de mestrado: no afã de pretensamente esgotar o tema, fazer muitas citações, incorporando ao seu resultado autores e teorias de resto inconciliáveis entre si.
Em quarto lugar – e para finalizar uma lista de resto bem mais longa –, este trabalho é extraordinário pelos resultados: uma visão parcimoniosa e criteriosa a respeito tanto da dicotomia entre forma e substância no Direito Tributário quanto do planejamento tributário. Precisamente porque parte de uma análise do conceito de forma em geral para somente depois adentrar na seara tributária, o presente trabalho bem apreendeu a distinção entre forma, formalidade, formulação e formalismo. E exatamente por isso também percebeu o que poucos percebem: de um lado, que o conceito de forma pressupõe um arranjo sistemático e finalístico de elementos e, longe de ser uma mera estrutura vazia e bastante em si, desempenha uma função essencial para garantir a cognoscibilidade e a calculabilidade no Direito e para permitir o exercício seguro da liberdade; de outro, que o tema do planejamento tributário não pode ser enfrentado apenas mediante um exame apologético e genérico de princípios fundamentais – de solidariedade ou de liberdade, pouco importa –, mas por meio da intermediação legislativa e mediante a distinção analítica entre conceitos fundamentais relativos aos vícios dos atos ou negócios jurídicos praticados pelos contribuintes.
Assim, pelos méritos aqui brevemente realçados e por aqueles outros que o sensível leitor irá perceber, não tenho dúvida alguma a respeito da oportunidade e da relevância da publicação da presente obra, à qual desejo tenha a acolhida a que faz jus como importantíssimo contributo ao aprimoramento dos estudos a respeito do planejamento tributário no Brasil.
HUMBERTO ÁVILA
Professor Titular de Direito Tributário da USP
PREFÁCIO
Foi com muita satisfação que recebi o convite de João Rafael Lavandeira Gândara de Carvalho para prefaciar seu livro. Tive o prazer de ser orientador do João Rafael em duas oportunidades na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. A primeira em sua monografia de graduação (2008) e a segunda em seu mestrado (2013). Nessas duas ocasiões, João Rafael surpreendeu-me pela dedicação à pesquisa, pela elevada capacidade de raciocínio analítico e pela sua habilidade de abordar com profundidade temas de alta complexidade. Essa surpresa foi compartilhada pelos integrantes das bancas de monografia e de mestrado, que concordaram em afirmar que João Rafael suprimiu etapas, pois sua dissertação de monografia intitulada A razoável duração do processo administrativo tributário: por uma limitação temporal à execução do crédito tributário
apresentava feição própria de uma dissertação de mestrado, enquanto sua dissertação de mestrado, obra que agora se publica, possuía estatura de uma autêntica tese de doutorado. Não foi por outra razão que, em ambas as oportunidades, João Rafael foi agraciado com grau máximo pelas respectivas bancas examinadoras.
O livro Forma e substância no Direito Tributário: legalidade, capacidade contributiva e planejamento fiscal
, que em boa hora é objeto de publicação pela Editora Almedina, discorre sobre temas sempre oportunos e complexos: a dicotomia entre a forma e a substância, a relevância dos princípios constitucionais da legalidade e da capacidade contributiva, e os reflexos sobre o fenômeno do planejamento tributário.
O primeiro capítulo do livro apresenta ao leitor a primeira grande questão enfrentada pelo autor, a qual é revelada de forma direta mediante duas perguntas: O que é forma? O que é substância?
. Desse tema ocupa-se o autor nos três primeiros capítulos. A multiplicidade de perspectivas que o tema forma-substância suscita acompanha boa parte da história da humanidade, o que torna a sua apreciação extremamente árdua, em especial com a consideração de que essas expressões possuem razoável dose de indeterminação, a qual é fomentada pela mutação de valores, crenças e conhecimentos. O autor não se amesquinhou ante a grandiosidade do tema e o analisa de forma acurada e profícua. Há que se lembrar que Aristóteles, um dos fundadores da filosofia ocidental, já se preocupava com as questões relativas à forma e substância, cabendo salientar a polêmica levada a termo por este filósofo contra o platonismo, com o propósito de afirmar a inseparabilidade da forma da matéria. A preocupação do autor em discorrer acerca de diferentes acepções para forma e substância revela sua singular preocupação de apresentar um trabalho devidamente fundamentado, bem como a aptidão para a investigação, sem se descurar da necessária atenção com o fenômeno da indeterminação dos conceitos.
Um trabalho como o apresentado por João Rafael, que é conhecedor das dificuldades suscitadas pelo fenômeno da indeterminação dos conceitos, o qual acomete a linguagem em geral, caracteriza-se pelo cuidado com o uso das palavras, a começar pelo uso dos vocábulos forma e substância.
É importante observar que o fenômeno da indeterminação dos conceitos é um problema que prejudica a interpretação e a comunicação. Esse fenômeno acomete os conceitos em geral. Não se pode esquecer que os conceitos (jurídicos ou não), em sua maioria, são do tipo indeterminado, ou com maior precisão, são conceitos com razoável grau de indeterminação, fenômeno que é inerente ao processo de conhecimento humano. A indeterminação (vagueza ou imprecisão) pode repousar (i) na dificuldade ao identificar e constituir um objeto específico (na construção do conceito de um objeto específico) – pois o sujeito cognoscente tem a possibilidade de estabelecer, eleger, infinitas características definitórias, (ii) na dificuldade de se criar uma classe de objetos (na construção do conceito de classe de objetos) que apresentem características definitórias comuns – pois o sujeito cognoscente também tem a possibilidade de eleger infinitos caracteres definitórios comuns para criar a classe de objetos, e (iii) na dificuldade de se verificar se um objeto específico (o conceito de um objeto específico) pertence ou não a certa classe de objetos (ao conceito de classe de objetos) – pelas razões já explicadas nos itens ‘a’ e ‘b’.
Quando se constrói um conceito, adotam-se características definitórias que informam seu conteúdo, que permitem identificá-lo e diferençá-lo de outros conceitos. Isso não infirma o fato de as pessoas nem sempre estarem em plena concordância com tais características definitórias (situação existente, em maior ou menor grau, em todas as áreas do conhecimento), o que é explicável em função do referido fenômeno da indeterminação, o qual, convém advertir, é fomentado por dois fatores: a mutação e a diversidade espacial. Entenda-se por mutação o fenômeno (também, mas não exclusivamente jurídico) representativo das mudanças de compreensão, de constituição e de interpretação dos objetos em sentido amplo ou da denominada realidade, decorrentes das mais variadas razões (morais, econômicas, físicas, tecnológicas etc.) que se dão ao longo do tempo. E entenda-se por diversidade espacial a circunstância de as diferentes características físicas do meio circundante informarem a compreensão, a construção da realidade. É nesse sentido, por exemplo, que Stephen Ullmann¹ observa que os Esquimós e os Lapões possuem, em sua linguagem, uma multiplicidade de termos para diferentes espécies de neve. Certamente, isso é função de necessidades específicas provocadas pelas singulares características ambientais, onde o ou os objetos-neve assumem uma especial importância para os habitantes dessas regiões. Desse modo, os Esquimós e os Lapões acabam por constituir diferentes objetos, constroem uma nova e diversa realidade.
Esse especial modo de se compreender e de se utilizar a expressão conceito, que concebe ser necessária a consideração de que os fenômenos da indeterminação e da mutação acometem os conceitos em geral em graus variados, parece guardar vantagens para o uso de outras expressões relacionadas, tais como, tipo, cláusula geral, conceitos determinados, conceitos indeterminados etc., as quais têm suscitado desnecessárias dúvidas acerca de sua adequada caracterização.
É por estar atento para a necessidade de compreender adequadamente o sentido de forma e substância, que o autor também discorre sobre esse tema nos capítulos dois e três, sob a perspectiva da Teoria Geral do Direito (capítulo 2) e sob a ótica do Direito Tributário (capítulo 3).
O autor conjuga a construção dos conceitos de forma e substância com a apreciação de dois relevantes princípios constitucionais tributários: o da legalidade tributária e o da capacidade contributiva, com o que realiza uma feliz e salutar construção teórica, na qual combina reflexões de cunho analítico com as de cunho axiológico. Nesse ponto, o autor avalia a aproximação do princípio da legalidade tributária com um viés mais formal do sistema jurídico e do princípio da capacidade contributiva com um viés mais substancial do sistema jurídico.
O princípio da legalidade tributária é apreciado a partir do disposto na Constituição de 1988 e da análise de discursos da doutrina, com uma destacada abordagem sobre a controvertida tipicidade tributária. Ainda nesta parte, após tratar da estrutura e função da lei tributária, enfrenta o delicado e controvertido tema da analogia gravosa no direito tributário. Por sua vez, o estudo relativo ao princípio da capacidade contributiva também revela a relevância do referido fenômeno da indeterminação, à medida que toma como premissa a concepção de que a capacidade contributiva tem uma configuração multidimensional, que demandaria do intérprete a consideração de que existem cinco diferentes dimensões. Finaliza este ponto com o enfrentamento do tormentoso tema da denominada eficácia positiva da capacidade contributiva no direito brasileiro.
Na última parte do trabalho, o autor, antes de apresentar a sua visão acerca das condições para a adoção de um legítimo planejamento tributário no Brasil, conjuga o instrumental teórico desenvolvido ao longo do trabalho e com um estudo sobre a evolução histórica da doutrina nacional sobre o tema.
Aproveito a oportunidade para cumprimentar a Editora Almedina pela decisão de publicar o presente trabalho, que, certamente, muito contribuirá para o enriquecimento dos debates relacionados ao Direito Tributário, bem como para parabenizar todos aqueles professores da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, que de algum modo contribuíram para a formação desse jovem e brilhante estudioso, que se tornou o João Rafael.
LUÍS CESAR SOUZA DE QUEIROZ
Professor de Direito Financeiro da UERJ
Procurador Regional da República
-
¹ Semântica – uma introdução à ciência do significado. Lisboa: Fundação Caloute Gulbenkian, 1964, p. 251.
ÍNDICE DE SIGLAS
Ac. – Acórdão
AC – Apelação Cível
ADCT – Atos das Disposições Constitucionais Transitórias
ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADI-MC – Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade
AgRg – Agravo Regimental
AI – Agravo de Instrumento
CARF – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
CC/1916 – Código Civil de 1916
CC/2002 – Código Civil de 2002
CC do MF – Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda
CF/1967/1969 – Constituição Federal de 1967, com a redação dada pela Emenda
Constitucional nº 1/1969.
CF/1988 – Constituição Federal da República do Brasil de 1988
COFINS – Contribuição para Financiamento da Seguridade Social
CP – Código Penal
CDC – Código de Defesa do Consumidor
CFC – Conselho Federal de Contabilidade
CPC – Código de Processo Civil
CTN – Código Tributário Nacional
CVM – Comissão de Valores Mobiliários
DJ – Diário de Justiça
DJe – Diário de Justiça Eletrônico
DL – Decreto-lei
EC – Emenda Constitucional
ERE – Embargos de Divergência em Recurso Extraordinário
ERESP – Embargos de Divergência em Recurso Especial
ICMS – Imposto sobre Operação de Circulação de Mercadoria e Prestação de Serviço de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação
IFA – Internacional Fiscal Association
II – Imposto sobre Importação de Produtos Estrangeiros
IOF – Imposto sobre Operações Financeiras de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários
IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados
IPMF – Imposto sobre Movimentações Financeiras
ISS – Imposto sobre a Prestação de Serviços de Qualquer Natureza
IFRS – Internacional Financial Reporting Standards
IR – Imposto de Renda
IRPJ – Imposto de Renda da Pessoa Jurídica
IRPF – Imposto de Renda da Pessoa Física
LC – Lei Complementar
PIS – Contribuição para o Programa de Integração Social
RE – Recurso Extraordinário
RESP – Recurso Especial
RIR – Regulamento do Imposto de Renda, aprovado pelo Decreto nº 3.000/1999.
RMS – Recurso Ordinário em Mandado de Segurança
RT – Revista dos Tribunais
SAT – Contribuição ao Seguro de Acidente de Trabalho
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TFA – Taxa de Fiscalização Ambiental
TFR – Tribunal Federal de Recursos
TJ – Tribunal de Justiça
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1 – O QUE É FORMA? O QUE É SUBSTÂNCIA?
1. Um debate multidisciplinar
2. Forma e substância no Direito em sentido amplo
2.1. A abertura semântica
2.2. Um conceito geral de forma e de substância
3. Três relações entre forma e substância
CAPÍTULO 2 – FORMA E SUBSTÂNCIA NA TEORIA GERAL DO DIREITO
1. Razões substanciais e razões formais
2. Diferentes Tipos de Formalidade na Aplicação do Direito
2.1. Formalidade relacionada à autoridade jurídica
2.2. Formalidade com relação ao conteúdo
2.3. Formalidade com relação à interpretação
2.3. Formalidade com relação à imperatividade
3. Razões substanciais e formais de segunda ordem
4. Formalismo e Substancialismo
CAPÍTULO 3 – FORMA E SUBSTÂNCIA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
1. Forma e substância como questões tributárias
2. O caráter universal do debate
3. Dois modelos de lidar com a forma e substância
no Direito Tributário: Gregory v. Helvering e IRC v. Duke of Westminster
4. Breves apontamentos sobre o modelo brasileiro
atual de tratamento do debate forma-substância no Direito Tributário
CAPÍTULO 4 – O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA
1. O(s) Princípio(s) da Legalidade na CF/1988
2. O princípio da legalidade tributária
3. A lei tributária, os seus elementos essenciais e o regulamento em matéria tributária
4. Forma e substância no princípio da legalidade tributária
5. A tipicidade tributária e as suas teorias
5.1. A ambiguidade da tipicidade
5.2. A proposição de Alberto Xavier – o princípio da tipicidade fechada
5.3. A proposição de Misabel Derzi – a distinção entre tipo e conceito
5.4. A proposição de Ricardo Lobo Torres – o princípio da tipicidade aberta
5.5. Reflexões sobre a tipicidade no Direito Tributário
CAPÍTULO 5 – LEI TRIBUTÁRIA: ESTRUTURA E FUNÇÃO
1. A adoção do modelo de regra de incidência tributária
2. As regras como generalizações probabilísticas entrincheiradas
3. A aplicação do modelo de regras ao Direito Tributário
CAPÍTULO 6 – A ANALOGIA GRAVOSA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
1. Considerações gerais sobre a analogia
2. Os argumentos a favor da utilização da analogia no Direito Tributário
3. A vedação à analogia gravosa
3.1. A colocação do problema
3.2. A crítica aos argumentos a favor da analogia gravosa
3.3. A vedação da analogia gravosa e suas consequências
CAPÍTULO 7 – A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA MULTIDIMENSIONAL
1. A capacidade contributiva: uma norma em busca de sua definição
2. Primeira Dimensão: O sistema tributário deve ser justo
3. Segunda Dimensão: Os tributos devem incidir sobre fatos econômicos (capacidade econômica)
4. Terceira Dimensão: A carga tributária deve ser repartida entre as pessoas, de forma racional e justa, segundo as espécies tributárias previstas no sistema tributário nacional
5. Quarta dimensão: Os tributos não podem gravar o mínimo existencial
6. Quinta dimensão: "O tributo não pode ser usado com efeito de confisco (parcial ou global)
7. A Chamada Eficácia Positiva do Princípio da Capacidade Contributiva
CAPÍTULO 8 – OS MARCOS FUNDAMENTAIS PARA UMA TEORIA DO PLANEJAMENTO FISCAL
1. A complexidade teórica e a falta de uniformidade prática
2. Uma breve história do debate doutrinário sobre o planejamento tributário e os seus modelos teóricos no Brasil
2.1. Referências para uma demarcação histórica
2.2. A Primeira Fase – Os Antecedentes Históricos
2.2.1. Bilac Pinto – critério jurídico e conteúdo econômico na qualificação do fato imponível
2.2.2. Aliomar Baleeiro – A teoria da evasão lícita e ilícita
2.2.3. Rubens Gomes de Souza – A evasão, a fraude fiscal e o critério temporal
2.2.4. Alfredo de Augusto Becker – O repúdio às teorias da interpretação econômica e do abuso do direito
2.2.5. Amílcar de Araújo Falcão – A Interpretação Econômica e a Forma Jurídica
2.3. A Segunda Fase
2.4. A Terceira Fase
CAPÍTULO 9 – UMA TEORIA DO PLANEJAMENTO FISCAL
1. Uma definição de planejamento tributário
2. Planejamento tributário como produto
2.1. A evasão e a elisão fiscal
2.1.1. A análise do critério temporal
2.1.2. A análise do critério da natureza dos meios utilizados
2.2. A elusão fiscal
2.2.1. A elusão fiscal e os seus contornos
2.2.2. A penumbra normativa ou o conflito de qualificação
2.2.3. A transparência dos atos ou dos negócios praticados
2.2.4. A violação indireta à lei tributária: a ilicitude atípica
CAPÍTULO 10 – OS LIMITES DO PLANEJAMENTO FISCAL
1. As normas antielusivas específicas
2. As normas gerais antielusão
3. Simulação e dissimulação
3.1. O conceito tradicional de simulação no Direito Privado e a sua repercussão no Direito Tributário
3.2. A importância da causa para o conceito de simulação
3.3. A simulação e a dissimulação no Direito Tributário
4. A fraude à lei
4.1. A fraude à lei no Direito Privado
4.2. A fraude à lei no Direito Tributário
5. O negócio indireto
6. O abuso de direito
6.1. O abuso de direito no Direito Civil
6.2. O abuso de direito no Direito Tributário
6.3. Existe espaço para a teoria do abuso de direito em matéria de planejamento fiscal?
7. A Substância Econômica e o Propósito Negocial
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
A presente obra tem por objetivo demonstrar como a dicotomia entre forma e substância pode apresentar parâmetros relevantes para se avaliar, no Direito Tributário brasileiro, a legitimidade de atos ou negócios praticados pelos contribuintes com a finalidade de economizar tributos (planejamento tributário
), de modo a distinguir entre o que é e o que não é licito ao contribuinte fazer para alcançar essa finalidade.
A dicotomia entre forma e substância é uma dicotomia central no Direito¹.
Geralmente, forma e substância estão associadas a extremos opostos em diversos debates jurídicos. Na dicotomia clássica entre Direito Natural e Direito Positivo, por exemplo, a substância está relacionada à ideia de um Direito que tem validade porque é justo, virtuoso e moral, independentemente da forma pela qual é posto ou do que está formalmente previsto no Direito. No outro extremo, o juspositivismo relaciona a validade do direito à forma, isto é, o Direito vale porque é posto por uma autoridade competente ("auctoritas non veritas facit legem"), independentemente de sua relação com a justiça, a virtude e a moral.
De certo modo, essa dicotomia se projeta na vinculação do juiz à lei ou à justiça. Uma interessante passagem narrada por Ronald Dworkin na abertura de seu livro A Justiça de Toga² bem ilustra essa questão. No capítulo inicial da obra, que trata da relação entre Direito e Moral, Dworkin conta que, certa vez, Oliver Wendell Holmes, um dos mais notáveis juízes da Suprema Corte americana, passava com sua carruagem a caminho do trabalho, quando encontrou o então jovem juiz Leonard Hand, também considerado um dos maiores juízes da história dos Estados Unidos. Holmes ofereceu uma carona a Hand. Quando chegou ao seu destino, Hand desembarcou e se despediu dizendo: Faça justiça, juiz!
. A carruagem, que havia saído, voltou logo em seguida e Holmes respondeu: Não é esse o meu trabalho!
. Essa passagem toca em uma das mais palpitantes questões jurídicas de todos os tempos: o papel de um julgador ao decidir um conflito de interesses colocado diante de um caso concreto é aplicar o que está formalmente previsto na legislação ou deve recorrer a razões substanciais relacionadas à justiça, ou a outros valores no momento de decidir? Essa é uma questão que também perpassa pela dicotomia forma-substância.
O Direito costuma se valer de certas formas para atingir determinadas finalidades substanciais. Por exemplo, o Poder Público necessita ordenar a circulação de veículos em uma estrada para permitir que as pessoas se desloquem de maneira segura, eficiente e sem acidentes. Para tanto, pode-se valer de regras mais diretas, precisas e formais como, por exemplo, Velocidade máxima: 60 km/h
ou pode, de modo diverso, se valer de comandos menos diretos, mais imprecisos e mais substanciais, como: Dirija com cuidado
, prevendo a aplicação de uma multa no caso de essas regras serem descumpridas.
No primeiro exemplo (Velocidade máxima: 60 km/h
), tem-se maiores segurança, certeza e previsibilidade acerca do conteúdo e do sentido do comando, sendo possível avaliar mais facilmente se um determinado veículo está ou não infringindo diretamente essa regra para fins da aplicação de uma sanção: basta medir a sua velocidade. No entanto, uma regra com esse elevado grau de formalidade pode conduzir a problemas de justiça (de sub-inclusão ou sobre-inclusão, mais especificamente). Por exemplo, no caso de uma emergência, talvez uma ambulância precise transitar a uma velocidade superior à estabelecida para poder salvar a vida de alguém. Aplicar a multa nesse caso, valendo-se da literalidade da regra, pode conduzir a uma inequívoca situação de injustiça, uma vez que uma regra de trânsito foi violada para que uma vida pudesse ser salva.
No segundo exemplo (Dirija com cuidado
), o comando tem uma rigidez menor e permite uma maior dose de flexibilidade ao julgador na avaliação da conduta de quem está dirigindo o veículo. No entanto, isso pode conduzir a problemas de insegurança e arbitrariedade na aplicação da regra. Qual a velocidade a que se deve trafegar para se dirigir com cuidado
? Um piloto de Fórmula 1 pode alegar que estava cumprido estritamente a regra ao dirigir a 150 km/h na estrada, mas com o mesmo grau de atenção e zelo que tem em uma corrida da modalidade. Um guarda pode entender que, em um dia de chuva, dadas as condições da pista, dirigir a uma velocidade superior a 60 km/h pode implicar violação à regra e outro guarda pode entender que, na mesma situação, a regra seria violada caso o veículo transitasse a mais de 50 km/h.
Essas questões envolvem, fundamentalmente, um debate sobre o papel da forma e da substância no Direito³.
Ocorre que, embora esse debate seja central em muitos aspectos, permeando várias das discussões jurídicas existentes, ele dificilmente é analisado de forma objetiva e direta. Dito de outra maneira, apesar de a dicotomia forma-substância estar na origem de muitos dos embates jurídicos como Direito Natural v. Direito Positivo; Direito v. Moral; Lei v. Justiça; regras v. princípios e de haver farta bibliografia sobre todas essas outras questões, o elemento nuclear desse debate nem sempre é devidamente estudado e compreendido.
No que diz respeito especificamente ao Direito Tributário, o embate entre forma e substância é uma referência constante quando se trata de planejamento tributário. É frequente a utilização de termos como forma simulada ou dissimulada
, abuso de forma
e prevalência da substância sobre a forma
, com a mera referência a essas categorias sem que haja um maior rigor para se definir o que é forma e o que é substância no sentido em que eles são utilizados no Direito Tributário.
Diante dessa falta de enfrentamento mais direto da dicotomia forma-substância, corre-se o risco de se trabalhar com definições retóricas e casuísticas para se lidar com um tema que é complexo e demanda um elevado grau de coerência. De uma forma simplificada e geral, é possível dizer que o planejamento tributário consiste na possibilidade de uma pessoa organizar as suas ações de modo a evitar, reduzir ou retardar o pagamento de tributos⁴. Ao se trabalhar com definições inconsistentes e casuísticas nesse campo, pode-se chegar a um cenário um tanto caótico em que: (i) não se sabe exatamente o que é lícito ou não fazer para fins de planejamento tributário; (ii) são apresentados critérios irrelevantes, inúteis ou impertinentes para fins de se avaliar a legitimidade de um planejamento tributário; (iii) a falta de uniformidade na aplicação desses critérios conduz a soluções distintas para casos iguais ou semelhantes; e (iv) algumas pessoas são até mesmo punidas de forma gravosa, sem motivos que justifiquem essa punição⁵.
O que se pretende demonstrar ao longo da dessa obra é que uma compreensão mais nítida e mais coerente dos conceitos de forma e de substância e do papel por elas desempenhado, no Direito Tributário, pode conduzir a uma distinção mais segura e mais consistente entre os meios lícitos e os meios ilícitos de economia fiscal.
Na primeira parte da obra, o ponto de partida será precisamente uma definição do que é forma e do que é substância. Inicialmente, será demonstrado o alcance multidisciplinar da dicotomia forma-substância, que é debatida por filósofos⁶, linguistas⁷ e contabilistas⁸, explicitando-se que o objeto de estudo da desse livro diz respeito aos desdobramentos dessa questão no Direito, mais precisamente no Direito Tributário para fins de análise da licitude de planejamentos tributários.
A partir daí, procuraremos definir um conceito de forma e de substância no Direito Tributário com base nos sentidos que são comumente atribuídos a esses termos no contexto jurídico. Antes, porém, de ingressarmos nessa análise no Direito Tributário trabalharemos, de uma maneira ampla, com os conceitos de forma e de substância no Direito em geral.
Uma distinção em sentido amplo entre forma e substância relaciona a forma às questões externas relativas à estrutura geral e finalística de uma determinada unidade jurídica⁹ (norma, instituição, negócio etc), mais especificamente ao arranjo geral e sistemático visando a uma determinada finalidade. Por sua vez, nessa acepção ampla, a substância consiste nos complementos materiais, isto é, nas questões internas, referentes aos componentes que integram o conteúdo da unidade jurídica e que se apresentam formalmente ordenados.
A relação entre forma e substância pode ser considerada: (i) necessária, na medida em que unidades jurídicas sempre terão uma forma e um conteúdo; (ii) simbiótica, uma vez que normalmente há uma sintonia entre a forma adotada e o conteúdo da unidade jurídica; e (iii) conflituosa, em alguns casos, quando houver uma relação de tensão ou de incompatibilidade entre a forma adotada e o conteúdo existente.
A dicotomia forma-substância também se coloca na Teoria Geral do Direito, notadamente no campo da Teoria da Argumentação Jurídica. Em linhas gerais, uma razão substancial é definida como uma razão moral, econômica, política, institucional ou social para a tomada de uma decisão/ realização de uma ação. Por outro lado, uma razão formal, diferentemente da razão substancial, é uma razão incorporada ao Direito para a tomada de uma decisão/realização de uma determinada ação, que exclui de consideração, reduz o peso ou supera uma razão substancial¹⁰.
Após explorarmos os desdobramentos dessa distinção entre razões formais e substanciais, passaremos a tratar propriamente da distinção entre forma e substância no Direito Tributário, em que essa dicotomia aparece em dois principais sentidos¹¹. Em um primeiro sentido, são feitas referências a essa dicotomia para se tratar da prevalência ou não das formas e dos conceitos de Direito Privado para fins de aplicação das normas tributárias. Em um segundo sentido, a ela se alude para se cuidar da compatibilidade da forma adotada pelo contribuinte com a substância econômica do ato praticado vis-à-vis à norma tributária (pressuposto material/razão substancial, ex: forma jurídica de compra e venda, mas substância de doação).
É primordialmente nesse segundo sentido acima referido que a questão da forma e da substância será abordada neste trabalho. O foco do trabalho será analisar em que medida a dicotomia forma-substância se revela útil para tratar dos conceitos de evasão e de elisão tributária, em especial no que diz respeito à aplicabilidade de institutos como a simulação, o abuso do direito, a fraude à lei e a teoria da prevalência da substância sobre a forma
, abordados mais adiante.
Na segunda parte da obra, trataremos do princípio da legalidade tributária, na condição de uma limitação constitucional ao poder de tributar.
A legalidade tributária será dissecada em seu aspecto formal e substancial¹². O aspecto formal da legalidade reside na imposição de um procedimento para que determinados sujeitos possam criar, modificar ou revogar disposições que impliquem a exigência de tributo¹³. O aspecto material da legalidade constitui a exigência de que o conteúdo das normas tributárias seja dotado de previsibilidade e de determinabilidade. Nesse segundo aspecto, serão examinadas as principais teorias existentes para explicar o grau e o modo como operam essa previsibilidade e determinabilidade no Direito Tributário brasileiro, em especial: (i) a teoria da tipicidade fechada
de Alberto Xavier¹⁴; (ii) a teoria dos conceitos jurídicos
de Misabel Derzi¹⁵; e (iii) a teoria da tipicidade aberta
de Ricardo Lobo Torres¹⁶.
Para além de uma apresentação expositiva dessas teorias, procuraremos analisar se elas são capazes de explicar, de maneira adequada, a exigência de previsibilidade e determinabilidade imposta pela legalidade tributária, no atual estágio de evolução da teoria jurídica.
Em seguida, traçaremos um panorama geral da legalidade tributária no Direito Tributário no Brasil contemporâneo, analisando como o princípio da legalidade pode ser compreendido diante do quadro constitucional existente e das complexidades e peculiaridades inerentes à sociedade contemporânea. Examinaremos os mecanismos de que a legalidade tributária se vale para preservar e concretizar as normas tributárias e analisaremos o papel da analogia no Direito Tributário.
Na terceira parte da obra, trataremos da capacidade contributiva como uma norma multidimensional que confere substância ao Direito Tributário, em seus múltiplos aspectos, aqui delineados como os seguintes: (i) uma pretensão geral de justiça tributária para o sistema normativo; (ii) a limitação