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A Sala dos Oito Espelhos: Folclórika - Livro 2
A Sala dos Oito Espelhos: Folclórika - Livro 2
A Sala dos Oito Espelhos: Folclórika - Livro 2
E-book358 páginas4 horas

A Sala dos Oito Espelhos: Folclórika - Livro 2

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Sobre este e-book

Após ter sido incapaz de impedir o Ventríloquo de Mortos no Monte Nhaminiwi, Räel é enviado para o subterrâneo de Akakor a fim de ajudar Kar'Amuru, um Mob'Uraxiba kuru, a resgatar parte de sua tribo feita prisioneira pelos capelobos. A trilha deixada pelo inimigo os levará direto aos cofres da Akadêmica, onde, além de outros artefatos, um poderoso grimório foi selado. Mais uma vez o encantador de flechas terá de enfrentar o magista negro, mas desta vez, não estará sozinho: magistas, kury, arcontes e príncipes entrarão na luta para evitar que o inimigo torne a vencer.

Em uma aventura repleta da nossa rica mitologia, A Sala dos Oito Espelhos, continuação do Exército dos Imortais vai te transportar mais uma vez para os segredos que nosso folclore esconde.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de mar. de 2024
ISBN9788595941052
A Sala dos Oito Espelhos: Folclórika - Livro 2

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    Pré-visualização do livro

    A Sala dos Oito Espelhos - Glauco J. S. Freitas

    Prólogo

    As Três Deusas que criaram o mundo. Era assim que eram conhecidas, mas o nome não era apropriado, na verdade, era um erro de tradução. Erro dos Navegantes, que assimilaram a religião dos povos do continente quando ali chegaram e tropeçaram no idioma que lhes era pouco familiar: As Três Deusas que criaram o Tudo. Esse era o nome mais correto.

    Sula era a gêmea mais velha, nascida uma fração de instante antes. Era também a mais sábia e percebeu que o Tudo estava vazio e sem propósito. Usando Fogo, Água, Terra e Ar criou o mundo, forjou o Sol, a Lua e as estrelas.

    Mali, a gêmea do meio, viu o que a irmã tinha criado e achou-o perfeito. A mais amorosa de todas, percebeu que aquela perfeição não deveria ficar apenas para elas, então com nada mais que um sopro daquela que era a energia mais pura de todas, a Vida, criou aqueles que habitariam tal mundo. Para que os seres vivos pudessem então crescer e prosperar, girou o mundo sobre o indicador e deu-nos o Tempo.

    Kaiya, a gêmea mais nova, chorou diante do trabalho das irmãs, pois nada poderia ser mais perfeito. A mais generosa, então, não criou nada, mas, sim, presenteou o mundo com a Magia: ao contato da Vida com a Magia, espíritos surgiram, habilidosos em moldar a Natureza e protegê-la.

    Além de tais entidades, porém, nada mais podia tocar a Magia e usá-la, e por eras Kaiya entristeceu-se. Ao perceber que ninguém havia entendido o presente que dera com tanta generosidade, a irmã mais nova chorou uma vez mais.

    A fim de consolarem sua gêmea mais nova, Sula e Mali usaram sua sabedoria e seu amor para criar algo que pudesse aproveitar o presente generoso de Kaiya. Usando os bens mais preciosos que tinham, criaram a Humanidade: Sula uniu Alma — aquilo que nos dá propósito — e Mente — aquilo que nos permite armazenar conhecimento —, e Mali adicionou Luz, para que nos guiasse.

    Por algum motivo, contudo, a criação tornou-se tão apática que a Vida não se sustentava em seus corpos, indo embora feito areia numa ampulheta.

    Enquanto trabalhavam para consertar o presente para Kaiya, Sula e Mali foram surpreendidas pela irmã. Não queríamos presenteá-la com algo quebrado, argumentaram. A mais generosa das três olhou para a criação e sorriu: usando um pequenino fragmento de noite, Kaiya adicionou Escuridão ao homem, pois o que lhe faltava era equilíbrio.

    Criados para o único fim de usar a magia dada por Kaiya, o ser humano logo não pôde escapar à sua natureza: tinha sede por poder, sede pela magia, e esta não podia ser saciada. A magia era usada para tudo, para o trabalho nas plantações, para construir, forjar, locomover-se, satisfazer seu apetite, matar a sua sede, curar suas doenças, erguer, derrubar, matar…

    Um dia as deusas receberam a visita de Luizón. O deus da Morte nascera no exato momento em que Mali ditara o fluxo do Tempo. O Senhor do Fim do Caminho reclamava a elas que suas criações estavam passando dos limites: estavam usando a magia para curar, prolongar suas vidas, driblar o Tempo! Aquilo havia diminuído seus poderes, mas ele manteve-se calado, pois no fim, todo homem morreria. Contudo, havia agora humanos que buscavam a vida eterna! Buscavam destroná-lo! Audácia e ofensa!

    As deusas ignoraram os protestos de Luizón. Disseram que a magia fora dada como presente ao mundo e que os homens foram dados como presente à magia, e que a ela pertenciam e ela lhes pertencia. Limites não seriam impostos.

    Luizón sorriu, pois sabia que no momento em que a morte não existisse para o homem, o homem tomaria o lugar das Deusas. E isso não tardou a acontecer: imortal, a Humanidade agora dominava a Vida e ignorava o Tempo, espalhava o Fogo e poluía o Vento, assassinava a Água e escravizava a Terra. A Mente se perdeu e a Alma foi corrompida.

    Como mães que sofriam ao ver os erros dos filhos, as Três Deusas viram que para ensinar-lhes o Caminho, era necessária punição. 

    E para tal, pediram a ajuda de Luizón.

    Se todo homem era, então, imortal, pois nenhuma doença o acometia, nenhum ferimento era incurável e a magia dada por Kaiya era dominada ao ponto de ser ineficaz como arma, o Senhor dos Mortos encontrou o mais poderoso humano e ofereceu-lhe o poder que mais ninguém poderia deter: o da Morte.

    Maledicência.

    Diferente de Luizón, tal homem agora não podia matar ao bel prazer, mas através da Escuridão que havia em si, podia amaldiçoar o corpo, sabotar a alma, corromper o espírito, adoecê-los para além da cura que a magia provinha.

    Os humanos perceberam, pela primeira vez, que a Escuridão podia ser tão poderosa quanto a Luz e passaram a estudá-la. Entenderam a morte, entenderam a própria fragilidade, entenderam o medo e, tendo Luz e Escuridão, Mente e Alma, Vida e Tempo, sabendo como destruir, finalmente aprenderam a criar. O mundo havia retornado ao equilíbrio.

    Mas a ganância de alguns homens nunca se sacia.

    E logo a Hecatombe veio.

    prisioneiro

    Capítulo 1

    1

    Ele já não aguentava mais. Anhangás eram resistentes à dor — ao menos, se comparados aos humanos —, mas este já tinha chegado ao limite. Estava lá, desmaiado, caído de joelhos com os braços esticados para trás, preso à parede por longas correntes de metal. Tentou usar magia para escapar, mas algo o impedia: talvez as correntes fossem encantadas, ou talvez a sala em si. Só sabia que não conseguia conjurar nada.

    Não tinha um só machucado no corpo. Nenhuma prova de que vinha sendo torturado. Mas, é claro, isso também era parte da tortura. Ele já tinha sofrido cortes, fraturas, queimaduras. Já tinha sido atingido por espadas, socos, chutes e magias. Sua mente já tinha sido distorcida com ilusões, pesadelos, alucinações e mesmo dor induzida.

    No final de cada sessão, ele era curado. Completamente curado. Muitas vezes achou que estava prestes a morrer, e então vinha o aterrador alento de ser curado novamente.

    E o tormento recomeçava.

    A porta abriu e passos suaves ecoaram nas paredes de pedra. Era um cubículo pequeno e escuro, claramente abaixo da terra, iluminado através de pequenas frestas próximas ao teto que permitiam a entrada da luz diurna e pelos cabelos chamejantes do prisioneiro. O anhangá acorrentado abriu os olhos e viu os pés do torturador. Urina escapou-lhe e uma pequena poça formou-se abaixo dos joelhos.

    — Você me teme — disse o torturador numa voz suave, quase fraternal —, mas não me diz o que quero saber. Por quê?

    A resposta do prisioneiro se resumiu ao grunhido e ao choro que não conseguiu segurar.

    — Estou ficando cansado… Esqueci seu nome… — disse o torturador, como se esperasse ouvi-lo novamente. — Bem, não importa. Eu tenho outro compromisso, portanto, você pode me dizer o que quero saber, ou ficar de boca fechada, apesar de ter feito isso o dia todo e não lhe ter servido de nada.

    O torturador — outro anhangá, aliás — encarou o torturado, esperando uma resposta, mas essa, novamente, não veio.

    — Vou matá-lo de qualquer jeito. — Isso não amedrontou o prisioneiro: ele não tinha qualquer ilusão quanto a fugir dali. — Mas você pode escolher como. Veja, eu tenho esse compromisso do qual lhe falei e não posso me atrasar. Portanto, se me der a informação de que preciso, você morrerá de forma rápida. Afinal, eu não tenho tempo a perder… Mas se não disser, bem… Como eu disse, eu não posso chegar atrasado, mas eu posso voltar mais tarde, não posso? — Isso atingiu o prisioneiro, que sequer teve fibra para evitar demonstrar. — E pelos próximos dias eu não tenho nada melhor a fazer, portanto minha companhia seria uma constante. É o que quer?

    — Não! — Era mais um gemido do que uma palavra, ainda assim, era a primeira vez que o prisioneiro falava desde que fora acorrentado naquela manhã.

    O torturador riu.

    — Normalmente eu ficaria ofendido por ter minha maravilhosa companhia sendo recusada tão veementemente, mas eu acho que não posso culpá-lo… — Ele deu de ombros em meio ao longo suspiro. — Então, vai falar?

    O anhangá desatou a chorar, lágrimas que brilhavam na meia-escuridão, mas assentiu.

    — Ótimo, ótimo. Vou sair rapidinho, afinal, acho que você precisa de um tempinho para engolir esse choro. Mas já, já eu volto.

    O anhangá — o torturador — deixou a sala e fechou a porta atrás de si. No corredor, duas pessoas o esperavam. Ele abriu um enorme sorriso:

    — Ele falará.

    2

    Já era dia, mas isso não significava grande coisa lá embaixo. Para todo lugar que se olhasse era só escuridão e a luz avermelhada e bruxuleante dos incêndios que ricocheteavam nas paredes não eram de grande ajuda. Paredes. Essa era uma palavra que perdia significado naquelas ruínas, afinal, numa cidade subterrânea, quem olhasse para cima buscando o céu, só veria rocha.

    Aquelas ruínas marcavam o que antes fora conhecida como Akan'Mokoi, apenas mais uma das aldeias kury espalhadas pelo subterrâneo de Akakor. Não era das mais conhecidas entre os humanos devido à forte política de seus líderes, que evitavam até mesmo tratos comerciais com os da superfície. Principalmente por isso, na superfície de Akakor, não houve grande alarde quando a aldeia caiu e, talvez mesmo que a notícia tivesse chegado à superfície, o mais provável é que fosse desdenhada pelos humanos como sempre eram: um monte de túneis ligando câmaras um pouco maiores não é uma cidade!.

    Os kury eram guerreiros. Dizia-se que a marca de fogo que lhes fora imposta por M'boi Tatr os mudara: diferente dos anhangás, cujas madeixas tornaram-se chamas, e dos andurahs, cuja própria cabeça se tornara flamejante, os kury — com seus corpos feitos de pedra — mantinham essa incandescência em seu interior. Incandescência que se revelava nas fendas de seus corpos, em seus olhos e em suas bocas como magma luminoso e em seu temperamento beligerante. Eram pequenos, tendo a altura de meio homem, mas eram temidos tanto pelos humanos quanto pelos filhos de M'boi Tatr.

    E, ainda assim, Akan'Mokoi não resistiu: os capelobos surgiram de lugar algum e logo caíam sobre os kury em número muito superior. Não havia nenhum exército na cidade — afinal, os kury não constituíam exércitos —, mas os kury que lá se encontravam — talvez dois mil deles — perduraram por uma semana contra os quinze mil capelobos, que por três vezes quase recuaram e só não o fizeram pois seus números voltavam à vida a cada meia-noite.

    Agora Akan'Mokoi estava ocupada por monstros e a aldeia kuru ardia.

    3

    Aquela era uma das maiores câmaras da cidade: Okara'tata, a Praça do Fogo, um reduto religioso. Era uma área isolada, longe dos incêndios e das pilhagens — era uma câmara de paredes lisas, sem qualquer adorno ou enfeites, afinal, o Fogo tudo consome —, mas nem por isso estava melhor que o resto de Akan'Mokoi: foi um dos principais pontos de resistência e ainda fedia a terra queimada.

    Eles se levantaram: eram apenas cinco e estavam espalhados, sentados sobre colunas caídas e rochas partidas. Tinham um ar condescendente e um meio-sorriso no rosto — como se estivessem se divertindo com alguma coisa. Eram altivos, de cabelos flamejantes e pele pálida, também esguios e belos e traziam arcos às costas e espadas às cinturas.

    As armaduras dos anhangás eram leves e bem-acabadas — contrastando demais com as rústicas placas de metal espalhadas de qualquer maneira sobre os capelobos que mancavam ao seu encontro. Eles vinham em oito e aquele que vinha à frente, e que era o maior de todos por quase uma cabeça, tinha um martelo de guerra impressionante às costas. Aqueles que o acompanhavam não eram tão grandes assim, mas pareciam tão ou mais ferozes, cada qual com sua arma em punho. À visão dos anhangás, o líder capelobo cuspiu qualquer coisa amarelada no chão, o que só fez aumentar o meio-sorriso no rosto dos filhos da Noite.

    Havia pouca luz no local — apenas as madeixas incendiárias dos anhangás —, mas os capelobos enxergavam particularmente bem na escuridão, e os próprios anhangás achavam que a penumbra podia favorecer a discrição do encontro. Ainda assim, eram observados de perto.

    Do negrume acima.

    4

    Tinha o arco negro às suas costas e a aljava pendia de trás de sua cintura quase do lado contrário à espada curta embainhada. De dentro do capuz azul — um azul tão escuro que seria confundido com preto a menos que estivesse sob a luz do sol —, observava o encontro que acontecia quase seis homens abaixo: Naiah mantinha-se dependurada por uma corda muito bem presa ao teto da câmara e ao cinto de couro que laçava seu quadril, seu corpo virado de ponta cabeça na escuridão, aljava e bainha dando-lhe tapinhas às costas como que para lembrá-la de que aquela não era a posição natural do mundo.

    Não podia ouvi-los lá de cima, mas notou a hostilidade entre os grupos: se os capelobos tinham de lutar contra a sua natureza violenta, os anhangás, muito mais controlados, pareciam provocá-los de propósito sabendo que os monstros não podiam atacá-los. Agora, por que não podiam? Os anhangás ainda tinham aquele sorriso idiota no rosto e os capelobos grunhiam mais do que falavam. Queria ouvir o que diziam, mas chegar mais perto era arriscado.

    Foi quando um dos anhangás arremessou um saco no chão entre os capelobos: pelo peso, deveriam ser moedas lá dentro. O menor dos capelobos — e que parecia o mais visceral de todos — apanhou o saco e sorriu — se é que dava para reconhecer um sorriso naquela cara de tamanduá — após abri-lo. Para que os filhos de Mboi Tatr queriam moedas? Os capelobos lançaram mais alguns urros e deram as costas para os anhangás, a caminho do centro de Akan'Mokoi — e da pilhagem.

    Por um segundo Naiah teve certeza de que os anhangás sacariam os arcos e disparariam contra as costas dos capelobos, mas isso não aconteceu. Eles apenas ficaram ali, parados, como se esperassem por algo… Desviou os olhos do chão e fitou o negrume que escondia a abóbada: algo se acendeu num tom púrpuro. Era o sinal.

    A mão esquerda foi ao arco e a direita sacou a flecha. A corda foi retesada até a orelha e a mira imaginária surgiu à sua frente.

    Um assovio discreto cortou o ar na Praça do Fogo. Naiah poderia reconhecer aquele som em qualquer lugar: uma flecha viajava e seu alvo era óbvio. Viu a flecha um instante antes de ela cravar-se com força no chão: uma aura verde e marrom dançava sobre ela, traçando a um dedo da cabeça daquele que aparentava ser o líder dos anhangás. O chão se ergueu em espinhos e, da fenda criada entre os tijolos que formavam o chão da praça, estalagmites empalaram os anhangás, rasgando suas pernas e subindo através de seus corpos.

    Sangue anhangá escorreu pelas lanças e gotejou de seus gumes afiados: quatro dos anhangás estavam mortos e uma última estaca, das menores que se ergueram por todo o chão, transfixava o pé esquerdo do quinto: o líder dos anhangás gemia segurando a perna ferida com o pé ainda preso à lança de terra, arquejando e praguejando. Algo assoviou acima de sua cabeça e, tão logo seus olhos buscaram a fonte, pés foram iluminados por suas madeixas de fogo, pés que o atingiram no peito e no ombro, e o arremessaram ao chão. Mal tendo tempo para se recuperar, viu o arco retesado, a flecha encaixada que lhe tocava o nariz, arrancando um filete de sangue.

    Suas madeixas iluminavam o rosto por baixo do capuz: a pele jovem e bronzeada, os traços bonitos — para uma humana —, lábios finos pintados de negro, cabelos que fugiam do capuz feito água corrente e olhos escuros que se iluminavam como painita selvagem diante das chamas.

    Virou a cabeça ao ouvir passos e viu a espada cujo aço iluminava-se com fios rubros revelados pelo fogo: uma Lâmina Sangrenta, tinha certeza. Uma das espadas enfeitiçadas que nunca perdiam o fio, forjadas num juramento de morte.

    — Preciso mandar não se mover? — O anhangá não tinha certeza se aquela era a voz de um jovem ou de um guerreiro experiente. Ele apenas abanou a cabeça numa negativa. — Ótimo.

    A assassina se moveu e o anhangá viu seus olhos tomando um tom azul, quase cinzento.

    — Vugness'Um. — As palavras foram ditas depois que um pedaço de papiro com inscrições em abanheenga foi colada contra a testa do filho da Noite, que adormeceu no mesmo segundo.

    — Vá até Yrael e traga-o ao local marcado — disse Räel, puxando o pé do prisioneiro adormecido para fora da estaca de terra.

    A arqueira assentiu e então puxou o capuz por sobre a cabeça, depois examinou o chão à sua volta, distorcido pelas estalagmites que se erguiam do chão. Já tinha visto Räel encantar flechas e mais flechas, mas nunca daquela maneira.

    — Como fez isso? — ela indagou.

    — Isso? — Ele apontou o local onde as estacas de terra se ergueram num círculo assimétrico. — Encantei uma flecha, calculei a abrangência e disparei.

    — Mas como fez uma estaca menor aparecer bem onde devia?

    — Sincronizando o fluxo de magia que emanava da terra.

    — Eu… não sabia que se podia fazer isso! — Aquilo colocou um sorriso em Räel. — Quando vai me ensinar isso?

    — Um dia.  Agora vá chamar Yrael.

    Naiah, novamente sob a tutela de Räel, assentiu uma vez mais e correu para as sombras, sumindo na escuridão.

    5

    O anhangá deixou a sala e se juntou a Räel e Naiah no corredor. Os arqueiros sentavam-se no último degrau de uma escadaria que terminava naquele corredor escuro, mal iluminado por tochas velhas que erguiam um cheiro enjoativo enquanto queimavam — a sala da qual Yrael saiu era só uma entre muitas.

    — Se ele disse que vai falar, por que saiu de lá? — indagou Naiah.

    — Ah, ele começou a chorar. Não gosto de ver gente chorando, me corta o coração.

    — Que coração? — desferiu Räel, como uma chicotada.

    O anhangá gargalhou.

    — Vamos, Räel, não seja assim.

    O arqueiro soltou um muxoxo condescendente e desviou o olhar.

    — Você pega o depoimento, não é?

    O desgosto no rosto de Räel foi resposta suficiente.

    — Eu tenho que me preparar para a reunião que ocorrerá na Akadêmica — disse o anhangá a modo de justificativa.

    — Eu não torturo ninguém, Yrael, você sabe disso! E nem capturo, mas abri uma exceção e você já…!

    — Não precisa torturar ninguém! — apaziguou o anhangá — Eu já o quebrei para você. Só preciso que você vá lá e anote o que ele diz.

    — Se ele mudar de ideia…!

    — Ele sabe que se não falar, eu vou voltar mais tarde — a voz soava serena, mas o rosto do anhangá era maligno — e ele não quer isso.

    Räel olhou para a aluna, que deu de ombros, ainda que não parecesse muito mais feliz com a situação do que ele.

    — Está bem, que seja! — disse o arqueiro, cansado — Mas essa será a única vez!

    — Eu sei, eu sei. — Um sorriso perigoso se abriu no rosto do anhangá. — Agora pegue isso, ponha em volta do seu pescoço e jogue fora assim que sair daqui.

    Räel estendeu a mão sem realmente pensar naquilo e apanhou o cordão das mãos de Yrael: era de prata, comum, com um pingente qualquer em forma de esfera com padrões desenhados.

    — Para quê, isso?

    — Apenas faça — respondeu Yrael, num tom despreocupado. — O que fará quando acabar aqui?

    O arqueiro encarou o anhangá por um instante, tentando adivinhar o que se passava na mente dele.

    — O que quer? — Apesar do tom cansado, Yrael conhecia o encantador de flechas bem demais para saber que havia atiçado sua curiosidade.

    — É algo que terá de fazer sozinho — ele diz, lançando um olhar para Naiah.

    — Ei, como assim? — indagou a própria, sendo ignorada enquanto Räel se levantava e caminhava com Yrael, afastando-se alguns poucos passos da escada.

    O anhangá esfregou os dedos e então estendeu a mão à frente do rosto, fitando suas unhas.

    — Não preciso dizer que é confidencial, certo? — Da ponta de seus dedos, os olhos alaranjados saltaram para os de Räel.

    — Não é sempre?

    O silêncio de Yrael durou alguns instantes, ele então abaixou o tom de voz e passou a falar em abanheenga, o idioma dos filhos da Noite.

    — Informação conseguida com outro…Prisioneiro nos diz que um exército de capelobos está se formando na fronteira com Maruýn.

    — Do que vocês estão falando aí, hein? —

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