Sombras Do Passado
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Sombras Do Passado - Milton Borges
Sombras do Passado
Milton Borges
Direitos autorais © 2024 Milton Borges
Capa e diagramação
Antonio Soares (@a.f.soaress)
Imagens de capa
Personagens via Bing (Editados)
Cenário via Cavans
Pistola (contracapa) - Imagem de Brett Hondow por Pixabay
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Catalogação na Fonte
_____________________________________________________
B732s
Borges, Milton.
Sombras do passado / Milton Borges. – 1. ed. – Teresina:
Publicação independente, 2024.
ISBN 978-65-00-98799-7
1. Literatura Brasileira – Romances 2. Literatura
Piauiense – Romances I. Título
CDD – B869.3
_____________________________________________________
Ficha Catalográfica: Bibliotecária Larissa Andrade CRB – 3/1179
Todos os direitos reservados. De acordo com a Lei nº. 9.610, de 19/02/1998, nenhuma parte deste livro pode ser fotocopiada, gravada, reproduzida ou armazenada num sistema de recuperação de informação ou transmitida sob qualquer forma, por meio eletrônico ou mecânico, sem prévio consentimento do autor.
A violência leva à violência, e justifica-a.
Théophile Gautier
A diferença entre assassino e herói está na importância dos mortos.
Joe Abercrombie
PARTE UMA - MORTE DE ENCOMENDA
Saque bancário - São Paulo
1
A TARDE IA À MEIO, O SOL RELUZIA foscamente por trás das mantas de nuvens acinzentadas, como prenúncio de um anoitecer precoce, quando ele encaixou o SUV numa vaga do estacionamento particular da avenida. Pegou o canhoto com a placa do carro e o horário em que havia estacionado com o rapaz do caixa.
Sob o frio cortante, percorreu as poucas quadras em marcha apressada, coleando entre o fluxo de duplo sentido de pedestres das calçadas, até a agência bancária.
Chegando ao prédio da instituição, inseriu o cartão bancário no leitor do terminal de autoatendimento, apertou a tecla da opção caixa para a fila de prioridade – embora ele ainda não estivesse verdadeiramente enquadrado nessa categoria especial, uma liberalidade cometida por motivo da pressa, de alguém que lutava contra o tempo para fechar rotineiramente o apertado cronograma do dia de suas atividades profissionais.
Retirou a senha com os números, depositou o Rolex e o chaveiro com as chaves do Land Rover, do apartamento e do escritório na caixinha do passa objetos, cruzou a porta giratória ao saguão de atendimento, pescou suas posses do outro lado e postou-se, impaciente, no aguardo de sua vez ser anunciada no painel eletrônico de chamadas, como um simples usuário.
A sua iniciativa de enfrentar a fila e sacar a bolada na boca do caixa uma vez ao mês ia drasticamente contra sua concepção de bom senso: as normas a que havia se arraigado visando o resguardo pessoal.
Na verdade, uma completa sanidade. Uma atitude não só enfadonha, como claramente arriscada, que até há pouco tempo ele não se dispunha de modo algum a efetuar, depois de chegar ao ponto aonde chegara, como uma pessoa bem-sucedida economicamente.
Abandonar o conforto e a segurança do seu local de trabalho e desabalar imprudentemente à agência bancária mais próxima do seu escritório, onde era correntista, ficando por um intervalo incerto em posição de vulnerabilidade à ação dos amigos do alheio, que erravam pela cidade em busca das vítimas da vez, o provedor involuntário de suas necessidades materiais, por um intento que nem mesmo lhe trazia uma sincera satisfação pessoal.
No máximo, uma sensação de dever cumprido, se tanto. Ou mais acertadamente, um refrigério em sua consciência de bom samaritano. Um idiota que não sabia fechar os olhos a problemas que não eram mais para lhe despertar nenhuma consideração.
Há muito ele não se dispunha a se dirigir a uma agência bancária senão para resolver questões com a gerência, como o estudo da viabilidade de uma aplicação financeira, as opções mais compensadoras no período vigente para alocar recursos, já que por mais que procurasse manter-se bem-informado, não tinha como acompanhar as constantes oscilações do instável mercado financeiro nacional.
E tudo o mais, excetuando os eventuais e modestos saques em caixas de autoatendimento para uma necessidade de última hora, quando não dava para usar os cartões de créditos, as suas rotineiras operações financeiras relacionadas àquele banco e mais duas outras agências, de diferentes grupos, onde também era correntista, eram executadas no conforto de onde estivesse, pelo modo online, nos aplicativos das instituições.
Mas há alguns meses, por uma causa que não era mais para lhe dizer o mínimo respeito, muito pelo contrário, e sim para merecer o seu total descaso, vinha violando irresponsavelmente as suas regras de segurança pessoal, entrando em filas e sacando uma quantia que não era pouca, ficando à exposição das temidas saidinhas de banco.
E isso tudo porque a beneficiada ainda não tinha, em sua imprudência, aberto conta bancária. Alguém que lhe estraçalhara o coração há uma eternidade, numa traição a qual ele jamais conseguiu esquecer o ar de angústia estampado no rosto da traidora, na última vez em que se encontraram, com um sugestivo apelo de perdão jamais verbalizado.
Mesmo passado esse tempo todo, não conseguiu esquecer o instante em que se viu abandonado pela mulher, que, ao seu julgamento da ocasião, ou da vida toda, ainda tinha lá suas dúvidas, era para ser a sua cara-metade, o seu perfeito complemento, a banda da maçã, alguém para gozar a companhia, a intimidade até os últimos dias da existência terrena de um dos dois. Na alegria e na tristeza, apoiando e sendo apoiado incondicionalmente, não interessando as adversidades que enfrentassem.
Quanta ingenuidade! Tentar eleger e sentir-se eleito por alguém como companhia perpétua enquanto houvesse vida, como se esse alguém estivesse vinculada a ele, e vice-versa, como fruto de um pacto misterioso engendrado pelo destino. Uma prova que não resistiu ao simples (ou talvez não tão simples assim, a se levar friamente em conta as necessidades do período) sopro do interesse econômico. Uma frustação que carregou por um bom tempo. Ser trocado por um partido que não tinha nada a mais que ele, exceto a melhor condição financeira da família.
E a sua opinião não era influenciada pelo despeito, ou assim imaginava, já que nos aspectos que não se relacionassem a dinheiro ele se julgasse com mais atributos que o rival. Era mais alto, mais forte, mais inteligente, mais desenvolto e tinha uma melhor aparência fisionômica, embora sem merecer nenhum destaque especial ao crivo analítico das garotas, entre a rapaziada do seu ciclo de afinidade.
E ainda assim, com uma evidente vantagem nos predicados pessoais, fora passado para trás, quase às vésperas do casamento. Uma facada traiçoeira, e isso pelo cara que julgava ser o seu melhor amigo.
A dor não era somente pela perda em si, mas também pela sensação como perdera a parada. A garota o abandonara com uma expressão de compadecimento, como a expressar no gesto sugestivamente de desamparo que não tivera culpa no cartório, já que não havia alternativa, na esperança de que ele viesse a entender a forçada deslealdade, e que um dia pudesse, num rasgo de grandeza emocional, lhe conceder o benefício do perdão.
Ele jamais a perdoou, simplesmente não conseguiu, por mais que tentasse entender que a decisão não partira da amada, e sim da família dela, a qual ela devotava uma obediência irracional e canina. Dos pais interesseiros, que passavam por grave dificuldade financeira e entreviam na família do seu desleal concorrente a tábua de salvação para evitar a falência que ameaçava submergir o seu negócio, constituído de uma modesta rede de padarias, que estava passando por uma grave dificuldade de caixa.
Levou um tempão para ele superar o trauma do abandono. A partir dali tornou-se mais frio e calculista e tratou de apagar da mente a bobagem de alma gêmea. O romantismo ingênuo e imbecilizante. Se alguém estivesse fadado a viver uma grande paixão, dessas programadas pela aleatoriedade do destino, certamente não era ele.
Quanto ao resto, não tinha do que se queixar, aferrou-se ao trabalho como uma profissão de fé, e procurando as melhores oportunidades se saiu muito bem, transformando-se depois de muito suor e sacrifício num homem rico.
Enquanto que, seguindo uma trajetória completamente inversa, como uma espécie de maldição que ele nunca rogou, tanto por achar inútil, como por receio de efeito rebote, todos os seus desafetos naufragaram na falência: a família da antiga amada, a do seu algoz, assim como o jovem casal, que se revelou inepto para administrar com sabedoria seus recursos financeiros.
Ele só veio a se inteirar da bancarrota extensiva há alguns meses, uma vez que em sua promessa de se desvencilhar da amargura da frustação, a qual poderia lhe comprometer o futuro por empanar o seu foco com resíduos de perda, resolveu passar uma esponja seletiva no passado.
O resultado foi mais lento do que o imaginado, afinal as lembranças mais marcantes convencionalmente são as piores, as mais grudentas. E ninguém consegue reformular o seu passado, embora muita gente opte, por motivos diversos, em revesti-lo de mentiras. O que não era o seu caso, que sempre foi muito realista.
Mas o tempo é o melhor remédio. Se não cura completamente todas as amarguras, tira-lhes a contundência, amortizando aos poucos seus efeitos. De modo que quanto menos se espera, as frustações, as recordações mais dolorosas se desbotam e perdem a importância outrora atribuída a elas para as novas procissões de acontecimentos.
E diferente do que se podia imaginar, a informação que a mulher que o trocou por uma perspectiva supostamente mais promissora, como uma reles transação comercial, estava na bancarrota, em estado de quase indigência, não lhe trouxe nenhuma satisfação íntima, tipo: a vingança é um prato que se come frio.
O efeito fora justamente o oposto. Ele sentiu-se foi compadecido do estado dela. Uma pobre infeliz, que em sua fraqueza espiritual tornou-se vítima de um golpe de ironia do destino.
E era por isso que estava ali, sacando inquietamente uma bolada na boca do caixa para prover as necessidades do mês da mulher, enquanto não tivesse providenciado adequadamente uma situação que a possibilitasse viver condignamente.
Em poucos minutos de espera, revolvendo as lembranças desventurosas do passado juvenil, o painel eletrônico anunciou os números da sua senha e do caixa ao qual fora destinado. Com um suspiro de alívio, ele se precipitou ao atendimento.
Sentado numa cadeira longarina da fila do setor de atendimento do banco, um homem moreno escuro de seus trinta e poucos anos, cabelos crespos curtos, envergando uma jaqueta barata de couro sintético, altura mediana, físico compacto, acompanhou com olhar disfarçado o deslocamento do senhor cinquentão de altura também mediana, cabelos grisalhos e peso acima do limite recomendável pelos guardiões informais de controle da circunferência abdominal, o torso agasalhado por um blazer acolchoado de ótima qualidade cuja bainha lhe chegava à metade da coxa, rumo à boca do caixa.
A campana
1
O HOMEM MORENO ESCURO EMERGIU da agência bancária na cola do senhor de blazer acolchoado. Mantendo uma distância prudente, seguia-o pelas calçadas apinhadas sempre se ocultando por trás das barreiras móveis e renováveis dos corpos dos circunstantes que marchavam, durante uma parte dos seus percursos, no mesmo sentido deles, evitando expor sua presença e gerar motivo de desconfiança.
Alcançando o estacionamento particular, o senhor de blazer deslizou ao interior do espaço, enquanto o homem de jaqueta sintética continuou como que casualmente a estugar os passos, detendo-se repentinamente um pouco adiante do portão, enfiando a mão num dos bolsos da calça, pescando a carteira de cigarros e o isqueiro.
Esperou que o senhor saísse, o cigarro pendente da boca, exalando nuvens de fumaça pelas narinas, as quais lhe borravam intencionalmente as feições.
Decorrido um minuto, a cancela levantou e o Land Rover assomou pela abertura de saída, imiscuindo-se no fluxo do trânsito e sumindo entre dezenas de latarias e cromados anônimos dos veículos apressados.
Ele jogou o cigarro no chão e o esmagou com o solado do tênis, afundando a mão no outro bolso da calça, sacando o celular. E prosseguiu a caminhada, agora em passos morosos, o telefone grudado à orelha direita, em comunicação com o parceiro.
– O pássaro levantou o primeiro voou.
– Pois vamos acompanhar seus outros deslocamentos.
– Te espero na esquina da quadra posterior à do estacionamento.
– Tranquilo, chego aí num instante.
– Não demore: o tempo hoje tá de lascar.
– Fique frio, colega.
– Tô é congelando, caralho!
– Não foi o que quis dizer...
– Deixe de papo furado e apresse.
Decorrida coisa de meia hora, um Fiat Uno, que já tinha visto dias melhores, a funilaria marcada com alguns riscos e amassaduras, brecou no meio-fio da calçada, rente ao lugar onde o moreno se postava com o corpo curvo, os braços cruzados sobre o tórax, as mãos enfiadas sobre as axilas, tentando se proteger das rajadas friorentas do vento.
Ele encaminhou-se à porta do carona, abriu e escorregou ao interior do carro, cujos bancos encardidos e enodoados de manchas de sabe-se lá o que, combinavam com perfeição ao desmazelo da carroceria.
O motorista passou a marcha de arranque e pisou no acelerador, tornando a se encaixar na corrente do tráfego.
Ele observou o motorista com o rabo dos olhos, um mulato musculoso de cabeleira crespa avermelhada, sorriso fácil no rosto talhado de traços grosseiros, e resmungou:
– Por que demorou tanto? Meus colhões tão pra virar pedras de gelo.
O parceiro lançou um olhar à sua velha calça social, claramente inapropriada ao clima, e abanou criticamente a cabeça.
– Queria o quê, mané, com esse tipo de roupa?
Em seguida, fez um gesto com o indicador invertido a si mesmo, indicando com orgulho o seu traje: calça de moletom e jaqueta de sarja com capuz.
– Devia fazer como o papai aqui, ser prevenido.
– E quem imaginava que a tarde seria friorenta?
– Não se atualiza com o boletim meteorológico?
– Ora bolas, fazia sol pela manhã; achei que até a jaqueta fosse desnecessária.
– Estamos em Sampa, camarada, uma chuvinha de nada e o clima dá uma reviravolta.
Uma frente fria havia se abatida repentinamente sobre a cidade, tornando transitoriamente o clima de verão no de inverno de um momento ao outro, ou mais especificamente da noite ao amanhecer, com tempo chuvoso e vento friorento.
Ele se remexeu desconfortável e relanceou o olhar ao banco traseiro, na vã esperança de deparar com uma bolsa com mudas de roupas sobrando.
Atrás, nada alentador; mas quem sabe...?
– Não tem nenhum par de roupas de reserva no bagageiro?
– Somente o estepe e uns troços.
Ele suspirou desalentado; além da calça social, a camisa fina de tricoline por baixo da jaqueta também quase não oferecia proteção contra o rigor climático.
– Agora essa, passar o restante da tarde e uma boa parte da noite tiritando como um pinto pelado.
– Vejo que é muito sensível ao frio.
– Pra falar a verdade, prefiro o calor.
– Como o clima da região onde nasceu?
– Isso mesmo – disse ele com uma súbita expressão sonhadora –, um calor gostoso, tanto do lugar em si como do povo.
– Por falar nisso – especulou o motorista aproveitando a deixa para conhecer melhor o parceiro –, onde foi mesmo que você nasceu?
– Não te interessa!
– Entendo – assentiu o sarará compreensivo.
Fazia parceria com o cara há alguns anos e não sabia quase nada do seu passado, a não ser que era nordestino, do Piauí; quanto à cidade...
Por outro lado, o parceiro sabia menos ainda da vida dele.
Melhor assim, considerou filosoficamente o sarará, cada um que resguardasse preventivamente seus segredos particulares a sete chaves.
Fazendo malabarismo no trânsito congestionado, caótico e para lá de barulhento do entardecer, o motorista pegou o lado esquerdo da pista da avenida e fez o giro a uma ruela de trânsito incomparavelmente mais discreto, estacionando o carro com o pisca-alerta ligado defronte de um pequeno bar-restaurante, instalado na quina de um decadente prédio centenário.
Sinalizou para o parceiro o seguir.
– Vamos aquecer as tripas.
– Boa ideia.
O motorista tomou a rota de um bar frequentado esporadicamente por ele.
O estabelecimento modorrava com escassa clientela: numa mesa de canto, um idoso magricelo a mamar, em sua solidão e com expressão ausente, uma cerveja; e no canto oposto, um casal, a bebericar uísque com gelo e água de coco, um gorducho de meia-idade e uma mulher de seus vinte e tantos anos, o corpo quadrado, a cinturinha de ovo e o rosto fortemente maquiado, com aparência cuspida e escarrada a puta.
O balconista acompanhou a entrada da dupla com olhar atento e ar moderadamente tenso, questionando se seriam potenciais clientes da casa, ou pretendentes dos