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Apesar de tudo
Apesar de tudo
Apesar de tudo
E-book387 páginas5 horas

Apesar de tudo

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Sobre este e-book

A cidadezinha de Heras, perdida no interior do Rio Grande do Sul, movida pelos negócios agropecuários da família Fonseca, torna-se o cenário de uma história que atravessa vidas. O amor que surgiu entre Apolo e Ícaro no inicio do século XXI, outrora fora a tragédia de Heitor e Aquiles no passado.

Duas histórias idênticas teriam o mesmo fim? Como a espiritualidade pode explicar a sexualidade e amores homoafetivos? Embarque agora para Heras e Alfazemas e venha montar a cronologia dessa história de amor emocionante, que apesar de tudo, venceu todos os preconceitos.

"Apesar de Tudo" surgiu da busca do autor Daniel Guedes por respostas sobre a própria sexualidade. É errado ser gay como as religiões judaico-cristãs tanto pregam? Será que sofria de algum desvio moral por ser homoafetivo? Se identificando com a visão que o espiritismo trazia sobre a vida, ainda faltava algo que falasse diretamente sobre isso.

Pesquisando a fundo este universo, encontrou muitas coisas. Boas e ruins. E delas, após um trabalho primoroso unindo a reconstituição de uma época junto a ficção, escreve este romance que mudou pra sempre sua vida, e assim pode ser para todo o leitor que se permitir embarcar nesta envolvente história, que fala, sobretudo, que todas as formas de amor são permitidas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de mai. de 2024
ISBN9786554370936
Apesar de tudo

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    Apesar de tudo - Daniel Guedes

    Agradecimento

    Quero creditar o escritor Gibson Bastos e o seu livro Além do rosa e do azul, principal fonte doutrinária espírita que utilizei para a escrita do romance.

    Agradeço a todos os meus amigos e familiares, que me incentivaram e acreditaram nesse trabalho, que tanto me orgulha.

    Quem sabe isso quer dizer amor

    (Milton Nascimento)

    Heras, interior do Rio Grande do Sul, 2001

    O despertador soou e a muito custo, Apolo o desligou. Espreguiçou-se e coçou os olhos. O sono o dominava, mas logo se lembrou do encontro que teria com Ícaro. Levantou-se e tomou banho demorado. Passou pelo quarto dos pais e notou que eles ainda dormiam. Saiu pela porta da cozinha, selou o cavalo e galopando, sumiu em meio ao campo verde banhado pelo orvalho do amanhecer.

    Logo avistou o cavalo de Ícaro em frente ao celeiro abandonado, local de encontro dos namorados. Adentrou sem fazer barulho, viu seu amado deitado sobre o feno, alheio a tudo que acontecia ao seu redor. Não pensou duas vezes, atirou-se sobre Ícaro enchendo-o de beijos ardentes, Ícaro não resistiu aos carinhos do amado.

    Exaustos e em êxtase, os dois rapazes permaneceram nus e abraçados ao meio do feno.

    — Com a festa de formatura, se encerra um clico em nossas vidas — tornou Ícaro, ainda deitado nos braços de Apolo.

    — Outros virão! Eu vou prestar vestibular para administração e me mudar para a capital e você virá comigo!

    — Já convenceu o teu pai que pretende cursar a universidade e mudar para capital?

    — Não — respondeu Apolo, entre risos —, toda vez que falo sobre isso, ele muda de assunto. Mas, no fundo, ele sabe que eu vou voltar para Heras. Meu sonho sempre foi administrar essas terras.

    Ícaro se levantou e começou a vestir as calças.

    — O que foi? Disse algo errado?

    — Não. É que não compartilho desse teu sonho, quero ir embora de Heras, aqui não é lugar para mim!

    — Como não, Ícaro? Aqui a gente pode casar com uma dessas gurias da cidade e continuar com a nossa história.

    Ícaro o fixou atônito.

    — Você acha mesmo que seríamos capazes de viver uma vida dupla!? Até quando?!

    Apolo, ainda nu, se levantou, segurou Ícaro pela cintura e continuou a sussurrar suas previsões de futuro no ouvido do amado.

    — Nossas esposas serão amigas, assim como nossos filhos. Nunca irão desconfiar que nos amamos!

    Ícaro o empurrou com força, fazendo com que ele caísse sobre o feno.

    — Não vou me prestar a viver uma farsa. Se você pensa assim, nossa história acaba aqui!

    Ícaro juntou a camisa do chão e a passos largos, tomou a porta do celeiro, selou o cavalo às pressas e logo já sentia o vento do galope no rosto. Em alguns minutos, já estava na cozinha da pequena casa da família. Encontrou Inês já preparando o café da manhã.

    — Onde foi tão cedo?

    — Pensar na vida. Me formei no ensino médio, preciso dar um rumo nela.

    — Pensar na vida? Isso é coisa de gente que tem a vida ganha, meu filho, nós aqui temos é que trabalhar.

    — Quero ir para Porto Alegre estudar, mãe. Minha vida não é aqui!

    — Capital, Ícaro? Não é lugar para você, não temos condições de te bancar lá e sair daqui para passar trabalho, eu não vou permitir.

    — Mas tem a Olívia, ela vai me ajudar! Eu tenho certeza!

    — Não podemos contar com a tua prima, ela mora em uma pensão só de moças, mal tem para ela e para os estudos. E teu pai não deixaria você sair de Heras.

    — Isso mesmo! — disse enérgico Agenor, que entrou ao ambiente e sentou-se à mesa ao lado do filho. — Agora que você acabou o colégio terá mais tempo para o campo e tempo é dinheiro.

    Inês serviu o café para o marido que pegou um pedaço de pão e, com a boca cheia, continuou a narrar como seria a vida do filho.

    — Tem é que casar com a filha do seu Elias, ela é a moça certa para você. Não vê só como o Bentinho é feliz com a família dele?

    Ícaro se levantou da mesa e foi para o quarto, deitou-se sobre a cama e uma lágrima correu-lhe pela face. Por que ninguém entendia que o lugar dele não era ali naquela cidade? Por que Apolo não pensava como ele e não tinha vontade de largar tudo para o alto e ir morar na capital?

    […]

    A noite clara estava alegre a beira da piscina na mansão de Perseu, pai de Apolo. A festa de formatura da turma do 3° ano estava acontecendo. Muitos jovens dançavam e divertiam-se.

    Apolo estava sentado distante de todos. Bebericava uma latinha de cerveja, escondido dos demais, pois certamente, se Helena, sua mãe, soubesse, não permitiria. Estava triste, pois, com certeza, Ícaro não apareceria à festa depois da discussão de logo cedo.

    Cíntia se aproximou do jovem, sentou-se em um banquinho ao seu lado e logo começou a falar:

    — Por que está tão triste?

    — Nada de muito importante. Estou só pensando que daqui a dois meses vou embora dessa cidade.

    — Eu também vou — disse ela, determinada. — Vou estudar veterinária na capital.

    Depois de um gole na latinha de cerveja, Apolo a fixou curioso.

    — Você também vai para a universidade?

    — Sim. É o sonho do meu pai e o meu também.

    — Seu Zé sempre me pareceu homem sábio. Que bom que ele não pensa como a maioria. O pai do Ícaro, por exemplo, não quer que o filho saia de Heras.

    — Por falar no Ícaro, ele não vem?

    Apolo fitou o céu antes de responder:

    — Espero que venha, Ícaro é meu melhor amigo! A festa, sem ele, não terá graça para mim.

    — Vem, Apolo! — disse ela se levantando e estendendo a mão. — Vamos dançar e aproveitar a festa!

    O jovem correspondeu ao convite da moça e logo os dois se juntaram aos demais a beira da piscina.

    […]

    Na casa de Agenor, a rotina seguia. Depois do jantar, todos se reuniam na sala para assistir à televisão. Bentinho, quatro anos mais velho de Ícaro, estava acompanhado da esposa, Lígia, grávida de seis meses.

    Ícaro não acompanhou à família. Debruçou-se na mureta que cerva a chácara da família. Queria muito ter ido à festa na casa de Apolo, mas não concordava com a maneira que Apolo planejava seu futuro. Amava-o, mas, acima de tudo, era honesto consigo mesmo.

    Lígia percebeu a tristeza do cunhado. Aproximou-se e logo falou:

    — Notei a tua tristeza. Por que não foi na festa de formatura na casa grande?

    — Falei novamente para o pai que quero estudar na capital. Mas eles não me deram atenção.

    — Seu Agenor teme por você, Ícaro. É natural, Porto Alegre é uma cidade grande.

    — Mas é o meu sonho! Na verdade, é mais que sonho. Parece que tem alguma coisa me empurrando para longe daqui. Que só lá eu vou encontrar a razão da minha existência. Não quero a vida de Bentinho — completou Ícaro, logo percebendo a indelicadeza com a cunhada.

    — Não precisa ficar envergonhado em expor tua opinião. Eu te entendo e de fato, não me via casada e com filhos. Pensava como você. Queria me mudar de Heras, estudar farmácia e depois voltar para administrar a farmácia de meu pai! Daí, o Bentinho e eu começamos a namorar, noivamos, casamos e logo veio a Joana — disse ela alisando a barriga. — Não me arrependo de nada, quem sabe, um dia não me mudo para Porto Alegre também?

    — Só se você se separar do Bentinho, ele nunca sairia de Heras para morar em uma cidade grande.

    Lígia tocou a mão do cunhado com carinho e falou:

    — Não desista de teus sonhos, a vida é curta e precisamos fazer sempre o que é melhor para o nosso bem-estar. Se você acha que a tua felicidade está na capital e longe de Heras, vá atrás. Todos nós nascemos com alguma missão, vai ver a tua é realmente longe daqui.

    Lígia beijou seu rosto com a feto e deixou-o sozinho.

    Ícaro se lembrou de Apolo e uma lágrima brilhou em seus olhos. Voltou no tempo, a dois anos, quando o amor aconteceu.

    Ele pegava o ônibus todas as manhãs, na estrada que o levava para a escola pública da cidade mais próxima do vilarejo. Naquela manhã em especial, ao chegar aos portões da escola, seus olhos cruzaram com os olhos de um rapaz de cabelos negros e alto, que observava a turma da porta da escola.

    Todos logo o reconheceram: era Apolo, filho do senhor Perseu, dono da fazenda de Heras. Todos se questionavam o que ele faria ali, pois, até então, o barãozinho de Heras, como era debochadamente chamado, estudava internado em uma escola particular. No entanto, Apolo, cansado de viver longe da família e da fazenda, conseguiu convencer ao pai a estudar na escola pública da região, junto aos demais jovens.

    A professora do primeiro ano logo o apresentou a turma e Apolo logo se sentou ao lado de Ícaro.

    — Prazer, Apolo! Me chamo Ícaro! — Estendeu a mão ao colega, que logo retribuiu.

    — Estou nervoso. Tenho medo da rejeição da turma.

    — Bobagem! — disse Cíntia, que estava sentada na carteira atrás dos rapazes. — Você vai adorar estudar conosco.

    Apolo a fitou com um sorriso no rosto e logo voltou seu olhar para Ícaro.

    — Não me lembro de você, mora em Heras há muito tempo?

    — Sim. Desde que nasci.

    — E de mim você lembra? — interrompeu Cíntia.

    — Claro, é filha do seu Zé e de dona Generosa. Adoro os doces que a tua mãe faz!

    — Amanhã trago alguns para você, qual o teu preferido?

    — Não se preocupa com isso. — Voltando-se para Ícaro novamente, Apolo continuou: — Seu caderno está completo?

    — Sim. Te empresto para colocar o teu em dia!

    — Tenho uma ideia melhor. Que tal estudar esta tarde lá em casa comigo?

    — Eu? Na casa grande?! — era Ícaro, incrédulo.

    — Sim! É onde eu moro! Por que o espanto?

    — Se o Ícaro não puder, eu vou! — interrompeu novamente Cíntia.

    — Talvez seja melhor a Cíntia te ajudar mesmo. Eu tenho lida pela tarde. Não poderia faltar.

    — Me desculpa, Cíntia, mas prefiro a ajuda do Ícaro! Estou precisando fazer amigos na cidade! A Diana, minha irmã mais nova, já toma muito meu tempo! — disse ele, entre risos.

    — Ah! Tudo bem… — respondeu ela tentando não demonstrar constrangimento.

    — Mas como te falei, Apolo, eu trabalho pela tarde e… — Apolo o cortou com delicadeza.

    — Então jante comigo essa noite! Leva teu caderno que depois da janta vamos estudar.

    No almoço, quando contou a novidade para o pai, seu Agenor não cabia em si de tanta felicidade.

    — É com esse tipo de gente que temos que estreitar as amizades! Já imaginou! Você? Amigo do herdeiro de Heras? E se mais além você se casar com a pequena Diana?

    — Que isso, pai?! Diana tem só sete anos de idade!

    — Mas ela vai crescer! Vou pedir para sua mãe preparar um pão bem macio e gostoso para você levar de presente para dona Helena.

    A noite já havia caído por completo quando Ícaro tocou a sineta da Casa Grande. Gertrudes, a empregada, o recebeu e conduziu-o até a sala de jantar, onde a família de Apolo estava reunida.

    Quando o jovem adentrou à sala, foi recebido com carinho pelos Fonseca. Helena, assim como Perseu, quiseram saber mais sobre a vida de Ícaro, que, com educação, respondia todas as perguntas.

    A amizade entre ambos se fortalecia dia a dia e os estudos na casa de Apolo se tornaram frequentes. Cíntia e as outras moças da turma não deixavam de se ouriçar para Apolo, mas, com delicadeza, o mesmo não dava abertura a nenhuma delas. Estava encantado, apaixonado pelo menino franzino, loirinho, de cabelos escorridos que lhe cobriam os olhos esverdeados.

    Em uma tarde, saindo da escola, Apolo se atrasou de propósito no banheiro e pediu que Ícaro o esperasse para voltarem para casa. Na verdade, tudo não passava de um plano do jovem para ficar um tempo sozinho com o amigo. Há dias vinha pensando em Ícaro de maneira diferente. Não sabia que tipo de sentimento despertava nele. Mais que uma simples atração sexual, era algo que o motivava a viver. Dava-lhe medo também, porém não podia mais fugir, tinha que pôr a prova esse sentimento.

    Ao sair do banheiro, notou que o amigo estava sentado sobre o pequeno muro da escola, esperando-o. O dia estava ensolarado e a temperatura agradável.

    Apolo se aproximou por trás e tocou o ombro do jovem.

    — Vamos? Quero te mostrar o celeiro que eu sempre brincava quando criança.

    — Celeiro? — perguntou Ícaro, curioso, pulando o muro e seguindo rumo à estrada na companhia de Apolo.

    — Sim! É um celeiro antigo, da época que a minha avó era viva. Eu sempre brincava por lá quando era criança. É o meu local de refúgio quando quero ficar sozinho…

    Ao chegarem ao local, Ícaro se emocionou. Era um lugar de beleza rara, o pasto verde era imponente em todo o lugar, o celeiro era antigo e pequenino.

    — O lugar é lindo, Apolo!

    Apolo o puxou pelo braço.

    — Quero que entre… tenho algumas coisas escondidas lá dentro.

    Os dois rumaram para o interior do casebre. Apolo se dirigiu para uma caixa de madeira bruta, e de lá, tirou um caixa de chocolates.

    — Experimente!

    — É uma delícia! — disse Ícaro, com a boca cheia de chocolate.

    Apolo se aproximou e tocou com os dedos a boca do amigo.

    — Está sujo aqui…

    Ícaro levou a mão junto à boca e sem querer, tocou a mão de Apolo. Os olhares dos dois se cruzaram intensamente e Apolo continuou a acariciar o rosto do amigo.

    — Eu não sei o que acontece comigo… desde o dia em que te vi lá na escola, tu não sais da minha cabeça!

    O primeiro beijo de amor aconteceu.

    Ao lembrar como tudo começou, Ícaro sentiu uma forte emoção, seu coração se encheu de esperança. Amava Apolo e não havia dúvidas de que ele também o amava. No fundo, ele tem razão, como viver um amor desses? Ele teria que enfrentar a ira do pai, o preconceito da cidade inteira, suspirou fundo. Eu também perderia muitas coisas, o respeito da minha família, o amor do meu irmão.

    Bentinho era homofóbico ao extremo. Sempre que queria ofender alguém, usava o termo viado e bichinha. Tinha medo só de imaginar se um dia Bentinho descobrisse sua relação com Apolo. Passou as mãos nos cabelos para afastar os maus pensamentos e decidiu que na manhã seguinte procuraria Apolo para conversar.

    […]

    A festa continuava animada na casa dos Fonseca. Cíntia não perdia a oportunidade de ficar mais próxima a Apolo. Sempre se sentira atraída por ele, não só pelo belo homem que era, mas por todo o prestígio que ganharia em Heras se engatasse um relacionamento com o mesmo. Sabia que Apolo nunca dera abertura para nenhuma menina da cidade e ela poderia ser a primeira. Era bonita, tinha os cabelos loiros, lisos e compridos até a cintura, o corpo era bem-feito e desenhado. Não perderia aquela chance única de conquistar de vez o coração do filho do Barão Fonseca, como Perseu era ironicamente chamado pelos habitantes do vilarejo.

    Helena assistia tudo na varanda da casa grande. Suspirou fundo, era um suspiro de alívio. No íntimo, ela sabia que o filho era diferente dos demais meninos da cidade. Por diversas vezes, percebeu seus olhares curiosos e maliciosos para os peões da fazenda. Contudo, nunca comentou nada com ninguém, muito menos com Perseu, não sabia qual seria a reação do marido se soubesse os verdadeiros desejos do filho. Se descobrisse que a história que abalara os Fonseca, trinta anos antes, poderia se repetir, porém, agora com seu filho.

    Morada

    (Sandy)

    Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, 2001

    O quarto iluminado pelos raios de sol da manhã estava decorado com orquídeas, as flores preferidas de Ametista. A jovem senhora estava completando 42 anos de vida naquele dia. Sentada ao leito do quarto do hospital Santa Clara em Porto Alegre, especializado em tratamento de câncer, folheava o álbum de fotografias. A cada página que virava, uma lágrima corria à face, entretanto, não eram lágrimas de tristeza e sim, de felicidade e gratidão.

    Sabia que estava prestes a deixar a carne, e seu coração estava calmo e sereno, pois tinha certeza que cumprira tudo que programara antes de reencarnar. Conheceu Nelson ainda na adolescência e desde então, nunca se separaram. O casamento só aconteceu quando ele se formou em direito e ela estava no último ano da faculdade de Letras. Dois anos após, nascera César, filho único do casal. De famílias espiritualistas, ambos trabalhavam no Centro Espírita do bairro. Ela era médium audiente e desde criança conversava com Rosário, sua amiga do plano espiritual. Naquela manhã, não foi diferente, Rosário chegou e espalhou pelo ambiente um perfume delicado de alfazema que logo Ametista percebeu. Sobre a nuca de sua amiga, Rosário elevou suas mãos e delas partiram fragmentos iluminados e de cores diversas, penetrando na aura clara de Ametista.

    — Já estava estranhando a sua demora, sempre vem me visitar nas primeiras horas da manhã.

    — Todos os seus amigos que já estão no plano espiritual me procuraram para que eu lhe transmitisse os votos de parabéns e felicidade. Orgulho-me tanto de você, minha querida! — tornou Rosário alisando o lenço rosa claro que cobria a cabeça sem os cabelos de Ametista. — Espírito nobre e iluminado, que tanto fez amigos na carne como também nos planos mais elevados.

    — Você e os demais são tão queridos por mim!

    — Seu trabalho no centro espírita, ajudando tantos irmãos encarnados como desencarnados, foi de grande utilidade para a nossa comunidade. As amizades que conquistou durante todos esses anos estão hoje quase todas recuperadas e mandando a você pensamentos positivos e revigorantes.

    — Sou muito grata a todos eles, mas, mesmo assim, meu tempo na Terra já chega ao fim. Não tenho mais força física para lutar contra essa doença que maltrata o meu corpo. Sei que Deus é justo e nada acontece sem a Sua vontade, mas ainda não consigo entender esse sofrimento que abate minha família! Nelson não demonstra sofrimento perto de mim, porém, percebo o quanto sofre, diferentemente de César, que está a cada dia mais abatido e debilitado me vendo assim.

    — Não cai uma folha da árvore sem a vontade de nosso Pai — disse Rosário, com voz suave. — Todo o sofrimento é válido e é dele que tiramos lições para carregarmos conosco por toda a eternidade. Nelson, César e até mesmo você estava ciente dessa situação.

    — Temo tanto, que depois do meu desencarne, César acabe em depressão, que acabe desistindo da vida também. Mesmo sendo criado dentro do espiritismo, meu filho sempre viu o lado negativo da vida, sempre ponderou mais as coisas ruins do que as boas!

    — César está vivendo hoje o que plantou no passado e suas atitudes no presente é que darão a ele a possibilidade de recuperar tudo que deixou de viver em outros tempos. O seu desencarne, Ametista, será fundamental para saber se ele aprendeu a lição que você e Nelson desde cedo passaram! Não tema nada! Confie no Pai e confie também no seu filho. A dor cura feridas impostas pelo tempo, e ele, o tempo, é o melhor remédio para as mazelas da vida!

    — Obrigado, minha amiga, fico tão mais feliz por ter a oportunidade de conversar com você! Sou abençoada por tê-la como amiga querida!

    — Eu também, minha querida. Vai chegar o momento em que nos abraçaremos de verdade, quem é grata aqui sou eu, recebeu o meu filho como seu!O espírito de Rosário desapareceu após beijar delicadamente a testa de Ametista, que fechou os olhos emocionada pelo gesto da amiga. Ela não via Rosário, apenas ouvia, mas sentia a sua presença assim como a sua partida.

    Instantes depois, a porta do quarto se abriu, Nelson e César adentraram, trazendo um buquê de rosas e chocolates.

    César tinha os cabelos castanhos e os olhos azuis-claros, parecidos com os do pai. Logo que viu a mãe sentada no leito da cama, correu para um abraço caloroso, depositando, em seguida, carinhoso beijo em seu rosto.

    — Parabéns, mãezinha! Já faz um ano que sofremos com essa doença maldita que te tirou as forças e a vitalidade, mas eu ainda tenho esperança que vamos vencê-la! Queria estar formado como médico para poder te curar, porém ainda estou estudando para passar no vestibular. Peço a Deus toda noite que espere, que ele a cure. Eu não sei viver sem você!

    Ametista beijou a testa do filho e logo respondeu:

    — Meu amor, não deve maldizer a doença, já conversamos tanto sobre isso! Tudo que acontece conosco fora programado por nós antes de reencarnarmos, e se o câncer fazia parte da nossa programação, ele é justo e é uma forma de aliviarmos nossa expiação.

    Segurou com carinho o filho pela mão e fixou seus olhos nos dele.

    — Meu desencarne está próximo e você sabe que apenas o corpo físico morre, e a alma, o nosso verdadeiro ser é eterno. Minha missão aqui nesse planeta já está chegando ao fim e eu parto com a alma tranquila, pois coloquei no mundo um menino de ouro! Sempre, meu amor! Sempre estarei com você, nunca esqueça isso, a tua missão é cuidar do teu pai — continuou, fitando agora também Nelson, que devolvia a esposa olhar de amor.

    — Não quero que sofra, não quero que desista da vida e de teus sonhos.

    César se desvencilhou dos braços da mãe e não conseguiu falar nada, o choro embargou na garganta. Saiu porta afora correndo, não queria ouvir aquelas palavras de despedida. Cruzou o corredor do hospital com as lágrimas percorrendo a face, trombando com pessoas, que, espantadas, viam aquele rapaz chorar em desespero.

    Nelson ameaçou ir atrás do filho, mas Ametista não deixou. Puxou-o pela mão e fez-o sentar ao seu lado.

    — César precisa aprender com a dor. Não podemos criá-lo em uma redoma de vidro, sei que ele entendeu perfeitamente minhas palavras. O sofrimento será inevitável, mas ele vai sobreviver a essa dor e será ainda muito feliz.

    — Você se sente tão fraca assim? Acha mesmo que a hora da partida está chegando?

    — Sim. E eu não estou triste por isso, muito pelo contrário, é um alívio. Esse ano todo lutando contra essa doença me desgastou muito, aliás, nós todos. Somos espíritas, meu amor, e você sabe que a nossa passagem na Terra é curta. Sou grata a Deus por ter tido a oportunidade de dividir a vida com você, sou grata a você por ter me dado o filho mais lindo que alguém poderia ter!

    Não quero que com a minha partida, você também deixe de viver os prazeres que a vida de encarnado nos concede. Prossiga viajando, escrevendo, pescando, cuidado do nosso filho… todas essas coisas que você sempre fez tão bem e que te dá tanto prazer. Não feche o teu coração para o amor, não pense que estará me traindo se outra mulher te interessar, eu sei que o amor que nos uniu até aqui fora verdadeiro e isso basta. Eu sempre vou amar você!.

    Nelson abraçou a esposa com carinho, beijando seus lábios com amor. Permaneceram abraçados em silêncio, aproveitando o máximo que podiam o tempo que ainda lhes restavam.

    […]

    A tarde já se ia ao fim e Ametista dormia tranquila quando Rosário, Heitor e mais dois espíritos amigos adentraram no ambiente.

    Rosário se portou diante do leito de Ametista e com as mãos sobre o peito da querida amiga, disse:

    — Chegou a hora de abandonar a carne e desfrutar a vida no plano maior, minha querida!

    Heitor se aproximou, imitando o gesto de Rosário sobre a testa de Ametista. Raios de luzes de cor azulada partiam da base das mãos de Heitor, indo até a um ponto da testa de Ametista. O desligamento havia começado e o processo durou ao todo uma hora. Ametista era um espírito nobre e que sempre praticou o bem junto aos mais necessitados, tinha méritos com os bons espíritos. Sua mãe Alzira estava junto de Heitor e Rosário, trabalhando para o desencarne da filha amada. Aos poucos, o perispírito de Ametista surgira sobre o corpo já quase sem vida. Seus olhos se abriram devagar, fitando com carinho o rosto da mãe que, há tempos, não via. Um abraço sincero e cheio de vida era contemplado por Heitor e os demais.

    Rosário, mulher preta, dentes alvos, se aproximou da amiga e mais um abraço dos seres de luz acontecia. Partiram as cinco almas para a Colônia das Orquídeas.

    Muito abatido e sempre amparado pelo pai, César deixou uma rosa branca sobre o túmulo da mãe. Ainda não entendia o porquê do desencarne da pessoa que ele mais amava, ainda não achava justo o que a vida lhe oferecia, mesmo acreditando na doutrina espírita, para César era muito difícil

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