Sobre este e-book
Edmond Beaumont vive recluso no sanatório de Salpêtrièri, em Paris, desde que perdeu a família em um acidente e encontrou sua noiva enforcada. Diagnosticado com transtornos neurológicos e incapaz de distinguir realidade e ilusão, vê sua situação se agravar com a chegada de Mabelle, uma jovem com Transtorno de Borderline. Unidos por uma paixão avassaladora, enfrentam juntos seus fantasmas. Quando Mabelle parte, Ed mergulha em dúvidas sobre o que é real, enquanto se aproxima de Jaime, um misterioso hóspede que pode estar ligado a eventos violentos no local.
"Sanatório" é um thriller psicológico eletrizante, onde o medo, o amor e a loucura caminham lado a lado — e nem sempre há uma saída.
•Thriller psicológico intenso e envolvente;
•Narrativa cheia de reviravoltas;
•Um mergulho profundo na mente humana, explorando os limites entre sanidade e loucura;
•Romance trágico e visceral, entre dois personagens quebrados pelo passado;
•Ambientado em um sanatório real em Paris, com atmosfera sombria.
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Sanatório - Ricardo Valverde
CAPÍTULO 1
Um ano antes
MUITO PRAZER, VOCÊ SE CHAMA MABELLE
O Hospital Psiquiátrico de Salpêtrière ou Pitié-Salpêtrière foi projetado e construído por Louis Le Vau, em meados do século XVII, inicialmente para ser uma fábrica de pólvora, projeto que nunca decolou. Anos mais tarde, serviu como abrigo aos pobres, prostitutas e criminosos com penas leves, cujo objetivo era afastar do centro de Paris pessoas malvistas pela sociedade europeia. Desde a Revolução Francesa, transcorrida entre os anos de 1789 e 1799, Salpêtrière tem sido utilizado como importante centro na assistência à saúde de homens e mulheres com doenças mentais, tanto no atendimento ambulatorial quanto no sistema de residência.
Há cinco anos, desde que não me senti mais seguro para sair de casa, fui diagnosticado com uma patologia severa de pânico e fobia. Perdi o contato com os amigos, com a família, o emprego, a faculdade de artes cênicas e a liberdade. Os médicos e psicanalistas que avaliaram meu caso sugeriram um trauma importante como o agente desencadeador desse excesso de ansiedade, que atualmente me encurrala entre quatro paredes. Imaginei que o acidente de automóvel que matou meu pai e meu irmão, e o assassinato de Alice Godharth, minha noiva, encontrada enforcada no vestiário da Universidade Sorbonne de Paris, episódios que ocorreram em um intervalo de três semanas, tenham sido os motivos. Comecei o tratamento visitando o sanatório a cada dois dias até que, sem perceber, estava morando ali, deitado num quarto limpo e frio, com paredes brancas e perfume de detergente. Durante as tardes de sol, costumava acompanhar a enfermeira Charlotte até o jardim, repleto de flores, e ao bosque, que se perdia por entre árvores altas, orquestradas ao som de pássaros e cigarras. Trilha que desemboca em um lago límpido, de águas azuladas e excessivamente geladas, batizado por aqui como Lágrimas de Cura. No início do meu tratamento, minha mãe vinha me visitar aos domingos. Ela demonstrava alegria ao avaliar minha evolução aos medicamentos e me acompanhava nos passeios que sempre terminavam com os pés nas águas do lago. Senti sua falta em uma visita e outra até que a tuberculose a levou para longe de mim e me deixou tão só no mundo quanto um urso polar à procura de comida. Nessa época, a tristeza tomou conta de minha mente e, por sua vez, meu coração tornou-se mais duro do que as paredes que mantêm esse casarão em pé.
Hoje, faz exatos dois anos que não ouço mais a voz de dona Anne Beaumont, restringindo nossa relação a conversas noturnas dentro de minhas orações. Vez ou outra eu consigo ver seus contornos ao lado da minha cama. São aparições rápidas, mas que sempre me emocionam. Sei que minha mãe me protege de onde está, mas a falta que ela me traz aos finais de semana aproxima minha alma da morte aos poucos, um desejo que anseio apenas para encontrá-la outra vez. Mais do que isso, esse vazio triste afasta de mim as forças para resgatar a motivação de viver a vida, energia que a doença sequestrou de mim à dentadas selvagens e sem piedade. Mas aquele domingo de julho nasceu de maneira diferente. Acordei com o som de uma sirene aguda e intermitente, que me fez soltar um grito e saltar o corpo da cama.
– Merda! O que é isso? – esbafori, num rompante.
Por alguns minutos colei a testa no vidro da janela e mirei o jardim da frente. Um furgão velho e enferrujado se descobria parado em meio às névoas da manhã, na boca do portão de madeira que cercava o hospital. Uma maca foi retirada da traseira do veículo sem que eu pudesse definir se a pessoa deitada ali era homem ou mulher. Imaginei a resposta ao observar os enfermeiros e as enfermeiras carregando a cama móvel na direção da ala feminina, localizada ao lado do prédio onde eu morava.
– Chegou alguém! Chegou alguém! Chegou alguém! – comecei a berrar, deixando o quarto para trás e me dirigindo até a escada de acesso ao portão de saída do prédio masculino e ao jardim.
– Entre, Ed. É muito cedo para passear por aqui – orientou René, o enfermeiro-chefe do hospital. Um sujeito alto, magro, de olhos verdes e expressão carrancuda.
Voltei ao quarto sentindo uma pulsação estranha, algo havia deixado meu sangue febril novamente. Deitei-me sobre a cama e permaneci imóvel, os olhos esbugalhados fitando o teto, de onde pendia uma lâmpada nua, e um sorriso largo estampado em meus lábios, secos e rachados. Após o almoço, fomos levados ao jardim, local e período em que nos permitiam ter contato com as mulheres residentes da outra ala. O prédio que abrigava as pacientes femininas era menor que o nosso em tamanho e em número de quartos. "Será que existe uma estatística ou um estudo que indica ou sugere que os homens são mais suscetíveis a doenças mentais do que as mulheres?", tal sentença morreu sem resposta em meus pensamentos. Aproximei-me de Charlotte e ela colocou dois comprimidos em minha mão e me ofereceu um copo de água.
– Onde ela está? – perguntei assim que lancei os medicamentos na direção da garganta.
– Ela quem?
– A novata.
– Está deitada perto da escada – indicou a enfermeira, apontando com o dedo em riste para a entrada do edifício feminino. – Deixe-a em paz, Ed. Por favor! – pediu ela.
– Confie em mim – argumentei, sem muita convicção.
Caminhei a passos leves e incertos e sentei-me na base do primeiro degrau. Seu olhar flutuava para bem longe do presente, parecia feito de vidro, era vazio e sem cor. Ela carregava um semblante assustado no rosto, única parte do corpo que podia ser vista, já que uma manta de lã a cobria quase que por inteiro. Tinha cabelos curtos, desarrumados de maneira bem charmosa, lábios grossos e rosados, dispostos em uma pele lisa e branca, e nariz pontiagudo e levemente empinado. Era linda!
– Olá! – minha voz saiu rouca e se perdeu sem que ela oferecesse atenção. – Meu nome é Ed. Quero dizer, Edmond Beaumont, e o seu? – perguntei, depois de me apresentar.
Não obtive resposta alguma. Seu rosto tentou se mover em minha direção, mas não passou de uma trepidação.
– Aqui estão seus remédios – René depositou os comprimidos sobre a manta e deixou o copo de água ao lado da maca. Era óbvio que aguardava uma reação da paciente. – Deixe-a sozinha, Ed. Louis o espera para caminhar até o lago – disse ele.
– O que ela tem? – perguntei, sem me mover.
– Ainda não sabemos. Mas ela não fala há muito tempo, e provavelmente não se lembra de quem é. São as informações que temos até o momento, boa parte delas circulando na esfera da crença e do achismo.
– Caramba!
– O que disse, Ed?
– Nada, René – caí no riso.
– Não a perturbe, por favor! Vou estar de olho – ordenou o enfermeiro, afastando-se na direção do portão da frente do hospital.
– Moça sem nome, você não vai tomar seus remédios? – questionei, imaginando o silêncio como resposta.
Sem que eu pudesse perceber, como se chegasse das sombras, uma mão grossa e cheia de pelos apertou meu braço esquerdo e minha pele se retesou, num susto. Para minha surpresa, tratava-se de Jaime, o morador mais antigo de Salpêtrière; um dos poucos amigos que fiz nessa vida.
– O que está fazendo aqui? – perguntei a ele.
– Por que não rouba os remédios dela, Ed? – meu amigo sugeriu, sem se preocupar em responder minha questão anterior.
– Não é correto – disse, com medo.
– Pegue logo! – suas palavras soaram austeras, lembravam uma ordem paterna.
Arregalei os olhos, apanhei os comprimidos na mão em um gesto veloz e lancei-os na direção da minha garganta, junto com a água que descansava no copo ao lado da maca da novata.
– Muito bem! – Jaime bateu palmas e sorriu.
– Fizemos um favor a você, moça. Isso já nos torna amigos – comentei, apoiando meu ombro no tronco de Jaime.
Ergui meu corpo e fiquei em pé. Aquele excesso de remédios fez o jardim dar um rodopio e as pessoas à minha frente ficarem com os contornos distorcidos, como se uma sombra engolisse seus reais desenhos. Gargalhei e fitei o rosto da novata mais uma vez. Uma imagem que não sairia mais de minhas pupilas. Antes de me encontrar com Louis, que ainda me aguardava no início do caminho para o lago Lágrimas de Cura, disse a ela as últimas palavras daquele primeiro dia:
– Eu sei que não devemos dar conselhos, principalmente se o conselheiro vive há tempos num lugar como esse – sorri com os lábios trêmulos. – Está vendo aquele recorte no horizonte, bem atrás dos portões do hospital? É uma montanha isolada, tão translúcida e cintilante que parece ter sido feita de cristal. Diz a lenda local que ela vai se alimentando da esperança e da energia das pessoas que dormem aqui em Salpêtrière. Mais cedo ou mais tarde, sem perceber, enquanto os anos passam, os sonhos dos internos vão sendo sugados para dentro daquele monte pálido e solitário e, no momento da morte, suas almas não encontram o caminho para o Paraíso. Ficam aprisionadas numa escuridão sem fim. Portanto, moça, tome cuidado para não deixar esse hospital te possuir, saia daqui na primeira oportunidade. Caso contrário, você será devorada da cabeça aos pés e seus sonhos se perderão para sempre – falei, a voz num sopro. – E, como não me disse o seu nome, eu irei lhe batizar. Muito prazer, a partir de hoje você se chama Mabelle!
Um sorriso tímido se desenhou em seu rosto, desmanchando-se segundos depois. Talvez tenha sido apenas um delírio da minha mente perturbada por todos os comprimidos que caíram em meu organismo nos últimos minutos, mas o fato é que a curvatura dos lábios de Mabelle, assim como seus dentes brancos e milimetricamente alinhados, nunca mais deixariam de povoar meus sonhos. Agora, era ela quem inundava minhas orações noturnas.
CAPÍTULO 2
DIA INCOMPLETO
Na manhã seguinte, acordei com uma sensação de extremo vazio margeando o quarto. Meu coração batia de maneira desacelerada como se viver não fosse nada além de algo mecânico e programado. Desci ao refeitório às pressas, cumprimentei Charlotte e René e acomodei-me ao lado de Louis, na última mesa do amplo salão, perto da janela, de onde se via uma sinuosa estrada cortar um enorme campo de trigo e se perder pelo horizonte. Meu amigo me recebeu com um semblante horrível, acenou com um gesto tímido de cabeça e voltou suas atenções ao infinito número de cereais que povoavam o pote de iogurte à sua frente. Senti uma pontada de fome e resolvi tomar uma xícara de chá-mate gelado e mastigar algumas torradas com margarina e queijo branco.
A forte ansiedade que atacava minha paz, sentimento que eu pouco conhecia, levou-me a ficar em pé novamente e a retomar o caminho dos meus aposentos. Antes, passei pelo jardim da frente a passos acelerados e aproveitei que não havia uma alma viva por perto para conferir a caixa de correio. Estava vazia. Assim que ganhei o quarto, fitei o céu pela janela e observei um sol tímido e alaranjado pendurado numa enorme tela de nuvens brancas. Retrocedi meu olhar ao lado e me senti paralisado ao avistar os degraus de acesso à ala feminina. Um sorriso se iluminou em meu rosto quando Mabelle repousou em meus pensamentos. Fui atacado por um suadouro gelado e minha pele se retesou de imediato. Queria vê-la! Agora!
Os ponteiros do relógio apontavam 10h30min da manhã. Faltava quase metade do dia para que o jardim recebesse os residentes e eu pudesse me aproximar dela. Fitei as horas mais uma vez. 10h31min. Eu sabia que a agonia seria monstruosa. Tentei me acalmar e acabei mergulhando de cabeça em meus devaneios. Uma pontada de tristeza adormeceu meus ossos no instante em que eu me perguntava como seria acordar sem nenhum passado. Como seria abrir os olhos e não saber onde está, tampouco de onde veio; não reconhecer seu próprio nome?
Será que ela se recordaria de mim?
Que tolice, respondi à minha mente tagarela.
Quando a tarde finalmente caiu, após ter remexido o prato sem conseguir concentração suficiente para me alimentar, eu desci as escadarias do casarão saltando os degraus de dois em dois, pedindo licença e me esquivando dos outros residentes. Esbarrei no ombro de Jaime e quase o derrubei. Quando virei para me desculpar observei uma imagem disforme em seu rosto. Os olhos eram dois buracos negros, um fedor de enxofre escapava deles, assim como dois filetes de um líquido pastoso e amarelado. Sua boca estava aberta a ponto de se rasgar. Um rosno afogado e mórbido parecia soprar em minha direção. Pisquei duas vezes na tentativa de ver aquela anomalia desaparecer, mas não obtive sucesso. Aquela face demoníaca continuava ali, me espreitando, me desejando. Virei as costas e segui minha maratona, numa corrida assustada e desenfreada. Conquistei o jardim em poucos segundos e respirei fundo para me acalmar. Marchei até o portão da ala feminina à espera de Mabelle.
Ela não apareceu. A Lua chegou primeiro, um vento gelado logo em seguida, e um chuvisco irritante por último. Permaneci ali, as pernas paralisadas, o rosto imóvel e o olhar voltado ao casarão feminino, que um dia já teve suas paredes pintadas com listras em tons de cinza e amarelo. Hoje, tem um aspecto abandonado, embora por dentro ainda seja limpo e organizado. Tentei adivinhar em qual daquelas janelas Mabelle poderia estar e no que ela estaria fazendo a essa altura da noite. Meu corpo exausto arqueou e eu acabei adormecendo ali mesmo, no jardim, à espera de um milagre.
Não foi minha amada quem me encontrou ao relento. Abigail Giacomina, a segunda residente com mais tempo de sanatório, foi quem me descobriu caído. Uma senhora extremamente quieta, de baixa estatura, com bochechas salientes e avermelhadas, lábios finos e cabelos armados e tingidos de ruivo. Suas pernas eram curvilíneas, quase arqueadas, como se vivesse em cima de um cavalo a todo tempo. Diziam que, logo após o parto, o marido de Abigail fugiu com o bebê e nunca mais apareceu. Ela nunca sentiu o gostinho de carregar o filho nos braços. Isso ocorreu há mais de trinta anos e, desde aquele dia, a triste senhora carrega um urso de pelúcia no colo e choraminga uma canção de ninar. Talvez numa tentativa desesperada de preencher o vazio deixado pela ausência do marido e do fantasma de seu bebê. Mas era uma mulher com um coração que exalava bondade.
Assim que eu abri os olhos e ela se certificou de que eu não estava morto, correu até o edifício feminino para pedir ajuda. Charlotte veio me buscar e me acompanhou até o quarto. Deixei o corpo despencar na cama e tentei dormir. Um sonho leve e pacífico se iniciou, mas eu o rejeitei. Preferi manter meus olhos abertos e atentos ao mundo do lado de fora da janela. Vi a noite se despedir e o Sol anunciar uma nova manhã. Aquele certamente foi um dos dias mais longos e imperfeitos de toda a minha vida. Existia um hiato dentro dele, uma ruptura, uma peça que faltava para completar o tabuleiro, como se Deus houvesse se esquecido de algo ao arquitetá-lo e construí-lo. E eu sabia o nome daquela lacuna: Mabelle.
CAPÍTULO 3
UMA FLOR, UM SORRISO
Mabelle estava sentada na beira do lago, os pés imersos se remexendo sob a água escura e fria, o olhar amedrontado e os lábios curvilíneos se desmanchando em um sorriso tímido e envergonhado. Vestia uma camiseta branca da banda Kiss e uma bermuda azul. O Sol havia escolhido a região norte de Paris, onde o sanatório está localizado, para enviar seus raios mais febris. O calor passava dos limites aceitáveis, apontava para os 37 °C, mas nenhum dos residentes ousou reclamar do clima ou se recusou a deixar o quarto. Era justamente em dias como esse que passávamos mais da metade do tempo fora dos corredores tristes e estreitos do hospital e nos alimentávamos dos perfumes floris dos bosques, explorando a trilha colorida até Lágrimas de Cura. Um ou outro se arriscava a banhar-se em seu ventre congelante; eu era um deles. Louis também. Com largas braçadas deixei meu amigo para trás, flutuando no coração do lago, e me dirigi até as proximidades da margem onde Mabelle e Charlotte descansavam. A enfermeira se apresentava de braços cruzados com a novata e sibilava algo em seu ouvido. Atrás delas, um senhor vestido inteiramente de branco e imóvel como um boneco de neve parecia analisar todos os movimentos da nova paciente. Tratava-se de Yves Valentin, o médico psiquiatra de Salpêtrière, que raramente deixava seu consultório no último andar do edifício, onde se localizam os aposentos masculinos. Era um sujeito pacato, ombros curvados à frente, barriga protuberante e um rosto cheio de banhas. Possuía sobrancelhas fartas e cinzentas e sua cabeça era calva, exceção feita a um pequeno tufo de cabelos lisos que se deitavam sobre sua testa como um tapete recém-lavado. Tive apenas um encontro com o doutor Valentin desde que Salpêtrière tornou-se minha morada permanente. Foi no dia em que pisei no sanatório pela primeira vez. Ele pouco conversou comigo, apenas assinou alguns papéis e me enviou aos cuidados da psicologia. Pediu que eu o procurasse se precisasse de algo e disse que me chamaria se uma nova consulta ou mudança de conduta se fizessem necessárias. Um vento fresco acariciou meu rosto e devolveu meus pensamentos ao presente.
– Mabelle, você quer mergulhar no lago? – perguntei em voz alta. Seus olhos se afastaram dos meus e ela inclinou seu corpo para trás, como se tivesse não só rejeitado meu convite, mas também a minha presença.
– Deixe-a em paz, Ed. Vá nadar com Louis! – Charlotte interveio de maneira séria. Aquelas palavras não me machucaram tanto quanto o desprezo de Mabelle, que desviou o rosto como se estivesse diante de um prato que não quer comer ou uma tarefa enfadonha e inútil. Enquanto me afastava, imaginei o tamanho do ódio que ela deve ter sentido logo que chegou, quando, na oportunidade, roubei seus medicamentos e a batizei com um nome que de longe não era o que sua mãe lhe dera. Um pensamento atravessou meu peito e afugentou, por ora, a tristeza momentânea que sangrava em meu cenho cabisbaixo. "Se ela não se lembra de nada, não pode me odiar pelos desastres do primeiro dia". Sorri, mergulhei ao fundo do lago e segui a braçadas largas até meu amigo Louis, que parecia apoiado na outra margem, entretido com a terra.
– O que está fazendo, Louis?
– Estou admirando essa flor.
– Hum – resmunguei. – Por quê?
– Quando não estava internado aqui, eu tinha uma vida muito boa. Minha namorada adorava quando eu lhe dava flores. Era como se eu estivesse entregando uma parte do meu coração – uma lágrima escapou de seus olhos e se juntou às águas do lago. – Acho que você deveria arriscar – completou.
– Arriscar o quê, Louis? – perguntei, tentando entender o que ele me dizia.
– Sou menos doido do que pareço, Ed. Entregue essa flor à moça.
– Que flor é essa?
– Uma linda tulipa.
– E o que eu digo pra ela?
– Nada.
– Como assim, nada?
– Deixe que a flor diga o que deve ser dito –
