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Nadar com Fantasmas: Nadar com Fantasmas, #3
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E-book341 páginas5 horas

Nadar com Fantasmas: Nadar com Fantasmas, #3

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Sobre este e-book

Ele foi destruído pela tragédia.

Ela foi despedaçada pelo amor.

Poderão eles encontrar uma maneira de reparar a sua dor juntos?

Regressando a casa como um homem dilacerado, Harry Fisher não tem esperança de encontrar o amor. Mas quando conhece a tranquila e forte Pam Aulsebrook, eles encontram uma ligação como nunca tinham encontrado antes.

Desenterrando a dor do seu passado e lutando contra as memórias que os assombram, Pam e Harry começam a aprender como curar os seus corações num mundo de contratempos e perdas. Poderão eles ignorar os fantasmas do seu passado e encontrar finalmente um futuro juntos?

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento27 de jan. de 2021
ISBN9781071585078
Nadar com Fantasmas: Nadar com Fantasmas, #3

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    Nadar com Fantasmas - laurence e fisher

    NADAR COM FANTASMAS

    Laurence E. Fisher

    Para Alison

    ––––––––

    O verdadeiro amor é sempre tranquilo.

    Elizabeth Jennings

    PARTE UM

    _____________

    AUSÊNCIA

    Senti fúria, depois senti-me entorpecido, totalmente em choque. O meu corpo estava a executar movimentos, nada mais, a seguir ordens apenas. É a única explicação. A mulher que eu amava estava morta. Aquela por quem eu aguardara durante toda a minha vida. Aquela com quem eu devia estar. A minha vida conforme eu a conhecia tinha terminado. Espero que isto vos seja útil.

    Algumas pessoas morrem para a vida – não têm coração, alma ou uma verdadeira paixão. Isto agora era verdade para mim, estando os meus únicos pensamentos consumidos com ódio e arrependimento. Devoravam-me como veneno, corroendo uma parte de cada vez, destruindo tudo o que havia de bom em mim. Eu estava a ser enviado de Malta para Inglaterra. A ser mandado, nada menos do que isso! Para casar e começar uma família com alguém que eu já não conhecia, alguém de quem eu quase nem gostava. Gwen. Só o nome dela me causava arrepios.

    Quase não me recordo de deixar a ilha, o meu lar durante quatro anos, recordando apenas alguns fragmentos da viagem. O barco já estava cheio de homens que regressavam. Eles estavam entusiasmados e rejubilantes, tão diferentes de mim, e eu refugiei-me na sala de jantar sobrelotada, num dormitar ocasional sobre uma mesa fixa, sendo sacudido ao ritmo da embarcação. Nan, o meu amor, tinha desaparecido para sempre. Tinha-me sido tirada, deixando ao futuro uma terra morta, por onde eu não queria caminhar. Mantive-me silencioso, evitando quaisquer conversas, com uma expressão semelhante a uma máscara no rosto. Eu estava determinado a não chorar à frente dos homens – nunca sucumbi a isto durante as minhas tarefas de enfermagem, nem uma única vez, apesar das dificuldades do cerco e da doença. Não ia começar agora, mas era tão difícil. Senti-me poluído com amargura, desejando uma segunda oportunidade, desejando poder ter lutado mais para Nan ficar, e assim ela ainda estaria viva. Eu podia ter salvo a vida dela. Até o sangue que corria nas minhas veias estava contaminado. Eu continuava a ser um homem destruído.

    A embarcação enfrentava vagas semelhantes a montanhas, muitos homens estavam enjoados, mas eu não me importava. Suponho que devo ter inspirado e expirado o ar fétido. O meu coração deve ter continuado a funcionar, apesar dessa indiferença exausta. Não me recordo. Eu ainda não conseguia acreditar totalmente, a mancha castanha da memória colapsava repetidamente o meu mundo. Foi a enfermeira-chefe que me deu a notícia, nos jardins do hospital, nos arredores do Bloco F. Não havia sobreviventes. O barco de Nan afundara-se. Recordava apenas meros fragmentos da conversa.

    A preocupação da enfermeira-chefe tinha sido genuína, disso eu tinha a certeza, quando ela nos tinha parecido muitas vezes tão dura e distante. Pela primeira vez, todas as suas barreiras haviam caído. O major Merryweather descrevera-a como fantástica, e ele não estava muito errado. Qual era o nome dela? Perry, era isso. Ela era gentil e sábia; eu comecei a perceber isso ao longo do tempo. Alguém me disse uma vez que ela tinha um peixinho dourado e eu não consegui associar isso a uma pessoa tão pragmática, embora nada realmente me surpreendesse nela. Ela parecia uma mulher capaz de qualquer coisa. Agora, a bordo do navio, tentava usá-la como exemplo, agarrando-me desesperadamente para obter inspiração, para obter força. Como teria ela agido se estivesse no meu lugar? Era impossível. Eu estava perdido. Não havia qualquer ajuda para mim.

    Navegámos sem interrupção e não voltámos a atracar novamente. Se o tivéssemos feito, eu provavelmente não teria notado, pois raramente me aventurava a subir ao convés. Havia sempre alguém que tentava iniciar uma conversa lá em cima, e eu não desejava isso. Era preferível passar o tempo sozinho com a minha fúria, mergulhar na trincheira da memória e do arrependimento doloroso. O horizonte negro do mar era de pouco interesse para um homem destruído como eu. A companhia dos homens não podia trazer-me nenhum conforto.

    Tinha vivido quatro anos em Malta e, durante esses quatro anos, longos meses decorreram sob ataque e cerco constantes. Pareceu uma eternidade. Aquele foi o lugar mais bombardeado do planeta, um inferno, mas eu tinha Nan e ela podia tornar tudo suportável. Eu estava apaixonado e feliz, realizado, e não teria trocado de lugar com ninguém. A guerra era muito preferível ao tempo de paz, ou o tempo de paz ao qual agora regressava. Quando a convocação chegara e o coronel ordenou a minha saída da ilha, não fazia sentido. Gwen nunca havia expressado qualquer desejo de me ter de regresso e menos ainda um desejo de iniciar uma família. O coronel havia dito que ela era um risco de suicídio.

    Questionei os motivos dela uma e outra vez. Há muito tempo que não éramos um casal na verdadeira aceção da palavra e Gwen era uma farsa; tinha de haver mais do que parecia. A minha fúria combinava-se com a suspeita. O que esperava ela ganhar com tudo isto? Eu ainda não conseguia acreditar que havia alguma possibilidade de nos casarmos, já que desde há muito tempo que o nosso relacionamento estava terminado. Decerto, ela percebia isso. Acima de tudo, Gwen nunca havia sido pessoa de se enganar a si mesma.

    O barco atracou em Greenock, no Clyde. Um trabalhador no cais disse-nos que estávamos na primeira semana de dezembro, e disso recordo-me. O seu sotaque era tão pronunciado, difícil de entender. Estávamos em 1944. Fazia um frio gelado, depois do calor do Mediterrâneo. Fomos separados em regimentos e depois carregados em autocarros, antes de viajarmos num comboio lento para Glasgow Central. O céu era de porcelana branca, o rio de um castanho escuro. Todos fumavam. Não tínhamos permissão para deixar a plataforma, deram-nos sanduíches de ovos gordurosos onde estávamos sentados e, em seguida, um comboio noturno apareceu para nos transportar para o sul. Eu voltaria ao quartel de Boyce, onde há tanto tempo havíamos sido preparados para a guerra. Tudo estava diferente. Nada permanecia o mesmo. Eu não sabia o que faria – eu agora estava a viver a vida de outra pessoa.

    Estrelas brilhantes perfuravam o céu noturno nesta jornada, a jornada mais longa. As constelações pareciam estranhas e desconhecidas depois do meu tempo em Malta. Fiquei em silêncio, espremido no canto de um compartimento puído enquanto segurava os meus poucos pertences. Sombras do país flutuavam diante dos meus olhos, fugazes, sem deixar vestígios, enquanto todos os pensamentos se recusavam a deixar Nan. Sentia-me entorpecido com o choque de todos os acontecimentos. Parecia que a minha vida tinha sofrido um forte desvio do seu caminho precisamente quando tudo parecia decidido. E se tivéssemos lutado para ficar juntos? Nan e eu. O que teria acontecido então? Certamente teríamos tido uma oportunidade! Eu podia ter ficado na ilha e continuado a trabalhar como enfermeiro. Se eu me tivesse convertido ao catolicismo, a família dela podia ter-me aceitado. Tudo teria dado certo no final. Tinha de ser. Nós amávamo-nos. O que era mais importante que isso? O fio vermelho que nos ligava tinha sido autorizado a romper-se, e por esse facto eu culpava-me apenas a mim mesmo.

    O comboio chegou cedo, dando tempo para um pequeno-almoço simples. Eu não estava com fome e, em vez disso, decidi lavar-me e barbear-me, depois levantar o meu pagamento e a minha licença. Eu estava a adiar o inevitável durante o máximo de tempo que me fosse possível, a etapa final da viagem para Rayleigh, Essex. Era tudo o que eu podia fazer para colocar um pé na frente do outro – Gwen esperava-me lá com os amigos. Uma mensagem foi deixada no quartel. O nosso casamento estava arranjado para o meio-dia.

    Eu não estava vivo na verdadeira aceção da palavra. Eu não tinha alma, não tinha paixão. Permanecia em choque, demasiado paralisado para agir. Essa é a única explicação – de que outra forma poderia eu ter ultrapassado tudo aquilo? Ainda assim, não fazia sentido. A viagem de comboio passou com uma velocidade cruel, e a dada altura comecei a entrar em pânico. Era difícil conter as lágrimas. Sentia tanto a falta do Mediterrâneo de seda azul, do céu puro e imaculado, do zumbido suave dos candeeiros a petróleo. Raios, até sentia a falta do cheiro de ácido carbólico do hospital. Eu queria estar com Nan novamente, o meu amor perdido, a reviver a ternura aveludada das nossas noites juntos. Eu amava-a tão completamente, de uma maneira que nunca acreditei se possível. Nada do nosso tempo juntos foi esquecido. Nada jamais seria esquecido.

    O comboio entrou na estação. O fim da linha. Avistei Gwen imediatamente por entre um inverno de rostos, de pé sozinha à margem da multidão, em frente ao que parecia ser a sala de espera. Ela ainda não me tinha visto, e eu observei-a a esforçar-se por dar às suas feições alguma aparência de felicidade. Não era fácil. Pegou num espelho, estudou a boca e depois aplicou um pouco mais de vermelho. Endireitou a bainha da saia, de um castanho sem graça, e ajeitou o casaco. Ela parecia incolor, e eu interroguei-me se ela não podia ter-se esforçado um pouco mais. Não nos víamos há quatro anos, e ela sempre fora tão vaidosa na sua imitação da Garbo. Com uma das mãos ajeitou os cabelos, tentando colocá-los suavemente no lugar. Os cantos da boca dela, aqueles lábios finos, contraíram-se. Por alguma razão, a voz de Joyce Grenfell começou a cantar na minha cabeça. London Pride, um verso de All My Tomorrows, um som amargo para um homem que considerava não ter futuro. Peguei na mala e saltei com relutância para a plataforma.

    As feições de Gwen aguçaram-se em reconhecimento. Ela veio rapidamente na minha direção para me cumprimentar, uma mão a segurar o meu antebraço com firmeza enquanto me beijava.

    — Bem-vindo a casa, Harold. Como é que estás? Sentiste a minha falta? — Os olhos dela eram frios, tão vazios de amor, incapazes de esconder a verdade. Era tudo o que eu podia fazer para me manter de pé, e enterrei o meu rosto nas farpas dos seus cabelos cheios de laca. O cheiro era químico, avassalador. De repente, eu estava muito consciente da realidade do meu regresso.

    — Então, como é que estás? Pareces-me bem, afortunado por teres um bronzeado! — Ela continuou a falar, enquanto eu me retirava mais uma vez para o meu silêncio. Eu não sabia o que podia fazer. Gwen afrouxou o aperto e deu um passo para trás para me olhar diretamente. Havia batom brilhante colado aos dentes de cima, fazendo-a parecer reles, nada melhor do que uma prostituta em Malta.

    — Harold, não vais dizer nada? O gato comeu-te a língua? — Ela despenteou o meu cabelo. — Não ouço a tua voz há anos, sabias?

    Eu sabia disso muito bem. Seria uma felicidade para mim nunca mais voltar a ver Gwen, se Nan tivesse sobrevivido. Ela nunca tinha usado batom, não tinha necessidade de uma decoração tão falsa. O humor de Gwen parecia tudo menos suicida, o que só aumentava o mau pressentimento e a amargura que eu agora sentia.

    — Estou exausto, só isso. Não durmo há dias. Foi uma viagem difícil. — As palavras saíram com esforço.

    — Mas agora estás em casa. — Ela sorriu. Casa. Gwen não podia ter escolhido uma palavra mais infeliz.

    — Estou? — perguntei rispidamente. — A sério?

    — Sim, querido — ela ignorou o meu tom de voz. — Vamos levar-te para trocares de roupa e depois é direto para o casamento. É o que tu sempre quiseste, não é verdade, fazer de mim uma mulher honesta? Vamos lá, não devemos atrasar-nos.

    Ela pegou-me na mão e começou a andar rapidamente em direção à saída. Havia uma leve irritação na sua voz, um lembrete afiado dos velhos tempos e, docilmente, permiti-me segui-la. Eu não tinha estômago para a inevitável discussão, ainda não.

    A multidão tinha-se dispersado rapidamente. Seguimos o nosso caminho ininterruptamente, muito rápido, demasiado rápido para o meu gosto. A vida tinha entrado numa espiral que estava fora do meu controlo. Era como se alguém agora estivesse no meu lugar, um estranho. Alheado, reparei que o céu estava cinzento; cinzento de funeral, teria dito o meu pai. Uma névoa fina rodopiava no ar, absorvendo-nos. A luz era fraca, parecendo turva após a claridade de Malta. Se o meu cabelo estivesse longo o suficiente, começaria a encaracolar. Nan sempre gostara quando isso acontecia. Grace e Lionel esperavam no carro, ambos exibindo largos sorrisos ao darem pela nossa aproximação. Um Lionel magro pulou do assento e saiu do veículo, envolvendo os meus ombros com um braço.

    — Bem-vindo a casa, meu velho. É bom ver-te são e salvo. Fizeste boa viagem?

    Eles eram originalmente amigos de Gwen, mas eram boas pessoas e eu fiquei feliz em vê-los. Lionel parecia genuinamente encantado, e fiquei feliz por não ter de lidar com Gwen sozinho. Na frente de terceiros, ela demonstrava alegria por este regresso heroico, ao passo que eu não sentia nada para além de vergonha. Eu nunca devia ter voltado assim – estava tudo errado. Tinham-me tirado o meu trabalho e o meu amor, as duas razões que eu tinha para continuar a respirar, e agora parecia que não havia mais nada por que viver.

    Dirigimo-nos a casa deles nos arredores da cidade. Eu falei o mínimo possível, fingindo exaustão, e parece que funcionou. Gwen falou durante a maior parte do tempo, sendo o centro das atenções, como sempre. Incitou-me a sair do carro e subiu as escadas para trocar de roupa – o tempo estava a chegar ao fim e a cerimónia iria realizar-se dentro em breve. Descobri que ela tinha ido buscar um antigo fato cinzento e uma camisa branca que eu possuía há anos, que remontava ao tempo que passei a trabalhar no Rutherfords, uma loja de roupas masculinas em Folkestone, antes do meu tempo no National, em Londres. Antes mesmo de ter começado a formação de enfermagem. Vestir aquela roupa foi uma experiência estranha e desconcertante; era como entrar na pele de alguém que já não existia, alguém que estava morto há muito tempo.

    Dirigimo-nos ao cartório em Southend, onde Grace e Lionel foram as nossas testemunhas. As palavras, os votos, eram tão difíceis de dizer; ainda assim, era como se um intruso estivesse no meu lugar, a vestir o meu corpo, as minhas roupas. Eu não conseguia olhar nos olhos de Gwen, determinado a manter o olhar fixo nos sapatos, desejando que tudo acabasse. O serviço foi curto e esta foi a única coisa boa que ele teve. Na verdade, eu não podia ter lidado com mais nada. Foi um mês antes do meu trigésimo quarto aniversário e sentia-me completamente vazio por dentro. Eu não conseguia imaginar como é que as coisas podiam melhorar.

    O copo de água teve lugar num antigo hotel com vista para o mar, nós quatro a desfrutar de uma refeição dispendiosa e pouco alegre num dos supostos estabelecimentos mais requintados da cidade. Grace e Lionel logo perceberam que algo estava seriamente errado, provavelmente atribuindo isso ao choque do meu serviço de guerra e ao regresso abrupto. Eu não tinha palavras para nenhum deles e permaneci em grande parte silencioso, distraído com a comida. Eles estavam obviamente desconfortáveis, mas eu não me importei com isso. Havia preocupações muito mais importantes – como é que eu me tinha metido naquela confusão? Como é que eu podia sair daquilo? Gwen, a minha esposa, conversava animadamente, segurando ostensivamente na minha mão e no meu braço, mas eu não consegui arranjar forças para lhe responder. Eu ainda estava a afogar-me em algum tipo de choque. Eu permanecia muito reservado.

    Os nossos anfitriões retiraram-se com tato para o bar, e a verdadeira Gwen rapidamente saltou do esconderijo.

    — Então, o que se passa? — sussurrou, imediatamente. — O que é que te deu? Eles estão a dar-nos abrigo. Eles cuidaram de mim enquanto estiveste fora. Tens alguma ideia de como estás a ser indelicado?

    — Desculpa. — Menti, enquanto estudava o meu prato e raspava o garfo através da gordura congelante do bife.

    — Bem, para com isso! Não estás contente por me ver? Harold? — Ela carregava as suas próprias suspeitas. Estávamos separados há muito tempo e ninguém saía da guerra inalterado.

    — Estou exausto, só isso.

    — Não é só isso. Não sou idiota, lembra-te. Conversaremos mais tarde, mas agora cala-te. Eles vêm aí. O mínimo que podes fazer é tentar ser sociável. — Ela inclinou-se para me beijar a face, uma mão a apertar com força a parte de trás do meu pescoço. — Harold estava aqui a pedir-me desculpa — disse ela com um sorriso. — Ele vai sentir a falta de todas aquelas beldades de Malta.

    Embarcámos numa lua de mel de dois dias em Essex. Adiei ir dormir o máximo de tempo possível, dando desculpas na esperança de finalmente colapsar de exaustão. Isso não aconteceu. Nunca aconteceu. Eventualmente, tive de me deitar ao lado de Gwen, perdido e ansioso, virando-me e revirando-me na cama durante longas noites intermináveis. Tentei afastar-me o mais possível dela, evitando qualquer contacto desnecessário, como se o toque da sua pele pudesse de alguma forma poluir-me ainda mais.

    Eu pensava em Nan. Sempre em Nan. Onde estava ela? Como podia ela ter desaparecido? Eu tinha acabado por acreditar no Deus dela, em como estávamos destinados a ficar juntos, que nada podia separar-nos. Mas agora ela estava morta. Eu tinha de viver sem ela para sempre. Tinha sido tudo uma mentira. Eu tinha posto a minha fé e confiança no seu Deus e ele tinha-me virado as costas, se é que ele existia mesmo. Se eu a tinha perdido para sempre, então também o tinha perdido a ele. Eu estava preparado para, e aceitava com agrado, uma vida sem Deus.

    Mais uma vez, lembrei-me da enfermeira-chefe Perry. Durante a guerra, ela e Nan tinham-me fornecido uma inspiração contínua, e agora só a enfermeira-chefe permanecia. Miss Perry era esguia, aparentemente incansável, e estava sempre concentrada no seu trabalho no hospital. O seu sentido de dever era impecável. Devia estar na casa dos quarenta anos, mas era difícil adivinhar com qualquer grau de precisão. Era uma daquelas mulheres que mantêm sempre o mesmo aspeto ao longo de uma grande quantidade de anos, não sendo nem bonita nem pouco atraente. A enfermeira-chefe tinha maneiras delicadas; possuía uma verdadeira coragem e determinação. Mais uma vez, eu gostaria de saber como é que ela reagiria se estivesse no meu lugar. Ela possuía uma tal graça, uma atitude calma que era tão importante na enfermagem, e uma devoção abnegada ao trabalho. Nada era mais importante do que o dever, muito menos qualquer problema pessoal. Estes nunca seriam autorizados a interferir na santidade da enfermagem. Eu tentei absorver alguma da sua determinação, esta força e o respeito próprio. Eu precisava de recuperar algum senso de controlo sobre a minha vida, mas não estava a conseguir. Estava a desperdiçar o meu tempo e energia. A enfermeira-chefe Perry estava muito longe e ela não podia ajudar-me agora.

    Recordei-me dos nossos pacientes no Bloco F, do brilho familiar que seguia a aceitação da doença ou lesão. Tentei equiparar isto com a minha própria vida e perda, mas também isso provou ser impossível. Eu não estava nem perto. Quando olhei para cima a partir da almofada do hotel para o céu noturno, as estrelas eram mais pequenas e mais escuras do que em Malta. Caí nas trevas e na depressão.

    Eu tinha recebido ordens para regressar a Inglaterra para me casar e iniciar uma família. Era horrível. A minha impotência converteu-se em fúria. Se aquele era o jogo de Gwen, então eu jogaria a minha própria cartada e denunciaria o seu bluff. Eu estava determinado a fazer exatamente isso, sabendo bem que ela queria iniciar uma família tanto quanto eu. Eram as suas regras e eu ia puni-la com elas. Eu era um homem despedaçado e iria levá-la para baixo comigo; de qualquer forma, em grande parte, a culpa era dela. Eu tinha-a a ela, e era cruel. Tinha os olhos abertos e o olhar fixo na parede, lamentando não ter dado ouvidos às advertências dos meus pais. Eles nunca tinham gostado de Gwen e tinham tentado avisar-me. Isso só tinha fortalecido a minha determinação de ficar com ela. Eu sempre fui um louco teimoso.

    A lua de mel foi um desastre. Nós não comunicávamos e, por volta do final, mal conseguíamos estar na mesma sala, quanto mais falarmos um com o outro. E, para além de tudo o resto, rapidamente descobri que as minhas suspeitas estavam realmente corretas – Gwen não queria filhos nenhuns. Apanhei-a a usar pessários numa tentativa de evitar qualquer gravidez. Aquela foi outra mentira numa longa cadeia delas. Ainda assim, eu interrogava-me sobre as verdadeiras razões que a tinham levado provocar o meu regresso repentino.

    Eu continuava a sonhar com Nan, a toda a hora, e com as nossas noites na ilha. Neste momento, elas pareciam-me tão preciosas. Retirava conforto da sua memória, recordando o gemido dos juncos no chão do vale no nosso caminho de regresso de Xlendi, onde tínhamos ido nadar, os morcegos minúsculos a esvoaçarem em círculos no ar tépido sobre as nossas cabeças. Nan usava o seu chapéu de palha folgado e sentíamos o aroma das flores de laranjeira nos campos; comíamos pastizzi de queijo acabados de fazer e comprados numa banca na antiga praça do mercado. Se eu estivesse com sorte, conseguia imaginar o sabor de uma cerveja Blue Label.

    Nan sempre gostara do Cafe de la Raine, onde o dono era um personagem e peras, todo sorrisos e apertos de mão robustos. Tinha as sobrancelhas unidas e possuía o mais impressionante dos ventres de cerveja. Aquele sujeito entornava sempre a limonada dela, mas nunca a minha Blue Label, seguindo isto com uma pequena vénia e a exclamação «Sinto muito, meus amigos. Sinto muito. Eu faço-lhes um desconto. Amanhã. É claro que «amanhã» era sempre o mesmo. Num outro bar, já tínhamos sido assediados por um ex-combatente, um antigo jogador que dava pelo nome de Charlie. Ele tinha aparecido a cambalear, todo aperaltado com um fato brilhante que podia ter tido o tamanho certo para ele dez anos antes. Tinha o cabelo liso e oleoso, e a tez era uma teia de aranha florida devido à rutura dos capilares sanguíneos.

    — Então, são casados? Ou estão só a aproveitar a vida? — Ele tinha-se encostado ao meu ombro, o seu hálito rançoso fedia a álcool e a dentes podres.

    Tentei ignorá-lo, na esperança de que ele pudesse continuar o seu caminho e ir incomodar outra pessoa, mas Charlie tinha outras ideias. Deu uma pancadinha no meu cotovelo, intrusivo, cuspindo no meu rosto enquanto fazia outra pergunta. — Então, estás apaixonado por ela?

    — Isso é um pouco pessoal. — Falei calmamente, limpando o rosto com um guardanapo, desejando que ele se afastasse.

    — Então e tu, estás apaixonada por ele? — Persistiu, agora dirigindo a sua atenção para Nan.

    — Eu prefiro falar com ele sobre isso — ela apertou a minha perna sob a mesa.

    Pusemo-nos de pé e saímos enquanto ele oscilava, perplexo, acendendo um horrível cigarro Victory V. Agora, na minha amarga lua de mel, como eu desejava ter respondido de forma diferente. Sim. Queria gritar dos telhados para que o mundo inteiro fosse minha testemunha. Sim, eu amo-a. Eu tinha-a amado desde sempre, desde o primeiro momento em que a vira no Services Club, e ia amá-la para sempre. Nada poderia mudar isso.

    Sonhei com a igreja, ainda em Xlendi. Eu estava sozinho. Caminhei lentamente ao longo da curva da baía, o mar azul-branco cintilante, e então escalei os degraus irregulares de pedra que levavam à capela. Na minha visão, este já não era o edifício básico que eu recordava carinhosamente, mas um palácio com o maior dos quadrados, assemelhando-se a imagens do Alhambra que eu tinha visto pela primeira vez em criança. Estava decorado com frescos pintados em cores vivas, folha de ouro e mosaicos elaborados. O céu era de um azul puro e sem mácula. O silêncio caiu sobre mim como chuva.

    E foi então que Nan apareceu. Ela flutuou em direção a mim, vestida com o seu vestido branco cor de lírio, os seus maravilhosos olhos a brilharem de felicidade e amor. Os seus braços estavam estendidos na minha direção e ela estava a sorrir. Ela era insuportavelmente bonita. Eu permaneci imóvel e ela aproximou-se. Agora tudo ficaria bem. O vestido tremeluziu sob um vento celestial e eu dei por mim a rir de alegria; eu estava salvo. Finalmente, estava salvo. Ela estendeu a mão para pegar na minha e quando os nossos dedos se tocaram eu acordei com um sobressalto. Não era ela que estava deitada ao meu lado, mas Gwen. Solucei entre os lençóis, sentindo-me destruído de novo, preparado para uma longa vida de solidão. O mar permanecia no meu sangue, sempre, e Nan estava agora no meu sangue. A morte tinha encontrado um lar no meu sangue, mas Gwen não. Eu acreditava que jamais poderia abrigar Gwen.

    A lua de mel foi uma fraude. Não tínhamos nada a dizer um ao outro e Gwen deve ter-se questionado exatamente o que tinha feito; deve ter lamentado ter sido a responsável pelo meu regresso do serviço ativo. Foi um grande alívio para ambos quando a lua de mel terminou, e eu pude regressar ao trabalho. Agora, precisava de algum do conselho lendário de Churchill «sangue, suor e lágrimas» para conseguir a vitória sobre todos estes fantasmas e demónios pessoais. Eu precisava de tempo para sarar e preparei-me para um rápido regresso ao dever, desejando qualquer distração que o trabalho pudesse oferecer. Jurei, mais uma vez, copiar o belo exemplo da enfermeira-chefe Perry e ignorar o máximo possível de bagagem pessoal. Nada se intrometeria nos meus deveres de enfermagem.

    Gwen e Diana, a filha dela de um relacionamento anterior, voltaram para Folkestone para viver com a minha família. Eu ajudei a transportar as bagagens delas, viajei com elas, e foi um alívio quando regressei a Kent sozinho. Não há dúvida de que foi maravilhoso voltar a ver a minha mãe, e ela caiu nos meus braços em prantos. O seu filho mais novo estava de regresso da guerra, aparentemente ileso e sem ferimentos. O meu pai andava adoentado e presentemente estava internado com uma infeção no peito, uma fraqueza causada pelo próprio tempo passado no Exército, e ela tinha dificuldades em lidar com a ausência dele.

    A casa estava estranhamente coberta de pó, a casa de banho suja e o lava-loiças imundo. As flores na jarra da cozinha estavam mortas há muito tempo, mas aquela ainda era a minha antiga casa e sentia-me feliz por estar lá. Tinha desfrutado de momentos felizes dentro daquelas quatro paredes e pudemos

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