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A Língua Portuguesa Como Ativo Político: Um Mundo de Oportunidades Para os Países Lusófonos
A Língua Portuguesa Como Ativo Político: Um Mundo de Oportunidades Para os Países Lusófonos
A Língua Portuguesa Como Ativo Político: Um Mundo de Oportunidades Para os Países Lusófonos
E-book404 páginas5 horas

A Língua Portuguesa Como Ativo Político: Um Mundo de Oportunidades Para os Países Lusófonos

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Sobre este e-book

As navegações e descobertas portuguesas do século XV fizeram do português a primeira língua a ser globalizada, mas mantiveram oculto por séculos o poder da língua como ativo político.

Seis séculos depois, este livro desbrava os obscuros oceanos da lusofonia, nos quatro cantos do globo, para mostrar que o idioma de mais de 280 milhões de falantes pode trazer à luz a influência geopolítica já explorada pelo espanhol, pelo inglês e pelo francês com a francofonia.

A autora viaja por conceitos como autoestima e commodities linguísticas, marketing diplomático do idioma, poder econômico da língua e o Fórum de Macau, e prova que a política da língua inclui cooperação e competição no eixo Norte-Sul. A eficiência da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e o interesse crescente de outros países pelo bloco de língua portuguesa, com sede em Lisboa, serve de bússola nesta viagem.

O livro expõe ainda a urgência de uma promoção coordenada do português, com um instituto multinacional de ensino que exporte a língua a novos mares de afirmação e influência geopolíticas, resgatando o seu lugar de conquista na História.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de jun. de 2019
ISBN9788547321871
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    A Língua Portuguesa Como Ativo Político - Monica Villela Grayley

    CPLP

    Sumário

    I. A internacionalização do português 

    LÍNGUA E PODER

    O VALOR ECONÔMICO DA LÍNGUA PORTUGUESA

    Conceito de língua internacional vs. língua global

    INTERNACIONALIZAÇÃO: UMA PROPOSTA DE PORTUGAL?

    O ACORDO ORTOGRÁFICO: NOVAS REGRAS, ANTIGAS DESAVENÇAS?

    O CONCEITO DE LUSOFONIA: A BUSCA POR UMA PALAVRA, A BRICOLAGEM PORTUGUESA

    AS NOVAS LUSOFONIAS: AO VS. LÍNGUAS LOCAIS E PROMOÇÃO DO PORTUGUÊS

    II. As políticas de promoção da língua 

    OS INSTITUTOS CERVANTES E CAMÕES: MISSÕES COMPARADAS

    INSTITUTO CAMÕES, Iilp, Ipor e suas missões

    O PAPEL DO INSTITUTO INTERNACIONAL DE LÍNGUA PORTUGUESA (Iilp)

    POLÍTICA DE LÍNGUA PARA O PORTUGUÊS: ABISMO ENTRE RETÓRICA E AÇÃO

    O ASPECTO ECONÔMICO DA PROMOÇÃO DO IDIOMA E A AÇÃO DOS ESTADOS

    O AVANÇO POLÍTICO DA FRANCOFONIA E DA HISPANOFONIA, A OIF

    III. Os papéis dos países na difusão da língua portuguesa 

    QUEM COMANDA A PROMOÇÃO?

    RELAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS: COOPERAÇÃO COM COMPETIÇÃO?

    CRISES ECONÔMICAS E OPORTUNIDADES NA LÍNGUA COMUM

    ANGOLA E MOÇAMBIQUE: LIDERANÇAS EMERGENTES E A POLÍTICA DE LÍNGUA

    Português em Macau: o negócio na China

    TIMOR-LESTE, O FIEL DA BALANÇA DA DIFUSÃO

    IV. O papel do português na CPLP: a internacionalização na prática 

    A criação da CPLP

    A CPLP NA MAIORIDADE E A BUSCA PELO ELO MACROECONÔMICO

    CPLP: BUROCRACIAS E IDIOSSINCRASIAS, IMPASSES À LUSOFONIA

    O FUTURO DA CPLP NAS MÃOS DOS CIDADÃOS, PRAGMATISMO E COOPERAÇÃO EXTERNA

    A LÍNGUA PORTUGUESA COMO ELEMENTO DE DESENVOLVIMENTO

    OS ESFORÇOS DA CPLP PARA O PORTUGUÊS NAS NAÇÕES UNIDAS

    V. Sugestões para uma internacionalização de fato da língua portuguesa 

    PONTOS CRÍTICOS E PROPOSTAS PARA A PROMOÇÃO DO IDIOMA

    O PAPEL DA AUTOESTIMA DO FALANTE NA INTERNACIONALIZAÇÃO DO PORTUGUÊS

    O POTENCIAL DAS DIÁSPORAS NA DIFUSÃO DO PORTUGUÊS

    NOVOS MEDIA E A INTERNET: UM MUNDO NOVO A SER EXPLORADO PELO PORTUGUÊS

    CAVACO: MISSIONÁRIO EM PORTUGUÊS

    Um engajamento pessoal em busca do reconhecimento da língua comum 

    REFERÊNCIAS

    I CAPÍTULO

    A internacionalização do português

    LÍNGUA E PODER

    Nove anos após deixar um dos endereços políticos mais poderosos do mundo, Downing Street, em Londres, a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher foi convidada a discursar na Conferência do Partido Conservador, em Blackpool, Inglaterra. Naquela noite de outono, em 5 de outubro, a Dama de Ferro deixou sua suíte no tradicional hotel Imperial com o claro objetivo de encorajar a militância em sua tentativa de derrotar os Trabalhistas nas eleições locais. Naquele momento, o partido do então premiê, Tony Blair, detinha uma confortável maioria em Westminster após uma vitória avassaladora conquistada dois anos antes.

    Ao assumir o microfone, Thatcher afirmou que, durante a sua vida, todos os problemas da Grã-Bretanha foram originados pela Europa continental, mas todas as soluções partiram dos países de língua inglesa ao redor do mundo³, numa clara alusão ao papel do inglês (leia-se: dos países de língua inglesa) nas relações de poder e à sua influência no cenário internacional.

    Com a declaração, Thatcher parecia ignorar décadas de boa cooperação com a multilíngue União Europeia, as estratégicas relações bilaterais, especialmente com a França, assim como a própria Terceira Via de Blair. Por um momento, a primeira mulher a assumir o governo britânico revelava em que se apoiava para resolver suas equações políticas: a aliança com países de língua inglesa e a relação especial com os Estados Unidos, de Ronald Reagan.

    E Thatcher não estava sozinha.

    Décadas antes dessa declaração, o presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy anunciou a concessão da cidadania americana honorária ao ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill.

    Ao mencionar o papel de Churchill durante a Segunda Guerra Mundial, Kennedy declarou:

    In the dark days and darker nights when Britain stood alone – and most men save Englishmen despaired of England’s life – he mobilized the English language and sent it into battle. The incandescent quality of his words illuminated the courage of his countrymen.

    Kennedy atribuía à língua inglesa, tão bem dominada e empregada por Churchill em microfones anglófonos especialmente os da BBC de Londres, a vitória na Segunda Guerra Mundial. Interessante notar que não somente os soldados foram alistados para os campos de batalha, mas também a língua inglesa foi mobilizada e enviada ao front.

    Churchill agradeceu a distinção numa carta em abril de 1963 ressaltando a importância da língua nas relações entre os países. Não demoraria muito mais para a influência do inglês como língua universal começar a ser consolidada. A língua enviada para a batalha também conquistaria espaços estratégicos no cenário geopolítico.

    Mr. President, your action illuminates the theme of unity of the English-speaking peoples, to which I have devoted a large part of my life. I would ask you to accept yourself, and to convey to both Houses of Congress, and through them to the American people, my solemn and heartfelt thanks for this unique distinction, which will always be proudly remembered by my descendants.

    A associação da ideia de união política à utilização de uma língua comum, assim como a uma maior facilidade e rapidez na solução de problemas, foi também apontada por um dos maiores intelectuais portugueses do século XX, Agostinho da Silva. Vários anos antes da afirmação de Thatcher, com efeito, Agostinho da Silva sugeriu a formação de uma comunidade dos países de língua portuguesa com vista a alcançar objetivos nobres.

    No texto que se segue, republicado pela revista Nova Águia, em 2009, o filósofo diz:

    Pese no que pesar à busca da felicidade individual, a Comunidade tem que ser, quanto a este último aspecto, uma comunidade de missionários: nisto se diferenciará, por exemplo, de uma comunidade inglesa em que as receitas são sempre para uso próprio, não alheio. Coube a eles, talvez, tentar resolver problemas de vida pessoal: cabe a nós resolver os gerais; e veremos como só depois ficam os outros resolvidos.

    A associação dos aspectos político e linguístico não é um fenômeno novo. Já no século XVIII, o filósofo alemão Johann Gottfried von Herder (1744-1803), por certo que num contexto político e cultural muito diferente, expressou, claramente, o elo entre nação e língua. Para Herder era vital honrar a língua materna como forma de contribuir para a construção da pátria. Na tradução inglesa de Daniel Carey e Lynn Festa, o filósofo afirma: Who despises the language of his nation… will become the most dangerous murder of its spirit.

    Outro filósofo alemão, Ernst Moritz Arndt, ressaltou a importância para um povo de dominar bem seu idioma materno evitando, assim, ser dominado por um povo estrangeiro ao esquecer sua primeira língua. É necessário entender o contexto histórico do Iluminismo, em que Arndt se expressou, no início do século XIX. O filósofo fazia uma clara oposição ao regime francês de então, com a separação entre o que era alemão e o que era francês.

    O tema continua em voga nos nossos dias, nas sociedades ditas multiculturais, como é o aparente caso da sociedade dos Estados Unidos, onde convivem pessoas com diferentes culturas, e a dominância de uma língua sobre as demais não é isenta de problemas, mas é factual.

    Os textos citados mostram, claramente, que, no movimento histórico que conduziu ao estabelecimento das nações, língua e nacionalidade foram impostas. E que essa imposição continua a existir, embora de forma nem sempre bem-aceita por todos.

    Mas voltemos ao exemplo dos Estados Unidos. Ao examinarmos a propaganda de campanha durante as primárias das eleições presidenciais de 2012, verificamos que o domínio da língua inglesa foi associado, pelo menos na opinião de um dos pré-candidatos republicanos à Presidência americana, Newt Gingrich, ao poder político e à soberania, à defesa dos valores e interesses da pátria.

    Durante o mesmo período, o líder nas pesquisas de intenção de voto, o ex-governador do estado de Massachusetts, e também ele candidato a candidato pelo Partido Republicano, Mitt Romney (que veio a ser, efetivamente, o candidato republicano às eleições de 2012), foi atacado por Gingrich pelo fato de saber falar francês. Num spot de TV, Romney foi caracterizado como sendo antiamericano, por ter aprendido o idioma de Molière.

    Uma crítica semelhante voltou a existir nas eleições de 2016, quando novamente nas primárias do Partido Republicano um candidato criticou o ex-governador da Flórida, e fluente em espanhol, Jeb Bush, por falar espanhol em alguns comícios e entrevistas. Bush, casado com uma mexicana e pai de filhos bilíngues, era acusado de – ao falar em espanhol – enfraquecer a imagem dos Estados Unidos e da língua inglesa.

    Outro episódio associando língua a poder político foi ilustrado pelos comentários do vice-primeiro-ministro da Irlanda do Norte Martin McGuinness, numa reportagem da BBC de Londres.⁸ McGuinness, que integrou o então movimento rebelde Exército Revolucionário Irlandês (IRA, na sigla em inglês), afirmou que estava ponderando se reunir com a rainha Elizabeth II, após ela ter tomado a decisão de reconhecer a língua irlandesa. Dessa forma, ele descreveu a visita da monarca britânica à Irlanda, em 2011:

    And I think the fact that she was prepared to recognise the importance of the Irish language; that she was prepared to stand in a very dignified way to honour those patriots who struggled in 1916 to bring about a free and independent 32-county Irish Republic, that made an impact upon me.

    Jan Blommaert, especialista em política da língua, refere, com precisão, a relação entre língua e poder, ao examinar as consequências do que ele classifica de imagem de uma globalização baseada num centro econômico, político e financeiro dominado pela língua inglesa.

    Este autor analisa também, numa perspectiva eminentemente política, os binômios língua universal versus língua local, e língua oficial versus língua nativa, dos quais nos iremos ocupar mais detalhadamente quando abordarmos a relação do português, como língua com peso e estatuto internacional, com algumas das línguas locais/nacionais de países cuja língua oficial é o português, sejam os casos dos crioulos de Cabo Verde, da Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe ou as várias línguas angolanas, moçambicanas e timorenses.

    Blommaert nota ainda como a língua é utilizada para fins econômicos e estratégicos – dentro da mesma perspectiva política - ao analisar a promoção do inglês em países como a República do Congo e Moçambique. Segundo ele, a escolha do inglês também é motivada pelo desejo dos governos nacionais de se alinharem com os Estados Unidos e organizações internacionais tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

    Mais tarde, no capítulo sobre o português em Macau, veremos também como o chinês está sendo promovido em países que têm comércio ou cooperação com a China. Com a colaboração chinesa, também chega o idioma mandarim, na maior parte das vezes, sendo agora ensinado como segunda língua e parte informal ou formal do programa de desenvolvimento e cooperação. Um quadro não muito diferente do que já vimos no passado quando a disseminação da língua acompanhava os exploradores e navegadores.

    O contexto de valorização da geopolítica das línguas ganha relevo, como explica o professor emérito da Universidade de Harvard Joseph S. Nye Jr., entre soft power (ou poder suave) e hard power (ou poder duro). O poder suave traduz-se na capacidade de atração e persuasão, em contraponto com o poder militar, que é, por excelência, o poder duro, o que é suscetível de ser imposto pela força. No âmbito do soft power, são utilizadas ferramentas das culturas dos países, como sejam a língua, a literatura, a música etc. As telenovelas brasileiras presentes em mais de 120 países são um exemplo desse poder suave e, ao navegarem outros continentes por meio da indústria do entretenimento, elas sutilmente promovem o português, o Weltgeist e a forma de viver e pensar em língua portuguesa.

    De acordo com dados das Nações Unidas, em 2050, o universo dos falantes de português no mundo deve ultrapassar os 350 milhões de pessoas, um número superior ao da população atual dos Estados Unidos (i.e., 324 milhões).

    Essas projeções indicam que, de todos os países que falam o português, só Portugal não deverá sofrer grandes alterações em suas taxas de natalidade. Já Angola, Moçambique, Brasil, Timor-Leste e Guiné-Bissau, pelo contrário, têm estimativas de crescimento substancial de suas populações.

    Ao sugerir, em 2008, uma política de internacionalização do português visando à promoção do idioma no mundo, Portugal e os demais países da CPLP demonstraram, claramente, sua intenção de investirem na língua comum, de forma estratégica, sem esconderem a existência de dividendos políticos e econômicos advindos da ação conjunta. Não foi a primeira vez que um país, ou conjunto de países, como aconteceu neste caso, posicionou-se na defesa de um idioma. Um dos exemplos mais conhecidos é o da França, que promove, atualmente, o francês no mundo com a ajuda de um robusto aparato estatal e o apoio da Organização Internacional da Francofonia (OIF), que inclui muitos países africanos e de outros continentes. Nos últimos anos, porém, a França tem procurado apoio para a sua causa em outras fonias, como nos mostra um dos responsáveis pela estratégia de promoção da língua francesa no Instituto Francês, Xavier North. Em 2018, o país convidou Portugal a integrar a OIF, e Portugal, em contrapartida, informou que a França passaria a ser parte da CPLP. Em julho de 2018, França, Reino Unido, Itália, Argentina, Luxembugo e Chile passaram a integrar o bloco lusófono como membros observadores. A lista incluía ainda Sérvia e a Organização dos Estados Ibero-Americanos, OEI.

    Anos antes da pertença francesa à CPLP, North ressaltava a identificação da França com Portugal, por, em sua opinião, tratar-se de dois países que têm uma língua global falada fora de suas ex-metrópoles, nas Américas e também na África.

    A solidariedade francesa, no âmbito da aliança linguística com seus parceiros, tem objetivos também políticos, como notou o linguista francês Louis-Jean Calvet, cujas palavras iremos examinar mais adiante. É neste preciso contexto que é necessário perceber a identificação feita por North da França com Portugal. Ao procurar unir-se a outras línguas, com a motivação da solidariedade linguística, o francês não só se defende e autopromove como língua nacional como tenta também esvaziar a afirmação e a presença do inglês enquanto língua franca.

    Ao ser perguntado se a França pretendia ser a líder da campanha do multilinguismo, como alternativa à ideia de uma língua dominante, não já à escala nacional, mas do mundo, com todas as implicações políticas daí decorrentes, North explicou que a palavra líder era muito forte, mas que a França pretendia, sem dúvida, manter viva a defesa de outras línguas em um mundo globalizado para evitar que o francês desaparecesse.

    Às palavras de North sobre a defesa da língua (entenda-se: da língua francesa) soma-se ainda, num incidente totalmente separado, um trecho de uma palestra proferida por José Saramago, Prêmio Nobel da Literatura, que explica assim a necessidade de defesa do português.

    Num livro de viagem que escrevi há alguns anos, precisamente chamado Viagem a Portugal, dei a um breve capítulo da parte consagrada ao Algarve o título: «O português tal qual se cala.» Não preciso explicar porquê. Hoje, uma língua que não se defende, morre. Não de morte súbita, já o sabemos, mas aos poucos irá caindo num estado de agonia desesperada que poderá levar séculos a consumar-se, dando em cada momento a ilusão de que continua viva, e por esta maneira afagando a indolência ou mascarando a cumplicidade, consciente ou inconsciente, dos seus suicidários falantes.¹⁰

    Considerando o conselho de Saramago ou não, Portugal tem-se empenhado, de forma sistemática, na disseminação do idioma (e de sua influência política) sob vários ângulos e nomenclaturas, por exemplo: lusofonia, herança comum, bem partilhado, lusofonia global, rubricas que tentam convencer os demais países lusófonos de que a união em torno do idioma é crucial para a sua afirmação no mundo. De certa forma, o que Portugal está fazendo não difere muito do que a França e a Espanha executam para preservar seus patrimônios linguísticos, com seus legados e influências.

    Fora de Portugal e dos outros sete países de língua portuguesa, na CPLP,¹¹ o português é falado por milhões de pessoas nas diásporas e como língua estrangeira, de acordo com dados do Observatório da Língua Portuguesa (OLP) e do Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP). Estima-se que 7 milhões de lusófonos vivam nas diásporas. Essas mesmas organizações informam que o português é a terceira maior língua do Hemisfério Ocidental, atrás do inglês e do espanhol. Já o sítio Internet World Stats, que mede a penetração das línguas na internet, coloca o português em quinta posição, com mais de 170 milhões de usuários em linha, em 2018.

    O trabalho consistente de Portugal no desenvolvimento de uma política apropriada para a promoção do português no mundo foi formalizado em 2008, muito por sua iniciativa e capacidade diplomática, durante a VII Cimeira de Chefes de Estado e governo da CPLP. Naquela ocasião, em Lisboa, o presidente de Portugal, Aníbal Cavaco Silva, apresentou a proposta que foi endossada por todas as nações do bloco.

    Que pretendeu o governo português com essa iniciativa de aposta na língua? Estaria tentando afirmar uma política única da língua por parte da CPLP, ou seja, uma política com reflexos essencialmente externos? Estaria antes tentando relativizar a influência natural que a variante brasileira poderia obter, mais cedo ou mais tarde, no cenário internacional devido à ascensão geopolítica do Brasil? Ao promover externamente a sua língua materna compartilhada com tantas ex-colônias, poderia a ex-metrópole reafirmar-se politicamente?

    Retomando a primeira hipótese, estariam todos os países de língua portuguesa disponíveis para se empenharem na realização de um empreendimento conjunto de defesa do idioma, nisso vislumbrando vantagens para todos? Com efeito, o espaço de língua portuguesa no mundo é bastante relevante e explicado em números: o idioma falado por mais de 210 milhões de brasileiros, na América do Sul, e por um pouco mais de 11 milhões de portugueses, em Portugal. Como língua oficial de países como Angola e Moçambique, amealha um universo de mais de 57 milhões de cidadãos, muitos deles aprendem o português após chegarem às escolas falando suas línguas locais, que só enriquecem o cenário da lusofonia global. Angola e Moçambique são economias emergentes e inseridas em importantes blocos regionais e linguísticos como Cedeao, Sadc, Commonwealth, OIF, CPLP etc.

    Poderia também a proposta significar uma vantagem comparativa para todos os falantes do português? Quais são os dividendos políticos, econômicos e de influência no cenário internacional apresentados pela defesa da língua e quem tem a obrigação de fazê-lo?

    A preservação dos idiomas está intimamente ligada também com o poder político das nações e o uso oficial que se faz deles. Há alguns anos, na Alemanha, uma situação visivelmente constrangedora para as pessoas presentes envolveu o então vice-chanceler, Guido Westerwelle. Após serem conhecidos os bons resultados do seu partido nas eleições gerais, Westerwelle insistiu em se expressar em alemão. Em entrevista a correspondentes estrangeiros, aquele que viria a ser o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, num governo de coalizão liderado por Angela Merkel, recusou-se a responder em inglês a uma pergunta de um repórter da BBC. Westerwelle argumentou que, assim como na Grã-Bretanha se fala inglês, na Alemanha, se fala alemão¹².

    Ao comentar a questão da identidade linguística como modo não apenas de sobrevivência política mas de aprofundamento da interdependência e relações de cooperação, Rudolf de Cillia sugere que:

    As línguas são muito mais que um meio de comunicação... a língua materna é o símbolo central de identidade individual e coletiva, um símbolo que significa pertencer a um certo grupo étnico e a uma certa comunidade linguística.¹³

    Dependendo da interpretação que se faça, a afirmação da língua tanto pode ser um fator de abertura ao mundo como um fator de enclausuramento.

    Esta questão tem pertinência na crítica feita pelo escritor português Eduardo Lourenço ao Estado Novo, na sua obra Heterodoxias, na qual aquele critica o Estado Novo por supostamente se fechar numa lógica identitária solipsista (do célebre orgulhosamente sós) que, a despeito das tradicionais boas relações com o Brasil, não se livrou de enfrentar muitas e sérias dificuldades com este país.

    Outro exemplo sobre as relações entre língua e poder encontra-se em África, onde, em 2008, o governo de Ruanda decidiu mudar seu sistema educacional apoiado no francês (língua da potência colonizadora) para o inglês (língua do colonizador concorrente). A medida afetou todo o processo educacional do país, do jardim da infância à universidade. De acordo com uma reportagem publicada pela rede britânica BBC, a mudança teria sido motivada pela decisão oficial ruandesa de se associar à Comunidade do Leste Africano e de se candidatar a membro da Commonwealth. Após o genocídio de 1994, Ruanda começou a investir também na construção de uma nova imagem e na criação de novas relações, com a comunidade internacional, que passariam, inevitavelmente, por maior proximidade com a língua inglesa, falada ainda por muitos tútsis que viviam no exílio e que retornaram a casa com o fim do genocídio. A maioria da população, no entanto, fala a língua Kinyarwanda, à margem de toda essa discussão.

    Segundo o especialista na África da BBC Martin Plaut, outra razão para a decisão do governo ruandês seriam suas relações com o antigo poder colonial, a França, terem se deteriorado por causa da atitude dessa na época do genocídio ruandês, causando a ruptura com a língua de herança.

    Officially the Rwandan decision is a result of joining the English-speaking East African Community. But relations between Rwanda and France have been frosty following the 1994 genocide, when France was accused of supporting Hutu militias.¹⁴

    Um ano depois, Ruanda deu mais um passo na sua política da língua ao anunciar sua entrada para a Commonwealth, o bloco anglófono equivalente à Organização Internacional da Francofonia (OIF). Dessa forma, a nação africana sinalizou, claramente, sua opção política de romper com a França, ao menos linguisticamente.¹⁵

    A partir dessa corrente de pensamento não se constitui uma surpresa que a política da língua provoque reações de cunhos nacionalista e patriótico, ao determinar também poder político.

    Um paralelo histórico poderá ser estabelecido, no contexto das relações entre Portugal e Brasil, com a decisão de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, de fazer da língua portuguesa [...] o idioma oficial da Colônia, em 1757, iniciando-se, assim, o processo de gerenciamento do português como língua do território em detrimento de outras línguas faladas no Brasil da época, tanto as línguas indígenas faladas pelos povos que habitavam o território, antes da chegada dos portugueses, como as línguas africanas faladas pelos escravos, ou mesmo o espanhol, das vizinhas colônias da Espanha.

    Com a medida, que ficou conhecida como Lei do Diretório, a Coroa portuguesa afirmou seu poder político naquela parte do Novo Mundo e, presumivelmente, de língua espanhola, numa afirmação política clara da separação de soberanias e interesses. Esse foi, aparentemente, o primeiro registro histórico de uma política da língua e influência política executada por Portugal no que é hoje o território brasileiro. Ao comentar a influência política da língua em tempos modernos, o ex-presidente de Portugal Jorge Sampaio falou sem reservas sobre a importância da política da língua e da promoção da nossa influência no mundo nesta entrevista gentilmente cedida à autora:

    Monica Villela Grayley: Analisando alguns documentos da época do seu mandato, notamos que o sr. foi um dos presidentes que mais fizeram pela promoção do idioma. Por que este tema é tão importante e politicamente estratégico?

    Jorge Sampaio: Porque a língua é uma forma de preservar e de aumentar a identidade e o conhecimento desta identidade através do mundo, porque é uma fonte de ligação entre os vários portugueses e os portugueses falantes. E porque é um instrumento de política cultural, de política-política, propriamente dita. Espero que seja, cada vez mais, um instrumento de política científica, também, e tecnológica, e, portanto, digamos assim, é um poderoso instrumento de ampliação da nossa influência, quer dizer, da nossa influência no mundo, do nosso conhecimento, da nossa história. Ao mesmo tempo, esse instrumento deve ter também uma dimensão de futuro. No fundo, temos uma identidade. E não há nada melhor para reforçar uma identidade do que uma língua própria. E, ainda por cima, falada com o auxílio dos brasileiros e de outros membros da CPLP, angolanos, moçambicanos, etc, é uma língua falada por mais de 200 milhões de pessoas, e, portanto, em crescimento. Isso significa que hoje já não é só um instrumento de identidade e que visa o aumento de influência, mas passou a ser também uma língua de trabalho. Há pessoas que na China aprendem português. Há pessoas que em África querem aprender português, e por toda parte do mundo.¹⁶

    Ao procurar arregimentar apoios para a afirmação do português no mundo, sob a égide de uma herança comum, Sampaio, com a sua vasta experiência política, advogou que Portugal, com a ajuda dos demais países lusófonos, procurasse demonstrar força política, numa manifestação de poder suave. Jorge Sampaio sugeriu ainda que Portugal continuasse seus esforços de se manter relevante no mundo, ciente de que o poder econômico e militar (na definição do jogo de xadrez tridimensional, de Joseph Nye, em seu livro O Futuro do Poder) não é atualmente suficiente. E como bem ressalta o ex-presidente português, um intelectual por excelência, o idioma é falado por outros países incluindo o Brasil, o maior país lusófono em número de locutores da língua, de modo que toda essa influência não deve ser desperdiçada politicamente, mas estrategicamente empregada para o benefício desses próprios países. Mas quanto vale essa língua em números?

    O VALOR ECONÔMICO DA LÍNGUA PORTUGUESA

    Ao estabelecer-se como uma grande nação empreendedora e autora dos Descobrimentos, Portugal sagrou-se como um dos maiores comerciantes da Era Mercantilista. Eurico Ribeiro lembra que os portugueses do Descobrimento recorreram a parcerias, negócios e lançaram os alicerces do próprio setor terciário de atividade, ou seja, serviços à escala mundial.¹⁷

    O português constituiu-se como língua comercial com trânsito das Índias às Américas, onde se firmou também com as missões religiosas da catequese. O linguista britânico Nicholas Ostler lembra o significativo peso comercial do português e como a língua era falada por todos que queriam negociar com Portugal nesta citação do orientalista francês Anquetil du Perron, no século XVIII:

    Merchants of the Hindus, Moors, Arabs, Persians, Parsees, Jews and Armenians who do business with the European factories ... are obliged to speak this language; it serves also as a medium of communication among the European nations settled in India.¹⁸

    Luís de Camões, em Os Lusíadas, celebrou, precisamente, a importância e o valor do comércio na expansão marítima portuguesa do Quatrocentos e Quinhentos. Porém Ostler opina que o tempo de domínio espanhol sobre Portugal, entre 1580-1640, selou o futuro para o português. Segundo o linguista, quando os portugueses reconquistaram sua soberania, em 1640, o uso do português como língua franca já estava perdido para o inglês e o francês. Assim, segundo Ostler, ocorreu o ocaso do português com o fim do esplendor comercial de Portugal e a partir do momento em que a língua deixou de navegar. Esta afirmação estabelece historicamente uma forte associação entre língua, comércio e poder econômico. Diz o autor:

    By the time that Portugal reclaimed its sovereignty from the Spanish in 1640, its Indian Ocean trade network had been lost beyond recall: the French by then seemed poised to dominate trade with India,

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