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Angel Gabriel - Pacto de Sangue (Edição 5 anos)
Angel Gabriel - Pacto de Sangue (Edição 5 anos)
Angel Gabriel - Pacto de Sangue (Edição 5 anos)
E-book583 páginas7 horas

Angel Gabriel - Pacto de Sangue (Edição 5 anos)

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Sobre este e-book

Num futuro distante, a extinção dos humanos aproxima-se.
A magia e o silêncio são as únicas armas eficazes para proteger a espécie.

Já não existem vidas pacatas, mas a de Angel é o que de mais próximo há disso. No refúgio ela sobrevive ao perigo dos vampiros e ao domínio dos Primordiais, mas os segredos que Angel e a mãe escondem há anos não permanecerão ocultos muito mais.
Quando Cornivar descobre a localização delas, o ataque é impiedoso e só a magia de Angel e da mãe pode salvar todos os habitantes do refúgio de Kirovohrad.
Agora, prisioneira de um pacto de sangue criado pela sua própria mãe, Angel terá de unir-se a Gabriel, o mais poderoso dos vampiros Sekhmet. Juntamente com a sua irmã, Amilda, e Davet, terão de percorrer a Europa em busca de uma solução para o seu problema. Ou será que procuram uma resolução para todos os problemas?

IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de abr. de 2018
ISBN9780463615737
Angel Gabriel - Pacto de Sangue (Edição 5 anos)
Autor

Ana C. Nunes

Writing since 1998, only in 2008 did I start to write more seriously and with thoughts of possible publication. It was only when I started NaNoWriMo (National Novel Writing Month) that I actually gained a stable writing habit and, since then, I haven't stopped. I write short-stories and novels in the fantasy and science-fiction genre. Sometimes I delve into general fiction as well. mostly in short-stories. I also write and draw comics and graphic novels. And for one of my comics, "Someone once told me...", I won the 3rd prize at the 4th Odemira Comics Exhibition (in 2010). Published works elsewhere: - "Just my Luck", a graphic novel published in the newspaper Barcelos Popular (2006-2007); - "Electro-dependência" a short-story included in "Lisboa no Ano 2000", an anthology published by Saída de Emergência (2013); - Short-stories published in fanzines such as "NaNoZine" and "Fénix"; - Comics published in Comic albums such as "Odemira-te" and "Zona Nippon"; - "Anormal", a short story published by Editora Draco (2016).

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    Angel Gabriel - Pacto de Sangue (Edição 5 anos) - Ana C. Nunes

    Capítulo 1

    Kirovohrad, Ucrânia

    11 de Janeiro de 2175, 10h00

    «Tudo começou com fogo-de-artifício.»

    Alguém me disse isto em criança. Não tenho a certeza se foi a minha mãe ou a Evaress, mas sempre achei que era uma descrição poética demais para o nosso início. Não o início do mundo ou da raça humana, mas o início deles e de nós. Parece algo tão recente, se comparado com a restante história da humanidade, mas é o que nos vem logo à cabeça quando falamos em inícios.

    Ei, ei! Olha o que estás a fazer! - Iryna puxou-me os braços para fora da banha de porco, fazendo a gosma cair toda para o chão.

    Então? – Disse com calma.

    Iryna levantou-me o braço e empurrou-me a mão direita até quase tocar-me no nariz. Banha saltou-me para o rosto e para os lábios. – Onde é que estão as tuas luvas, Angel?

    Estava tão distraída que me esquecera de as pôr. Mas não lhe ia dizer isso. – Ora, que interessa isso.

    Ela largou-me o braço atirando-o contra o meu corpo. – Tu acabaste de vir do galinheiro. Ao menos lavaste as mãos?

    Senti as bochechas arderem. – Mas achas que sou alguma criança? – Não levantei a voz. Não lhe quis dar essa satisfação.

    A cara dela quase rebentava de irritação. Iryna era mais velha que a minha mãe e os anos notavam-se nas rugas vincadas, mas não na energia que tinha no dia-a-dia. – Às vezes bem pareces!

    Não lhe dei nenhuma resposta, embora a tivesse pronta na ponta da língua. De facto ela irritava-me, mas a verdade era a verdade. Fui lavar as mãos e os braços até aos cotovelos na fonte junto à porta de entrada da gruta. Água gelada caía sem cessar da rocha. Fiquei com os dedos dormentes e mal senti a textura das luvas enormes quando as enfiei. Ficava ridícula com aquilo, mas ela tinha razão. Não sei como me tinha esquecido.

    Quando regressei à bacia de banha, a minha colega do lado estava a rir-se. – Ela não te dá descanso.

    Olhei de esguelha para Iryna, que estava do outro lado da gruta a gritar com outro trabalhador. O homem era mais alto e mais corpulento que ela, mas encolheu-se todo ao ser admoestado.

    Bem, ao menos não posso dizer que é só comigo. –Voltei ao trabalho, enfiando banha quente em frascos toscos.

    Nika, a minha colega do lado, tinha sempre algo a dizer. - Continuo sem perceber porque não arranjas trabalho noutro sítio.

    Não lhe dei a resposta que ela queria. – Não sou mais que os outros. Tenho de trabalhar como toda a gente.

    Nika curvou-se sobre a sua bacia enorme, para poder falar mais baixinho e mais perto de mim. – Se fosse filha da Jane eu arranjava um trabalho nos armazéns, ou no hospital, ou nas estufas. – Abriu os braços para abarcar todo o espaço. – Agora aqui? Quem é que no seu perfeito juízo quer trabalhar aqui.

    Outra vez aquela conversa. A Nika cansava-me.

    Acabei de encher os frascos para o carrinho-de-mão que levei depois para o outro canto da sala. Éramos oito a trabalhar ali e não tínhamos mãos a medir.

    Sergey ajudou-me a tirar os frascos a pingarem gordura, armazenando-os nas estantes encrustadas na parede da gruta. Ele não disse nada mas eu agradeci.

    Tinha comichão no nariz e sentia o suor a escorrer-me pela testa quando passei para o outro corredor e o cheiro dos dejectos dos porcos me chegou ao nariz. A repulsa foi imediata, mas pouco duradoura. Já estava habituada.

    Num salão cinco vezes maior do que onde nós trabalhávamos, estavam os suínos, uns rosados, outros pretos, todos entretidos a chafurdar na mixórdia e na lama. Os leitões então é que se divertiam!

    Sergey apareceu atrás de mim e ultrapassou-me, abrindo o portão de madeira que nos separava dos suínos. O cabelo preto dele estava colado à cara por causa do suor e ele piscava os olhos muitas vezes. Gesticulou para que o seguisse e eu obedeci, levando nas mãos dois baldes metálicos cheios de restos de comida. Ainda nem tinha chegado aos comedouros e já os porcos me empurravam com os focinhos, grunhindo contra as minhas pernas e contra os baldes.

    Não sejam chatos! – Dancei pelo meio deles e espalhei os restos pelos comedouros que eles atacaram logo de seguida. Nem me deram tempo de afastar. Consegui sair do meio deles a custo.

    Repetimos o processo mais duas vezes, para distribuirmos comida pelos porcos todos. Alguns dos pequeninhos andavam pendurados nas tetas das mães, guinchando bem alto quando elas se afastavam muito, mas nem eles se atreviam a ir para o meio do frenesim da refeição dos adultos.

    Perdi-me a vê-los.

    Sergey tocou-me no braço e puxou-me com ele. Fomos lavar as mãos e os rostos antes de nos virarmos para as conservas em banha. Tudo no mais perfeito silêncio. Adorava trabalhar com o Sergey!

    Estávamos a terminar de lacrar uns fracos de carne em banha, quando ouvimos a estática do sistema central de comunicação. Todos os olhos se dirigiram às estalactites acima das nossas cabeças. Ridículo! Como se alguém estivesse lá em cima.

    Caríssimos irmãos! Queiram por favor reunir-se na galeria central. A nossa cerimónia de silêncio vai começar dentro de quinze minutos e contamos com a presença de todos vocês! – Directo ao ponto. Donovan não era de meias palavras.

    Fizemos fila para a fonte.

    Nika estava atrás de mim e, como sempre, não fazia nada se não queixar-se. – Andai lá com isso que eu ainda quero passar no meu quarto para trocar de roupa. A minha sobrinha vai ser silenciada hoje, sabiam? – Todos sabiam. Ela fazia questão de falar nisso todos os dias. – Andai lá!

    Sergey, que estava à minha frente, agarrou no braço de Nika, sem grande gentileza, e empurrou-a para a sua frente, só para a calar.

    Obrigada, Sergey! Sempre um cavalheiro.

    Sergey olhou de relance para mim e depois revirou os olhos. Eu cuspi uma gargalhada que depois cobri com as mãos.

    Os corredores da zona de produção estavam quase vazios quando saí. Iryna fechou as portas atrás de mim e depois seguiu o seu caminho com muita mais pressa que eu. Fui nas calmas.

    Não havia estalactites ou estalagmites, ou sequer paredes com linhas muito duras na galeria principal. O centro da caverna tinha sido esculpido pela mão humana, para servir de zona de espetáculos. Ao centro havia um pequeno palco, uns metros acima da plateia, para que todos pudessem ver e ouvir muito bem o que lá em cima se passava.

    Nove bancos velhos e gastos estavam ocupados por homens e mulheres de idades variáveis, que cochichavam entre si. Três bancos estavam vazios. Pertenciam às duas mulheres e ao homem que estavam a um canto do palco, falando entre si. A minha mãe estava entre eles.

    Ela era a mais baixa, mas não era isso que a tornava menos notória. A sua pose e a maneira como os outros dois se curvavam para escutar as suas palavras mostravam que a respeitavam. Por seu lado a Gigliona, como já era habitual, levava vestido um casaco de tecidos remendados e umas calças a condizer. Ela não desperdiçava nada! Donovan vestia-se todo de um branco imaculado. Não havia remendos para ele. A minha mãe, por sua vez, era um meio termo. A sua saia era de um tecido só, mas a camisola de gola era toda feita de pedaços de outras roupas velhas que reutilizara.

    Reaproveitamentos de roupa era a coisa mais normal ali no nosso refúgio. Poucos eram os que se podiam dar ao luxo de ter roupas novas.

    Olhei por mim abaixo e suspirei. As minhas calças estavam a ficar gastas no meio das pernas e nos joelhos. Precisava mesmo de as remendar, mas para trabalhar serviam bem.

    As crianças estavam a começar a subir ao palco.

    Onde tu te foste meter? – Luigi tocou-me no ombro. As suas faces rosadas contrastavam com os olhos verdes intensos. Era um rapaz disfarçado de homem. Era um homem disfarçado de rapaz.

    Sorri-lhe. – Andavas à minha procura?

    Que te parece? A Amilda não sossega enquanto não te vir. - Puxou-me pela mão, levando-me junto da parede, passando por trás da multidão. Enquanto ele me levava eu tentava ver o que se passava no palco, mas as cabeças das pessoas metiam-se no caminho.

    Amilda estava de pé numa das muitas escavações nas paredes, que serviam as vezes de lugares privilegiados para os espetáculos. Mal me viu o seu rosto iluminou-se.

    Encontraste-a! – Baixou-se para agarrar no rosto de Luigi e beijá-lo. Obrigada, mon coeur¹!"

    "Sempre às ordens, mia piccola streghetta²." – De um salto ele sentou-se na concavidade, pôs-se depois de pé e estendeu uma mão para me ajudar a subir. Amilda agarrou-me na outra mão e eu nem tive de me esforçar.

    Por onde andaste? – Amilda ficou a agarrar-me a mão, mesmo depois de eu estar segura lá em cima.

    Sabes como é…

    Vi o olhar de esguelha dela mas foquei-me no palco. As crianças estavam já todas alinhadas. Meninos e meninas tão pequeninhos que ainda mal sabiam caminhar. Cada vez os traziam mais pequenos. Eu pensei isto, mas a Amilda disse-o bem alto.

    É! – Concordei. – O mundo está cada vez mais perigoso. Acho que quanto mais cedo melhor.

    Já pareces a mãe.

    Na verdade estava a citá-la, palavra por palavra. Amilda provavelmente escutara o mesmo.

    Não concordas? – Perguntei.

    Não sei.

    Um menino, que não devia ter mais de dois anos, estava no centro da fila de crianças, olhando para uma e outra mão, que tinha dada com as crianças ao seu lado. De chupeta ainda na boca, ele parecia perdido e confuso mas ninguém o acusaria de ser mal comportado. Não se mexeu dali.

    Parece que antes mesmo de eles saberem falar já estão a ser silenciados. – A voz de Luigi, mesmo na minha nuca, fez-me estremecer. – Não acham um pouco excessivo?

    Amilda recostou-se de encontro ao peito dele. – Nunca podemos ser cuidadosos demais.

    Luigi mordeu o lábio inferior, parecendo suprimir uma qualquer resposta. Abraçou a noiva com mais força e beijou-lhe o cabelo.

    A cerimónia começou. A minha mãe caminhou até à criança mais à esquerda, sempre com um sorriso na cara. Ajoelhou-se à frente dela, uma menina magrinha de cabelos loiros, perguntou-lhe o nome e no fim pousou dois dedos da mão direita sobre a garganta da menina. A mão da minha mãe brilhou um verde pálido que se concentrou depois nos dedos e repousou por fim na pele da menina. Quando a minha mãe retirou os dedos a garganta dela ainda brilhava e depois a luz subiu para o seu crânio.

    Levei as mãos ao meu próprio pescoço e vi que metade da multidão fez o mesmo. Senti a mais pequena cicatriz em forma de um círculo com um ponto no meio. O preço da nossa segurança. O silêncio.

    Gigliona começou a acionar os feitiços nas crianças da direita e, em menos de nada, os onze estavam para sempre protegidos. A magia ficaria dormente até que eles morressem, ou até que se tornassem um deles. Até que se transformassem em vampiros. Nessa altura a magia atuaria e proteger-nos-ia a todos. Ninguém que passasse pela cerimónia do silêncio e se transformasse em vampiro alguma vez poderia divulgar qualquer informação que pusesse em causa a localização ou segurança dos humanos. Mesmo que tentassem não se iriam recordar de nada.

    Sabia que era bárbaro enfeitiçar crianças tão novas, mas a partir do momento em que elas sabiam falar, podiam trair os nossos segredos. Não seria a primeira vez que um refúgio era dizimado à conta de uma criança capturada pelos vampiros. O feitiço também as impedia, e a nós, de regurgitar informação sobre pressão. Se o nosso corpo fosse sujeito a violência extrema, o feitiço entraria em acção.

    Luigi estava com uma expressão pesada. Era raro vê-lo assim. Normalmente era sempre tão alegre, tão relaxado. - Já imaginaram o que poderíamos fazer se soubéssemos alterar este feitiço?

    Amilda largou-me a mão para a levar à nuca do noivo. – Luigi, não penses nisso.

    Fiquei curiosa. – Como assim?

    A multidão aplaudiu o desfecho da cerimónia, quando as crianças e as feiticeiras fizeram uma pequena vénia e a claraboia se abriu para deixar entrar a luz do sol e a aragem fresca do inverno. Recebi o calor com um suspiro. Luigi fechou os olhos para o saborear, assim como Amilda.

    O sol era uma dádiva! Todos o receberam em silêncio.

    Sentia saudades de sair e apanhar o sol directo no rosto, de ouvir o vento passar pelas minhas orelhas, de pisar a neve. Porque é que eu teimava em não pedir um trabalho que me desse mais contacto com o exterior? A Nika tinha razão. Se eu fosse esperta usava a influência da minha mãe. Mas não! Não o faria.

    Quando a claraboia se fechou o mutismo geral continuou pela decepção.

    Luigi desceu da fissura na parede, ajudou Amilda e depois a mim. Agradeci-lhe com um sorriso e enquanto íamos a caminho da saída, ele retomou a conversa anterior.

    Já pensaste o que aconteceria se conseguíssemos alterar o feitiço do silêncio? Se pudéssemos fazer com que quem se transformasse em vampiro não só não pudesse falar como não pudesse matar.

    As palavras dele apanharam-se completamente de surpresa. Parei a meio da caminhada a e alguém veio contra mim.

    Ei! Tem cuidado!

    Desculpe. – Disse, sem sequer ver quem era. Avancei e agarrei Luigi pelo cotovelo. – Mas onde é que foste buscar essa ideia?

    Amilda falou antes de ele poder responder-me. – "De que vale ter ideias dessas. Luigi, mon coeur, tu sabes que isso é impossível!"

    Nada é impossível! – Os olhos dele dançaram entre nós as duas. – A Jane inventou um feitiço, ou não inventou?

    Senti uma pontada no peito. A minha mãe não tinha inventado feitiço nenhum, mas todos pensavam que sim. O feitiço tinha sido inventado, sim, mas não por ela.

    Já falamos sobre isso! Foi uma vez!

    Se aconteceu uma vez, pode acontecer novamente. – Luigi virou-se para mim, os seus olhos esperançosos e brilhantes. – Não achas?

    Engoli em seco. – Tudo é possível.

    Angel, não lhe dês ideias!

    Os dois envolveram-se numa discussão que terminou em beijos e risadas. Eu mantive-me à parte da conversa, envolta em pensamentos.

    Amilda e Luigi viraram para direita, em direcção à escola de magia, e eu devia ter seguido em frente mas esperei que eles se afastassem e segui pela esquerda. Os corredores estavam vazios. Todos trabalhavam àquela hora e eu já sentia as orelhas a arderem com a perspectiva do raspanete que a Iryna me ia pregar pelo atraso. Mas Luigi plantara a sementinha de uma ideia na minha cabeça e eu tinha de escrevê-la no papel para extravasar aquela loucura.

    O nosso quarto era um entre muitos, distinguido não por um número na porta mas por uma marca. Duas meias luas viradas de frente uma para a outra. Apesar de esperar deparar-me com o quarto vazio, suspirei de alívio ao encontrá-lo assim. Acedi as luzes e abri a segunda gaveta da primeira cómoda, tirei de lá um molho de folhas soltas e um lápis, começando a rabiscar o feitiço o mais rapidamente que consegui. A cada dez segundos parava para mover os dedos no ar e sentir a magia vermelha fluir-me pelo corpo. Balbuciava muito baixinho as palavras sem deixar que a magia tomasse uma forma real. Não pretendia usá-la, apenas criá-la e torná-la viável.

    Perdi a completa noção do tempo e por isso saltei quando a porta se abriu. Levei uma mão ao peito e depois suspirei de alívio ao ver a minha mãe.

    "My little angel³, que fazes aqui?"

    Continuei a escrever e senti-a espreitar por cima do meu ombro. Se ficou surpreendida com o que encontrou, não o demonstrou. Vi-a sentar-se na cama pelo canto do olho.

    Estás cansada? – Perguntei, sem parar de riscar e corrigir o feitiço.

    Ela massajou os pés e suspirou de alívio. – Exausta!

    Parei o que estava a fazer e olhei realmente para ela. Sorriu-me. Com o seu rosto quadrado e o corpo pequeno, ela parecia sempre um convite aberto a abraços, mas ninguém ignorava a aura de poder que exalava vinte e quatro horas por dia. Ninguém excepto eu, claro!

    Terminei as alterações que queria fazer, levantei-me do chão e fui ter com ela. Abracei-a e os seus braços apertaram-me com força.

    Fizeste um bom trabalho. – Disse-lhe.

    Obrigada, querida. – Pegou no papel que lhe estendi. – No que estás tu a trabalhar?

    Sentei-me aos seus pés e massajei-os. – Num feitiço.

    Isso já tinha percebido. É para quê? – Os seus olhos voaram pela página e antes que eu lhe pudesse responder ela levou uma mão ao pescoço. – Angel, isto … – Olhou-me de frente, com a boca aberta.

    Vais prometer-me que vais pensar muito bem antes de o usares.

    Mas o que foi que te deu? Porquê agora?

    Foi ideia do Luigi. – Esfreguei-lhe os dedos calejados dos pés com vagar. – Ele tem futuro. Sabe pensar mais além.

    Mas … e que vou dizer ao concílio?

    Dizes que foste tu que o inventaste. Claro está! Mas dá crédito ao rapaz.

    A minha mãe tirou os pés de cima da cama e com isso obrigou-me a olhá-la nos olhos, - Não achas que já está na hora de assumires o teu dom?

    Não!

    My angel, pensa bem.

    Levantei-me e preparei-me para sair. - Já disse que não! – Apanhei os papéis do chão e voltei a metê-los na gaveta. – Promete-me que dizes que foste tu.

    Ela suspirou e com isso pareceu ganhar mais uns anos em cima dos ombros. – Como queiras.

    Antes de sair beijei-a na face. – Obrigada.

    ¹ (francês) meu coração

    ² (italiano) minha pequena bruxa

    ³ (inglês) Meu pequeno anjo. (referência ao nome da personagem)

    ***

    Capítulo 2

    Kirovohrad, Ucrânia

    12 de Janeiro de 2175, 02h00

    Quando estamos muito habituados ao som do despertador, vem um dia em que este tocará e nós, prisioneiros do nevoeiro do sonho, não o reconhecemos como a ordem para iniciar o dia. A sirene de evacuação tinha esse efeito em mim. Já estava tão habituada a ela que o meu sono teimou em não me abandonar naquela madrugada. Só quando comecei a ouvir passos nos corredores é que abri os olhos. Tanto a minha mãe como a Amilda estavam no turno da noite por isso eu estava sozinha.

    Vesti o primeiro casaco que apanhei a jeito, enfiei à pressa as botas de cano alto e saí do quarto logo para o corredor, onde a poeira do chão batido flutuava ao gosto das dezenas de pares de pés que seguiam em filas ordenadas em direcção à luz ao fundo do túnel.

    Não corram e Não empurrem era gritado por várias pessoas em locais diferentes da extensa gruta.

    Eu fiz exactamente o oposto, desculpando-me baixinho e saltando para tentar cobrir mais caminho por entre os corredores escuros e estreitos que me guiaram até à galeria central da gruta, que estava repleta de homens, mulheres e crianças que ali se haviam juntado, uns em pijama, outros vestidos apressadamente, como eu.

    A fraca luz da lua, que escoava pela pequena claraboia no centro da praça, pouco se reflectia nos rostos preocupados de quem lá estava, mas as centenas de pequenas lâmpadas LED de cores e tamanhos variáveis deixavam ver bem a preocupação nos seus rostos.

    A sirene não parava de tocar, adicionando mais tensão aos corpos colados.

    Ouvi alguém chamar por mim. - Angel! – Reconheci de imediato a voz.

    Junto a um dos outros túneis, à minha direita, vi o cabelo preto da minha irmã adoptiva, que me acenava vigorosamente. Como ela conseguia manter aquele belo sorriso mesmo em alturas de crise, seria para mim um eterno mistério.

    Enfiando os braços no meio da multidão, abri caminho até ela, ouvindo umas quantas queixas pelo caminho.

    Cheguei ao pé da Amilda rapidamente e respirei fundo antes de perguntar: – Onde está a mãe?

    Já está lá fora.

    Agarrou-me a mão e puxou-me para a direita para as portas de aço que estavam abertas para deixar passar cinco homens e mulheres cobertos por pesados casacos e de cabeças juntas em estratégias sussurradas. O aperto da multidão libertou-me apenas quando os alcançamos e pude então respirar normalmente mas, assim que passamos as portas de aço, fomos esbofeteadas pelo vento gelado. Um outro túnel, muito mais largo que os anteriores, mas igualmente mal iluminado, estendia-se várias centenas de metros até ao exterior. O vento uivava como uma alcateia coordenada, forçando-nos a puxar os capuzes para cima e a enfiarmos os visores de neve.

    Encostadas às paredes estavam alinhadas várias motos de neve montadas com partes de diferentes aparelhos, consertadas centenas de vezes a partir de peças antigas, com uma fileira de painéis solares no capô e laterais traseiras das motos, e enormes baterias grosseiramente anexas ao veículo, tipo reboques. Sempre que olhava para elas achava que estavam a pontos de se desfazerem mal alguém lhes ligasse o motor, mas incrivelmente isso ainda não tinha acontecido.

    Os dois homens e três mulheres que seguiam à nossa frente montaram as três motos mais próximas do fim da gruta e saíram para a noite calma e gelada. Amilda pôs-se em cima da seguinte, accionou o botão e deu à chave. O motor zuniu baixinho, fazendo tremer o veículo.

    Os seus olhos pretos brilharam quando se voltou para mim, desenrolando a gola da camisola grossa até tapar o nariz, dizendo numa voz abafada. – Vens?

    Sorri-lhe. – Achas que estou aqui só para apanhar frio?

    Nunca se sabe … - Amilda encolheu os ombros, divertida.

    Subi para a moto atrás dela e mal tive tempo de me agarrar antes de ela carregar na alavanca e a moto começar a deslizar pela neve acumulada. Aguardando a imensidão do branco que sabia já de cor, fiquei desapontada pela escuridão quase total que me impediu de ver para além do que os faróis iluminavam. Várias centenas de metros à nossa frente seguiam as outras três motos, e ainda mais à frente, quase imperceptíveis na distância, mais duas deslizavam com força em direcção a Norte.

    A ausência de nuvens e a fraca lua permitia-me ver o céu estrelado em todo o seu esplendor. Se para grande parte das pessoas a noite é uma maldição, eu nunca consegui evitar vislumbrar-lhe uma beleza sombria e uma chama de esperança. Não podemos odiar aquilo que também nos dá mais poder, pois nem o calor do Sol se sobrepõe à magia das estrelas e da Lua.

    Na distância as primeiras duas motos pararam e demorei alguns segundos a reconhecer a silhueta da pequena torre de vigia que se erguia no cimo de uma pequena colina. A torre era uma construção simples, esguia e não muito alta, feita de madeira, com capacidade apenas para albergar um sentinela de cada vez. Não tinha luzes em volta, nem fora nem dentro do posto de vigia, e era impossível adivinhar-se qualquer forma humana ou animal nas imediações. Estava escuro demais.

    As restantes motas dispersaram, cada uma para uma colina diferente, e Amilda fez o mesmo, seguindo para a direita e desligando os faróis da moto. Teve de reduzir a velocidade e quando o fez consegui ouvi-la a rezar baixinho. Amilda levantou a mão direita até aos visores e pressionou o pequeno botão ao lado da lente. Fiz o mesmo nos meus e a minha visão passou a ser processada em tons de verde e cinza escuro, discernindo com alguma facilidade as curvas da colina e os picos das árvores cobertos pela neve fofa que caíra nessa tarde.

    Avançamos para lá da torre, em direcção a Este, até alcançarmos o cimo de uma pequena montanha de onde podíamos vislumbrar as planícies em volta. Tirei os visores por uns instantes, perscrutando a paisagem em busca de focos de luz. Nada. Voltei a colocá-los e, tanto eu como Amilda, usámos a visão nocturna e o zoom para procurar outras formas de vida.

    Vozes alteradas subiam com o vento até nós. Não estávamos muito longe da torre e as planícies eram propícias a espalhar conversas. Desviei a minha atenção para o encontro lá em baixo. A minha mãe, que distingui por ser a mais baixa e magra de todas, escondia-se atrás de um dos alicerces de madeira da torre. Uma outra mulher e um homem, que não consegui reconhecer por estarem de costas viradas para nós, falavam com um casal de jovens com roupa a menos para um Inverno tão rigoroso. Consegui perceber trechos da conversa mas nada que fizesse sentido.

    Parecem-te de confiança? - A voz da Amilda fez-me desviar os olhos da cena lá em baixo.

    São jovens. Parecem acabados de transformar e estão assustados.

    Levantando o visor para me ver com cores naturais, Amilda desviou a gola da boca que se estendia num sorriso torto. – E conseguiste perceber isso tudo só de olhares para as caras esverdeadas deles?

    Encolhi os ombros com uma risada. – Já sabes …

    Abanando a cabeça ela voltou novamente a atenção para o espaço circundante. – Um dia hás-de me ensinar esse truque.

    Não é um truque. É intuição-- – Ela cortou-me as palavras.

    Feminina! Já me disseste! Mas se assim é porque é que eu não a tenho, nem mais ninguém no refúgio?

    Voltei a encolher os ombros. – Talvez porque eu sou mais mulher que vocês?

    Ela riu-se. E eu, não querendo perder a concentração, afastei-me um pouco, em direcção a Este, calcando o topo estreito da montanha, quase em forma de lâmina de tão fino que era. Não havia movimento algum mas foi exactamente isso que me deixou alerta. Àquela hora, naquele local, era comum ouvirem-se lobos, tigres, corujas e uma miríade de animais que, ao longo das décadas, haviam retomado o território que os humanos em tempos lhes tinham roubado.

    Voltei-me novamente para a transacção lá em baixo. Os ânimos pareciam ter-se acalmado. A minha mãe mantinha-se escondida atrás de um dos pilares da torre mas o casal de jovens estava menos acobardado e uma outra moto de neve aproximava-se.

    Dei mais uns passos cuidadosos, afastando-me algumas dezenas de metros da Amilda que partiu na direcção oposta. Alguma coisa me estava a levantar os cabelos da nuca, e não era o frio, nem o casal de recém-chegados lá em baixo. Na ponta de um pequeno precipício, suspirei e fechei os olhos, tentando concentrar-me, abstrair-me das vozes e dos uivos do vento. Foi só quando tudo isso desapareceu da minha mente que o senti. A força que me arrepiava os cabelos. Uma energia tão fraca e distante que me passaria despercebida, caso não estivesse à procura dela.

    Todos os humanos, quais presas alertadas pela presença do predador, conseguiam pressentir vampiros até cerca de quatrocentos ou quinhentos metros. Mas era aí que eu me destacava, pois desde cedo que desenvolvera um radar interno (vamos chamar-lhe assim) mais potente. Conseguia senti-los à distância de um quilómetro ou mais, se me concentrasse o suficiente. Naquele caso não necessitara de tanto. O vampiro que pressentia estava longe demais para os outros feiticeiros, o que era claramente deliberado, mas não o suficiente para mim.

    Merda! – Praguejei.

    O que foi?

    Corri para a moto e Amilda encontrou-me lá. Com um simples olhar para o meu rosto, ela saltou para a moto e ligou-a, perguntando: Para onde?

    Apontei um dedo para sudeste e ela arrancou a toda a velocidade, ligando os faróis no máximo. A neve voou à nossa volta, embatendo com força contra nós.

    Amilda gritou acima do barulho da moto na neve. - Já nos viram! – Eram os outros feiticeiros que vinham em nosso auxílio. Com as motos a andar àquela velocidade, a menos que intruso tivesse um meio de transporte, não conseguiria escapar-se.

    De mãos fortemente fechadas em volta da Amilda, senti quando o corpo dela enrijeceu. - Já o sinto!

    Segue-o e eu trato dele.

    A neve a embater no visor dos óculos tirava-me grande parte da visibilidade mas eu não precisava dos olhos para o que tinha de fazer. Tranquei os pés nas ranhuras dos lados da moto e soltei-me da Amilda, quase sendo atirada para trás pelo vento.

    Recuperado o equilíbrio, tirei as luvas com os dentes e guardei-as nos bolsos do casaco. Ao longe uma figura solitária corria pelos campos de neve, tropeçando vez atrás de vez e voltando-se a cada passo para nos ver aproximar. Estávamos a menos de uma cinquenta metros dele.

    Pára aqui!

    Amilda obedeceu de imediato. Parou o veículo e virou-o ligeiramente para a esquerda, deixando-me a mira livre. Respirei fundo e, ignorando as leves picadas nas costas, estendi o braço esquerdo de punho fechado na direcção do alvo, estiquei o outro braço e puxei-o depois para junto do corpo enquanto dizia: "Invocare ad lacea ab spiritus¹."

    À medida que a minha mão direita se retraía contra o peito, com dois dedos esticado, um feixe de luz vermelho ficava no seu caminho, formando uma seta luminescente que pulsava nos meus dedos, enquanto do punho do braço ainda estendido abria-se um outro feixe da mesma luz vermelha, que seguia para cima e para baixo, em forma de arco.

    Ajustei a mira e expirei à medida que largava a cauda da seta, deixando-a cortar o vazio do ar e ir de encontro ao intruso. O arco de magia desapareceu assim que a seta foi atirada mas a flecha não parou até se alojar nas costas do homem, trespassando-lhe o coração. Do vampiro não saiu nem um pequeno grito, antes dele cair na neve que se tornou no seu túmulo.

    Corremos até junto do cadáver e Amilda voltou-o com os pés e baixou-se para lhe estudar o rosto. Ele era velho e tinha a cara coberta de cicatrizes antigas.

    Achas que estava com os outros dois? – Perguntou Amilda.

    Baixei-me ao lado dela. Tal como acontecera com o arco, a seta desaparecera assim que cumprira a sua missão, mas um buraco ficara no seu lugar e sangue manchava as roupas velhas do homem cuja boca se abria num grito silencioso, mostrando as presas pontiagudas que lhe haviam providenciado alimento na segunda vida.

    Não. Acho que este os andava a seguir, a espiá-los. Bem viste como se manteve longe o suficiente para que ninguém o sentisse. - Respondi por fim.

    Mas estava a segui-los para quê?

    Para descobrir o refúgio, talvez?

    Ela inspirou fundo. - Pelo menos sabemos que agora não vai entregar a informação a ninguém.

    Olhei para a distância, semicerrando os olhos, esperando ver algo mais, algo que não estava lá. - Estou com um mau pressentimento. - Disse.

    Amilda estremeceu, levantando-se e fechando os braços em volta do seu corpo. – Não digas isso!

    Os outros feiticeiros aproximaram-se e assim que viram o vampiro morto, também eles começaram a perscrutar atentamente a imensidão que se estendia à nossa volta. Levantei-me e ajudei-os a cobrir o corpo do vampiro com neve, não fosse alguém passar por ali e ver um corpo fresco. Dentro de umas horas os animais descobririam a carcaça e dariam conta dele num instante.

    Regressámos rapidamente para junto da torre e encontrámos a minha mãe, a Gigliona e o Borodorin reunidos em volta dos corpos do jovem casal de vampiros. Desviei os olhos quando vi como os dois se haviam agarrado um ao outro antes de morrer. Eram crianças, não deviam ter mais de dezasseis anos e tinham morrido assustados, se não mesmo de susto.

    Não precisavas matá-los! – Gigliona gritava com Borodorin, que escolheu ignorá-la, cruzando os braços.

    Estás a ser sentimentalista outra vez. – O homem, muito mais novo que a sua colega, esfregou os dedos nos cotovelos, como se aquilo nada mais fosse que rotina diária.

    Sentimentalista? – Os cabelos ruivos da Gigliona encaracolaram-se ainda mais com os nervos, como tentáculos com vida própria. – Eram crianças, seu insensível!

    Uma raiva animalesca brilhou nos olhos do feiticeiro e a minha mãe teve de se meter entre os dois. - Acalmem-se!

    Quando Ishvar falava, os outros calavam e ouviam. Ter uma mãe assim era espectacular … de vez em quando.

    O que está feito, feito está. – Só quando sentiu que os outros dois se haviam acalmado é que a minha mãe baixou os braços e veio ter comigo e com Amilda. – Filhas. – Abraçou-nos, juntando-nos pelos ombros e esmagando-nos uma contra a outra. Mas tão depressa quanto o afecto aparecera, desapareceu e, no seu lugar, ficou a seriedade de uma profissional. – Contem-me o que aconteceu.

    Não precisei falar muito, pois rapidamente a Amilda a pôs a par de tudo. Mas, durante todo o tempo, não consegui afastar a sensação de que havia algo que me estava a iludir. A experiência tinha-me ensinado que o instinto é a mais forte arma que temos na luta contra os vampiros e os meus instintos diziam-me que algo me estava a escapar.

    ¹ Feitiço em latim

    ***

    Capítulo 3

    Orhei, Moldávia

    13 de Janeiro de 2175, 00h30

    Seria por divertimento que eles teimavam em escolher igrejas como postos de descanso temporário?

    Igrejas, templos, fé. Tudo conceitos que em tempos haviam sido uma grande parte da vida popular. Tudo mentira. Daí que não me admirasse que fosse pelo puro gozo da ideia, que el jefe¹ tivesse uma predilecção pelos santuários da fé, em todas as suas formas.

    Uma cruz de pedra, plantada no limite do desfiladeiro, marcava simbolicamente o local. A queda montanhosa abria caminho para o rio gelado, de um lado, e do outro para um vale onde pouco restava das casas que outrora estiveram cheias de vida. Na verdade a cruz e torre sineira eram formigas comparadas com a imensidão da paisagem, outrora verdejante, mas agora apenas coberta pela neve. O céu estava tão limpo que conseguia ver uma infinidade de estrelas, mas o frio e a escuridão não me deixavam apreciar a paisagem.

    Passei pelas ruínas da torre cujos sinos jamais tocariam algo novo sem se desfazerem em pó, e desci uma pequena inclinação até dar de caras com uma pequena entrada pedrada em arco. Empurrei a porta de madeira velha e comida pelos bichos, tão baixa que tive de me curvar para passar por ela.

    O ar abafado forçou-me a fechar os olhos. O vampiro que guardava a entrada cumprimentou-me com um acenar quase imperceptível. Não retribuí o gesto. Segui caminho pelo túnel que me levava para debaixo da montanha, num declive pouco acentuado. O ar saturado tresandava a suor, sangue e bolor, o último dos quais não era da responsabilidade dos seus mais recentes inquilinos. O terreno em rochedo e argila ficou nivelado ao fundo do túnel, apenas para se separar em dois outros, mais iluminados e de onde se ouviam gritos de prazer e dor.

    Segui pelo túnel da direita, cruzando várias portas totalmente escancaradas. Os sons eram convidativos mas não havia orgia suficientemente aliciante para me reavivar os músculos exaustos de dias de viagem intensiva.

    As portas duplas que finalmente se apresentaram no fim do túnel não prometiam o alívio e descanso que eu tanto queria. Rodei o pescoço e os ombros até ouvir um estalido. Sem perder tempo em pensamentos dispersos, entrei no pequeno salão. El Jefe nunca foi de luxos mas já a Aaralyn era outra história e ela bem gostava de dar o seu toque a todos os locais por onde passavam, daí que o pequeno e simples salão, de paredes toscas em argila alaranjada, estivesse decorado exoticamente em cores berrantes e matérias de toque delicado, espalhadas pelos cantos, estendidas nas colunas e atiradas aos pés dos visitantes.

    Encontrei-os perdidos num beijo que me deu a volta ao estômago. Afinal eu bem sei onde aquelas línguas andaram. El jefe estava com a cabeça atirada para trás, enquanto Aaralyn lhe puxava os cabelos e mordia os lábios com os caninos afiados.

    Os dois fizeram o favor de ignorar a minha chegada e continuaram o seu ritual amoroso mais uns minutos. E a única razão porque não desviei o olhar foi porque El jefe não desviou o seu de mim. Coño de mierda!²

    Aaralyn puxava-lhe os cabelos castanhos com tal força que lhe curvava a cabeça até quase bater nas costas. E não seria essa uma visão linda? Ele com o pescoço partido por culpa da brutalidade da amante. Oh, se seria!

    Infelizmente a cabra não me fez a vontade. Mordeu os lábios do amante até ficarem em carne viva e depois largou-o, atirando-o contra as costas do cadeirão em que estavam ambos instalados. Com a boca vermelha de sangue, os olhos a brilharem de um tom mais vivo da mesma cor e os curtos cabelos avermelhados colados ao pescoço, Aaralyn levantou-se e caminhou até mim com o corpo sinuoso a mover-se de um lado para o outro. Com as suas curvas bem generosas e seios pequenos, muitos eram os que a consideravam uma beleza impossível de resistir, graças ao cabelo ruivo e liso, aos lábios permanentemente separados pelo desejo, às presas cobertas de sangue fresco e as sardas abundantes salpicadas pela cor da paixão.

    "Gabriel,

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