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Camaradas e santos: notas sobre catolicismo popular e suas representações simbólicas
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Camaradas e santos: notas sobre catolicismo popular e suas representações simbólicas
E-book178 páginas2 horas

Camaradas e santos: notas sobre catolicismo popular e suas representações simbólicas

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Sobre este e-book

Camaradas e santos: notas sobre catolicismo popular e suas representações simbólicas é um livro que trata de santos e ex-camaradas, ou ex-colonos, e que aborda uma representação de mundo magicamente fundamentada. É um livro sobre como o mundo é pensado por moradores analfabetos ou semialfabetizados, que vindos da roça estabeleceram-se na periferia de uma pequena cidade ao Sul de Minas Gerais, e sobre como esses moradores pensam as complexidades de seus problemas de adaptação à vida urbana e seus dilemas cotidianos.

Dentre as questões que se apresentam cotidianamente, umas são mais cruéis que outras. Como donas de casa e pais de família explicam para seus filhos a tristeza do êxodo e a rudeza da vida? Como explicam o alcoolismo generalizado, a falta de trabalho e de perspectivas sobre o futuro? Como entender um mundo e um modo de vida que se desfez?

Neste estudo, todas as questões enfrentadas pelos ex-camaradas passam pelo prisma de um complexo sistema simbólico oralmente transmitido e repleto de mitos religiosos de criação do mundo, no qual santos e o próprio filho de Deus andaram pelas serras da Mantiqueira, em meio a boiadeiros, tropeiros e plantadores de milho, em uma tradição normalmente ligada ao chamado catolicismo popular ou rústico, mas que transcende as barreiras de religiões de matriz africana e do neopentecostalísmo com os quais disputa terreno. A obra revela como tal emaranhado simbólico é articulado para responder ao grande desafio de atender às necessidades ordinárias da vida cotidiana.

Este é um livro que trata de pessoas e do significado que elas encontram para suas vidas, muitas vezes, destroçadas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2017
ISBN9788547305444
Camaradas e santos: notas sobre catolicismo popular e suas representações simbólicas

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    Pré-visualização do livro

    Camaradas e santos - José Wellington de Souza

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Para D. Vicentina (in memoriam) e

    D. Glorinha (in memoriam).

    AGRADECIMENTOS

    Este livro é uma versão revisada e ampliada de minha dissertação de Mestrado defendida no PPCIR-UFJF, e sua conclusão só foi possível graças a certo número de pessoas.

    Agradeço aos ex-colonos de Liberdade - MG, especialmente aos moradores do bairro da Ponte, que me abriram suas portas e suas vidas e me ensinaram tantas coisas; aos meus tios, Raimundo e Maria, pelo apoio; à generosa contribuição do professor Francisco Luiz Pereira da Silva Neto e do professor Robert Daibert Junior; aos meus sogros Soledad e Edson, que acreditaram e incentivaram a publicação deste livro; e à Nínive, minha esposa, revisora e incansável companheira.

    Também agradeço a Capes pelo suporte durante o Mestrado e aos professores do PPCIR-UFJF, em especial ao professor Marcelo Camurça e ao professor Emerson Sena.

    E aos que não foram citados, mas que deixaram marcas.

    APRESENTAÇÃO

    O objetivo deste livro é analisar a relação entre desagregação social e pensamento mágico entre moradores do bairro da Ponte em Liberdade-MG. Ex-agregados rurais, em sua maioria, os moradores locais usam explicações pautadas em princípios mágicos para definir acontecimentos da vida cotidiana.

    A análise de tal relação foi possível por meio da observação do conjunto de crenças compartilhadas pelos moradores e oriundas de diversos grupos religiosos, que disputam entre si o monopólio pela definição do real e modos de ação simbólica sobre bens materiais escassos e sobre a difícil adaptação à vida urbana e ao trabalho assalariado.

    Ao longo do trabalho outras questões relacionadas à condição de desagregação dos moradores e a explicação mágica sobre o mundo também são tematizadas, na tentativa de traçar o complexo emaranhado simbólico que ordena a vida no bairro. A partir desse ponto tem início a análise das disputas de grupos religiosos pelo monopólio da definição de realidade e do monopólio pelo poder de ação mágica sobre essa realidade.

    PREFÁCIO

    O leitor tem nas mãos um excelente estudo sobre os ex-agregados do bairro da Ponte, na periferia de Liberdade, Sul de Minas Gerais. Não se trata de um estudo clássico, baseado em uma perspectiva antropológica tradicional. Ao contrário do que se pode imaginar, em uma primeira impressão mais desavisada, José Wellington de Souza não se limita a fazer uma etnografia de uma população rural. Seu texto apresenta, sim, os resultados de uma pesquisa qualitativa, baseada em uma abordagem interdisciplinar, que transita nas fronteiras entre as ciências sociais e as ciências da religião.

    O texto, fruto de sua dissertação de Mestrado em Ciência da Religião (UFJF), é iluminado por poucos conceitos e definições teóricas. O que pode parecer, em princípio, uma falha é, na verdade, um dos grandes méritos do trabalho. Para apreender a complexidade de seu objeto, o autor se liberta das amarras conceituais que engessam muitos trabalhos acadêmicos. Ao invés de ser prender a essas formatações, o texto ganha densidade porque prefere ouvir e levar a sério as histórias dos ex-agregados, seus próprios conceitos, suas compreensões de tempo e suas concepções magicamente fundamentadas.

    José Wellington de Souza tem como objetivo maior investigar os modos pelos quais ex-colonos rurais interagem com uma nova e difícil realidade, qual seja, o mundo do trabalho urbano e seus desafios. O autor se interessa, sobretudo, pelo arcabouço magicamente fundamentado que orienta a compreensão dos ex-agregados a respeito de si mesmos e do mundo em transição em que vivem. Trata-se, por um lado, de uma narrativa marcada por histórias de perdas e decepções. Por outro, há também a presença nítida de esperanças e ressignificações. Em suma, encontramos nessas páginas um mundo misturado, em que o urbano e o rural se encontram entrelaçados em diálogos, conflitos, sobreposições e relações complexas. Tão complexas que talvez seja mesmo possível afirmar que ambos talvez não existam nesse território explorado pelo autor. São ficções levemente úteis.

    Como bem lembra o autor, as explicações fundamentadas em conceitos mágicos são capazes de organizar, desorganizar e reorganizar suas vidas, de dar sentido onde até então não havia. Periferia, Ponte e Liberdade são palavras carregadas de definições profundas neste estudo. Tais termos ajudam a traduzir para o mundo do leitor a complexa situação de um grupo que tenta, ao seu modo, construir significados, transitando entre o velho e o novo, em mão dupla, em meio a um deserto de sentidos.

    Também merece destaque a riqueza das histórias recolhidas e a qualidade do texto do próprio autor, que parece influenciado pelas narrativas que ouviu. O leitor percorrerá as páginas deste livro embalado por um estilo de escrita bastante cativante. Longe do rebuscamento acadêmico, José Wellington prefere a maciez e a elegância própria da linguagem envolvente de seus próprios entrevistados que, assim como o próprio autor, surpreendem-nos ao contar mais do que esperamos. Ambos, autor e nativos descortinam ao leitor um novo mundo, só aparentemente muito próximo de nós.

    Com maestria e estilo próprio, o autor reúne neste livro histórias de crianças que atiram pedras em telhados e incomodam seus vizinhos com suas brincadeiras barulhentas, bêbados que desejam platonicamente outras mulheres nas ruas, porcos em chiqueiros fedorentos, benzedores famosos, adolescentes grávidas, trabalhadores desempregados, violências cotidianas, saudades e alegrias. Esse mundo é magicamente concebido por meio de rezas, feitiços, promessas, choro de crianças mortas ainda pagãs, pastores neopentecostais, padres e suas missas, promessas, velas acesas, rezas, santos que curam seus devotos de picadas de cobra entre outros. O leitor encontrará tudo isso e muito mais percorrendo, na companhia do autor e dos nativos, as pontes, caminhos e encruzilhadas na periferia da Liberdade. Ao final da leitura, é possível afirmar, sem dúvida alguma, que nossas certezas cartesianas são afetadas pelo encantamento revelado pela pesquisa. As histórias aqui contadas nos remetem às nossas próprias histórias e nos levam mais uma vez a acreditar, com mais fé, que, de fato, o sertão está mesmo dentro da gente, de todos nós, de todos os nós.

    Prof. Dr. Robert Daibert Jr.

    Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e em Ciência da

    Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO

    capítulo 1

    DE CAMARADA A FUNCIONÁRIO: O PROCESSO DE DESAGREGAÇÃO

    1.1 O CAMARADA DESAGREGADO

    1.2 A ECONOMIA DE PAIOL

    1.3 O CAMARADA VIVENDO NO BAIRRO DA PONTE

    capítulo 2

    O AGREGADO CONTA O TEMPO; REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS TRADICIONAIS NA PERIFERIA DE UM MUNDO MODERNO

    2.1 O LUGAR E O TEMPO E DAS COISAS

    2.2 O ANO

    2.3 OS DIAS

    2.4 A SEMANA

    2.4 TEMPO E HISTÓRIA

    CAPÍTULO 3

    PRINCÍPIOS DE MAGIA E RAÇA

    3.1 MAGIA

    3.2 POMBAS-GIRA EM VIDROS DE PERFUME

    3.3 O QUE É DE RAÇA CAÇA

    3.4 ESTIGMA, RAÇA E MAGIA.

    CAPÍTULO 4

    CAMPO SIMBÓLICO

    4.1 A OSSATURA

    4.2 A CARNE E O SANGUE: BENZEDORES, PADRES E PASTORES.

    4.3 PEDIDOS DE ORAÇÃO, VELAS PARA AS SANTAS ALMAS DO PURGATÓRIO, PINGA PARA PAI JOSÉ E CAFÉ PARA SÃO BENEDITO

    CONCLUSÃO

    BIBLIOGRAFIA

    INTRODUÇÃO

    Aos seis anos Conceição saiu de casa, ainda de madrugada, junto dos pais e irmão, rumo à cidade. Deixaram para traz a sitioca, onde viviam como colonos, e foram passar os dias da Festa do Bom Jesus em Liberdade¹. Seguiram pela estrada de terra vermelha e depois atalharam pelo mato, atravessando morros e pastos.

    Para os dias na cidade levavam panelas, esteiras de taboas, um colchão de palha de milho, cobertores, roupas e mantimentos. Iam de roupa nova, costuradas pela mãe, especialmente para o dia da Festa do Senhor Bom Jesus. Os lençóis, que serviam de trouxa, haviam sido tingidos na véspera para a família não passar vergonha na cidade.

    Desta vez, a família não iria dormir em uma barraca improvisada ou em um paiol emprestado. O pai havia alugado uma casa na Rua dos Boiadeiros, na entrada da cidade. Era uma casa simples, como todas as casas dali, na época: apenas dois cômodos, quarto e cozinha, sem banheiro, mas que serviriam muito bem para acomodá-los e defendê-los das intempéries do tempo; ao contrário dos paióis, nos quais haviam dormido nos anos anteriores, onde eram castigados pelo vento e pela chuva. Conceição estava entusiasmada com a festa, evento mais importante da cidade, com inúmeras barracas de roupas, comidas e doces; muita gente vinda de outras cidades; bailes e missas, e com a procissão do santo, com crianças vestidas de anjo, pagando promessas feitas pelos pais; penitentes ostentando nas cabeças coroas feitas de galho de pinheiro para lembrar o calvário de Cristo; e o Santo, que tirado de seu altar, era levado por fiéis em uma procissão que percorria a cidade e terminava na missa com salvas de fogos de artifício no pátio da igreja matriz.

    O preço pelo conforto e comodidade de passar os dias da festa na cidade foi pago pelos filhos mais velhos do casal, que retornavam todas as manhãs ao sítio da família, para tratarem das galinhas, vacas e porcos. Preço pago de bom grado!

    Passados os três dias da festa a família voltou para o sítio onde vivia. A mãe de Conceição foi na frente, com os filhos menores. O pai e os irmãos mais velhos ficaram na cidade, trabalhando temporariamente na extração de cascalho do rio que margeia o município.

    Quando nas proximidades do sítio, carregando as tralhas, com pressa para tratar dos animais, a mãe de Conceição avistou uma espessa coluna de fumaça que se erguia no horizonte. Desesperada, ela deixou as trouxas e correu morro acima para se inteirar do que se passava.

    Voltou aos prantos. Tudo estava queimado: a casa de pau a pique com telhado meio de capim, meio de telhado de barro; o chiqueiro; o galinheiro e o paiol, com o suprimento de alimentos que a família possuía e que teria de lhes servir de sustento até a próxima colheita, tudo estava reduzido às cinzas.

    Sem condições de se manter na roça, a família de Conceição transferiu-se para a cidade, indo morar na mesma casa onde havia passado os dias da festa. O pai empregou-se como funcionário da Prefeitura, encarregado de manter livres de mato as ruas da cidade, enquanto ela, sua mãe e suas irmãs trabalhavam como lavadeiras, nas águas do Rio Grande, ou como empregadas domésticas; enquanto seus irmãos trabalhavam por dia²; plantando milho, roçando pastos e cuidando de gado, que naquela época começava a se tornar o principal negócio da região.

    Todos os dias, no final da tarde, Conceição via o pai chegar a

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