Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Candomblé sem Sangue?:  Pensamento Ecológico Contemporâneo e Transformações Rituais nas Religiões Afro-Brasileiras
Candomblé sem Sangue?:  Pensamento Ecológico Contemporâneo e Transformações Rituais nas Religiões Afro-Brasileiras
Candomblé sem Sangue?:  Pensamento Ecológico Contemporâneo e Transformações Rituais nas Religiões Afro-Brasileiras
E-book358 páginas7 horas

Candomblé sem Sangue?: Pensamento Ecológico Contemporâneo e Transformações Rituais nas Religiões Afro-Brasileiras

Nota: 3.5 de 5 estrelas

3.5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

O livro Candomblé sem sangue? Pensamento ecológico contemporâneo e transformações rituais nas religiões afro-brasileiras é uma reflexão resultante de anos de pesquisas e vivências religiosas. Nele, o autor convida o leitor a compreender melhor alguns dos fatores exógenos e endógenos que têm influenciado o candomblé, a ponto de algumas lideranças religiosas começarem a revisar suas práticas rituais. Ao abordar o uso de folhas e de sangue nos rituais iniciáticos, o autor trata de uma guerra estabelecida entre Ossaim (divindade dos vegetais) e Exú (divindade do movimento, comunicação e dinâmica), guerra essa que envolve disputas por precedência nos ritos e centralidade nas explicações teológicas da religião.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de ago. de 2020
ISBN9786555239706
Candomblé sem Sangue?:  Pensamento Ecológico Contemporâneo e Transformações Rituais nas Religiões Afro-Brasileiras

Relacionado a Candomblé sem Sangue?

Ebooks relacionados

Arte para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Candomblé sem Sangue?

Nota: 3.6666666666666665 de 5 estrelas
3.5/5

3 avaliações1 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

  • Nota: 5 de 5 estrelas
    5/5
    Excelente explanação científica investigadora cuja proposta não é condenar ou aprovar o tema exposto e sim analisar as origens, motivos, fatos, etc., que concernem a prática do sacrifício animal para fins religiosos ou o uso de sangue animal em iniciações religiosas relacionadas ao Candomblé permitindo assim, que o leitor possa chegar a sua própria conclusão sobre o tema.

Pré-visualização do livro

Candomblé sem Sangue? - Patrício Carneiro Araújo

Editora Appris Ltda.

1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores

Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

APRESENTAÇÃO

De forma respeitosa, bem fundamentada e articulada o livro Candomblé sem sangue: pensamento ecológico contemporâneo e transformações rituais nas religiões afro-brasileiras do Sacerdote e Professor, Patrício Carneiro Araújo apresenta-se como uma daquelas leituras que buscam colocar no centro da discussão questões de grande relevância, e que muitas vezes por serem polêmicas são negligenciadas, inibindo assim a devida atenção e fôlego que tal reflexão e debate demandam. Tendo ciência da complexidade e da suscetibilidade que o tema traz, o autor vai construindo e fundamentando sua argumentação capítulo a capítulo, demonstrando dessa forma como seus anos acumulados de iniciado, bem como de pesquisador vão sendo mobilizados. Ao apresentar e analisar outras experiências e possibilidades que os rituais de sacrifícios podem ter no Candomblé por meio da utilização de folhas, ao invés de sangue animal, Exú e Ossaim, Ossaim e Exú ocupam o cerne do livro, do início ao fim. No decorrer da obra é notável a preocupação do autor em mostrar que a tradição não é estática, assim como as políticas e as relações de poder externas ao universo das religiões afro-brasileiras. Nesse movimento intra e extra terreiro, o autor vai demonstrando como a dinâmica do poder em diversas esferas vão reconfigurando a tradição.

Thiago Moreira Melo e Silva

(Mestre em Educação – UNIFESP)

Agradecimentos

No fim da construção deste livro, agradeço à minha família biológica, pelo apoio constante e contínuo. Agradeço também à minha família de santo, EGBE IRE-O (Diadema – SP), por todo o amor, cuidado e carinho que constituem a nossa convivência aos pés dos orixás e diante dos nossos ancestrais.

Agradeço a todos os terreiros pelos quais tenho transitado desde o ano de 2000. Ao povo de terreiro de João Pessoa (PB), onde comecei minha trajetória no candomblé e minhas pesquisas acerca dessa religião. Agradeço ao povo de terreiro de São Paulo e sua região metropolitana, onde me iniciei, pesquisei e fui elevado à condição de babalorixá. Agradeço ao povo de terreiro do Ceará, local em que vivo hoje e dou continuidade às minhas pesquisas.

Agradeço à venerável Dobana Boressa Mãe Solange Buonocore (Roça dos Orixás Afro-Brasileiros, em Guarulhos – SP), pela confiança e generosidade ao me receber em sua casa e me conceder a tão preciosa entrevista que ajudou este livro a ficar mais bem fundamentado. Também devo agradecer a essa eminente sacerdotisa, por me apresentar o Culto Yezan e por revelar outros caminhos da diáspora afro-cubano-brasileira.

Agradeço aos meus amigos e às minhas amigas que, durante todo o percurso de construção deste livro, tiveram a paciência de compartilharem comigo seus anseios, suas dúvidas e intuições. Agradeço especialmente: ao Thiago Moreira Melo e Silva, pela leitura dos originais e escrita do texto da orelha do livro; à Giovanna Capponi, pela leitura cuidadosa e escrita do Prefácio. Agradeço, com carinho especial, ao meu babalaworixá, Daniel Gonzaga Oguntobi, pela leitura criteriosa dos originais e pelo apoio sempre muito generoso. Também agradeço ao historiador Jorge Garcia Basso, pelas ricas conversas a respeito de Pai Agenor Miranda e pela generosidade na partilha de suas experiências de pesquisa junto à casa e ao acervo pessoal desse importante babalaô. Agradeço a José Pedro da Silva Neto (Inatobí), pela generosidade nas constantes conversas sobre os temas abordados neste livro e pelo apoio e disponibilidade em colaborar com a sua produção sempre que foi por mim solicitado. Agradeço também à Editora Appris, pela acolhida e recepção ao projeto deste livro.

Adupé!

Prefácio

ou

Sobre a importância das palavras:

sacrifício, sangue(s) e natureza nos

estudos contemporâneos

Giovanna Capponi

(Roehampton University – London)

No panorama de intolerância religiosa hodierna e de conflitos sociais, pesquisadores, ativistas e religiosos têm a necessidade de escolher cuidadosamente as palavras para falar de temas delicados (SILVA, 2015, p. 20-21), como é o caso do tema tratado neste livro. É minha intenção diferenciar os vários termos e também defender o uso de uma palavra tão controversa quanto à prática que ela descreve: sacrifício.

O termo vem do Latim, sacer facere – fazer sagrado, consagrar – e é considerado uma palavra acadêmica e sofisticada que quase não é mencionada nas conversas coloquiais de terreiro. Folheando os materiais etnográficos, como o trabalho de Cândido (2015, p. 60) e Motta (2016, p. 81), percebe-se que uma das palavras mais comuns nos contextos êmicos é matança. Porém verifica-se também como esse termo está sendo usado cada vez menos e substituído pela palavra orô, de origem yorubá, que remete às práticas da oferenda às divindades (BENVENISTE, 2016, p. 592). É interessante entender como, enquanto os afro-religiosos começaram a questionar a importância das palavras no contexto político, alguns termos começaram a constituir o diferencial para a obtenção de direitos e reconhecimentos (CAPPONI; ARAÚJO, 2016).

Nesse sentido, expressões como imolação e abate religioso passam a ser usadas especialmente no contexto jurídico e na defesa da liberdade de culto, sendo assim testados com sucesso em vários casos frente às tentativas de projetos de lei que visavam à proibição do sacrifício animal. O Dr. Hédio Silva Júnior, ilustre advogado especializado em casos de intolerância religiosa, argumenta em defesa do uso da denominação abate religioso com a possibilidade de se remeter com a mesma terminologia aos abates praticados em outra tradições, como a islâmica e a judaica (SILVA Jr., 2015, p. 321-322). De fato, o que os humanos podem ou não podem fazer com os animais é matéria jurídica abrangente que inclui a criação, a venda, a caça de animais silvestres, o tratamento dos animais de estimação, do circo, dos jardins zoológicos etc. (DEMELLO, 2012, p. 14-15).

Interessante é o caso do coelho, que passa por legislações diferentes se criado como bicho de estimação, como cobaia ou como animal de granja (DEMELLO, 2012, p. 45-46), e que leva consigo as negociações e os conflitos internos a uma sociedade plural, como seria neste caso entre os defensores dos direitos dos animais, cientistas, agricultores etc., no debate sobre o que um coelho é ou não é.

As controvérsias jurídicas (GLISZCZY´NSKA-GRABIAS; SARDURSKI, 2016) demonstram a importância das palavras nos contextos de resistência, mas também indicam uma tendência: a palavra sacrifício, tema fundante da disciplina antropológica, está sendo usada de forma depreciativa nos ataques – jurídicos e políticos – contra as formas religiosas das minorias. No uso popular, o sacrifício remete à ideia de uma prática primitiva, e a palavra é muitas vezes usada como metáfora de sofrimento e abnegação.

Cabe então aos antropólogos retomar esse termo em seu sentido mais amplo para recolocar o sacrifício no centro de um debate que leve em consideração a transculturalidade histórica e geográfica dessa prática.

Célebres são os estudos sobre o sacrifício hinduísta e judaico (MAUSS; HUBERT, 2005), entre os Nuer do Sudão (EVANS-PRITCHARD, 1956), entre as populações polinesianas (FIRTH, 1964) e entre os Chuckchi da Sibéria (WILLERSLEV, 2009) somente para citar alguns.

Nas várias interpretações, o sacrifício é dispositivo de troca, de comunhão de alimentos, de propiciação, de substituição da vida humana, de renovação de energias, dentre outros. Em quase todos os casos etnográficos, o animal é interpelado de forma ritual, a cuja interpelação participa ativamente.

Em Antropologia, fala-se de sacrifício também em alguns contextos de caça, considerada o resultado de uma negociação com o espírito do animal, que aceita ser atingido pela flecha do caçador (WILLERSLEV, 2004; NADASDY, 2007). Aqui vemos como a literatura antropológica coloca o acento na reciprocidade entre animais e humanos, já que os atores não são inseridos simplesmente numa lógica de subalternidade.

Até agora, ficou claro que no sacrifício o sangue derramado é do tipo animal. Porém cabe lembrar que, na maioria dos contextos relatados, o líquido utilizado na oblação também pode ser do tipo vegetal ou mineral.

No candomblé, a palavra ejé (sangue) é associada tanto ao sangue animal quanto ao líquido extraído das folhas ou mesmo aos pós minerais usados nos rituais. A prática de ofertar líquidos de origem não animal é analisada por McClymond (2008) que, comparando fontes do sacrifício védico e judaico, critica a ideia de sacrifício como violência e situa-o num continuum de manipulação de substâncias. De fato, o vinho da missa não é também uma oblação ritual?

Em conclusão, sacrifício é um termo importante ao qual, como antropólogos, não podemos renunciar. É uma prática que, de forma transcultural, configura-se como um processo dialógico entre animais, plantas, humanos e seres invisíveis que, se analisado com cuidado, torna-se espelho das relações complexas entre as espécies (CAPPONI, 2018).

Mesmo incorporando os discursos científicos sobre sustentabilidade e respeito à natureza, o sacrifício não se encaixa na lógica de dominação dos recursos naturais própria do pensamento ecológico contemporâneo, o qual tenta pôr remédio aos erros feitos nas últimas décadas nos processos de industrialização e na exploração de recursos esgotáveis.

Neste livro, Candomblé sem sangue? pensamento ecológico contemporâneo e transformações rituais nas religiões afro-brasileiras, Patrício Carneiro Araújo demonstra, com belíssimas intuições, a abrangência e a complexidade da palavra sacrifício e da prática de extração de sacralidade líquida do mundo natural e de como esse sagrado vai também dialogando com novas percepções e definições de natureza.

Sumário

Introdução

Capítulo 1

Guerras de precedência: Exu e Ossaim: dois princípios indispensáveis no candomblé

1.1 O papel das folhas na iniciação

1.2 Dois movimentos iniciáticos ligados simbolicamente à precedência: a ida ao mercado e a ida à floresta

1.2.1 A ida ao mercado: uma reverência necessária a Exu

1.2.2 A ida à floresta (mata): uma reverência necessária a Ossaim

1.3 Exu e Ossaim: confluências e disputas de precedência

Capítulo 2

Orô e Sassaim: sangues vermelhos e verdes

2.1 Orô: o sangue vermelho que a tudo dá vida

2.2 Sassaim: o sangue verde que verte das folhas

Capítulo 3

Candomblé sem sangue: o precedente temido e aguardado

3.1 O precedente criado pelo babalawô Pai Agenor Miranda Rocha

3.2 Um filme emblemático: Jardim das folhas sagradas (Dir. Pola Ribeiro, Brasil, 2011)

3.3 A arte imitando a vida: o Ilê Axé Opá Ewê como modelo do Terreiro Ecológico 

3.4 Quando o discurso vira prática: Mãe Solange Buonocore e o culto Yezan no Brasil

Capítulo 4

Ascensão e consolidação do pensamento ecológico contemporâneo: o Ethos Mundial e os agenciamentos  da lógica antissangue

4.1 ECO-92 e a ascensão de uma Ecoteologia no Brasil

4.2 Teólogo ecologista ou ecologista teólogo?

4.3 A Ecoteologia Católico-Franciscana de Leonardo Boff e suas repercussões como discurso antissangue

4.4 A uniformização de um pensamento ecoteológico católico-franciscano 

4.4.1 As origens religiosas do pensamento boffiano: a Oração de São Francisco como Oração universal

4.4.2 As origens não religiosas do pensamento boffiano: a Nova Ordem Ecológica

Capítulo 5

A Teologia do Sangue Sacrificial no candomblé: convergências e divergências

5.1 O sangue como alimento da terra

5.2 O sangue como veículo de comunicação com os ancestrais e como elemento identitário

Capítulo 6

Confluências religiosas e discurso antissangue

6.1 O discurso antissangue e suas raízes nos interstícios das tradições franciscanas

6.2 Reutilizando aquilo que critica: ritos sacrificiais no Catolicismo

Capítulo 7

Novas práticas afro-religiosas e o futuro do sacrifício de animais

7.1 Os ventos de Pentecostes e o futuro do sacrifício de animais nas religiões afro-brasileiras 

7.2 O abate religioso de animais nos tribunais e na mais alta Corte de justiça brasileira

7.3 O caso do Recurso Extraordinário 494601

Epílogo ou Entre Exu e Ossaim

Referências

Introdução

Um grupo de ativistas, neste caso veganos, composto por pessoas brancas, de classe média, vestidos de preto e com óculos escuros, segura placas com os seguintes dizeres: Oferte amor e não sangue, Na dor somos iguais, Sacrifício de vidas: qual a diferença?, Sacrificar crianças também já foi parte da cultura e tradição humana. Diante deles, deitados no chão sobre um grande tapete de tecido vermelho, um homem e uma mulher, também brancos, vestidos apenas com roupas íntimas, fingem estar mortos. Pés e mãos amarrados com cordas, estão completamente sujos com tinta vermelha. Em seus pescoços, é possível ver marcas como de cortes de degola dos quais se esvaem grandes quantidades de um líquido muito vermelho. Ao seu redor, veem-se velas brancas e vermelhas, pipocas e outros produtos geralmente utilizados nos rituais das religiões afro-brasileiras. Ao lado dessas pessoas lançadas ao chão, é possível ver cartazes com os seguintes dizeres em inglês, português e francês: "Stop aux sácrifices religieux d’animauxs! e Stop religious sacrifice of animals!".

No cenário descrito acima, nada está fora do lugar. Cada elemento que compõe a paisagem performática faz parte de um complexo universo discursivo. A cena ocorreu no centro de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, no dia 7 de abril de 2015. O grupo que protestava, composto de brasileiros – alguns radicados na França –, com certeza devia saber do valor simbólico do Mercado Público Municipal existente ali, no Largo Glênio Peres, onde, segundo as tradições religiosas afro-gaúchas, existe um Bará (Exu) assentado desde tempos imemoriais. Funcionando como centro de convergência das populações ligadas aos cultos afro-gaúchos, esse mercado serviria como símbolo ideal diante do qual o recado que o grupo pretendia passar chegaria a todos os terreiros, sacerdotes e sacerdotisas afro-religiosos do estado e do País.

Se o lugar era muito simbólico, a data também não era aleatória. No dia subsequente ao protesto (08/04/2015), a poucos quilômetros dali, seria votado, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (ALRS), um projeto de lei (PL) da deputada Regina Becker Fortunati, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), que propunha a supressão de um artigo da lei estadual 122.131/2004, que permitia o abate religioso, ou sacrifício, de animais em cultos de religiões de matriz africana. Segundo o PL apresentado por essa deputada, o abate religioso de animais deveria ser considerado crime. No momento do protesto, os deputados analisavam a proposta. Segundo os ativistas veganos que organizaram o ato, a ideia da performance era desnudar a realidade desses rituais, considerados por eles como crueldade, tortura e assassinato. O protesto foi silencioso. O grupo sabia que, diante da imagem criada pelo cenário, não se fazia necessário falar. Durante o protesto, dezenas de pessoas que passavam pela praça, indo e vindo do mercado, pararam para observar a manifestação.

Saindo do Brasil e indo ao Peru, no bairro de Miraflores, importante centro gastronômico de Lima, um grupo de pessoas protesta exibindo cartazes com os dizeres "Dios creó los gatos e Asesinos!". Entre os cartazes viam-se sugestivas imagens de São Francisco de Assis, considerado pelos ativistas como protetor dos animais. Dessa vez, o alvo do protesto era o consumo de carne de gato na festa de Santa Ifigênia, que há séculos acontece no distrito de San Luis de Cañete, na cidade de La Quebrada, ao sul de Lima, durante o mês de setembro. Durante essa festa, cinquenta felinos, criados especificamente para esse fim, são abatidos para servirem como base para os principais pratos da festa, servidos à população local e a turistas que vêm de diferentes partes do mundo e movimentam a economia local durante o período da festa.

Segundo a população local e alguns pesquisadores da festa, o consumo de gato nessa festa teria se originado ainda durante o período da escravidão quando, na impossibilidade de ter acesso à proteína animal de outra forma, os africanos escravizados naquela região teriam começado esse consumo. A prática sobrevivera no festival de Santa Ifigênia (santa africana) e hoje desperta diferentes tipos de protestos por parte de ativistas, ecologistas e defensores dos direitos dos animais.

Roma, 18 de junho de 2015. Dos seculares palácios do Vaticano, um papa latino-americano, que escolheu ser chamado de Francisco, publica sua segunda – e para muitos a primeira de sua inteira autoria – carta encíclica intitulada Laudato Si’ (Louvado sejas!), cujo subtítulo é Sobre o cuidado da casa comum. Como se sabe, as Encíclicas papais costumam refletir o momento histórico no qual foram escritas. Se comparada à Rerum Novarum: sobre a condição dos operários, de Leão XIII (1891) ou mesmo à Mater et Magistra, sobre a recente evolução da Questão Social à luz da doutrina cristã, de João XXIII (1961), é possível perceber o quanto a encíclica de Francisco reflete o atual momento histórico no que diz respeito à ascensão e legitimação mundial de um discurso ecológico ao qual nem mesmo a Igreja Católica conseguiu manter-se indiferente.

Estamos em 2017. Em São Paulo, na cidade de Guarulhos, uma sacerdotisa do candomblé (iyalorixá), que se apresenta como a Mais Alta sacerdotisa do Culto Yezan no Brasil, anuncia publicamente a iniciação da primeira yaô que se iniciou sem utilização de sangue e sem a realização de sacrifício de animais. O anúncio, largamente divulgado no ciberespaço e entre as populações de alguma forma ligadas aos cultos afro-brasileiros, provoca intensa discussão.

O que os fatos acima têm a ver uns com os outros? Muita coisa. E são justamente esses elementos em comum existentes entre esses diferentes fatos, lugares, tempos e sujeitos sociais que este livro pretende analisar.

Alimentei o desejo de escrever este livro durante muitos anos. Contudo, ao desenvolver minha pesquisa de mestrado a respeito da importância do segredo no candomblé (2010-2011), esse projeto começou a tomar forma. Durante aquela pesquisa, conheci muitos terreiros em São Paulo, entrevistei muitos babalorixás, iyalorixás, abiãs, ekedes, ogãs, clientes etc. Reuni muito material etnográfico, apesar de não ter utilizado e analisado tudo na dissertação resultante da pesquisa, que posteriormente viria a público com o livro Segredos do poder: hierarquia e autoridade no candomblé (ARAÚJO, 2018). Conforme apresentei naquele livro, um dos elementos mais cercado de discrição e, portanto, incluído na categoria de segredo, é o orô (sacrifício), seja ele de animais ou de folhas (quando o sacrifício é de folhas passa a receber o nome de Sassaim). Quando percebi isso, também entendi que estava diante de um tema muito importante que daria matéria para outra grande pesquisa. Contudo eu não tinha tempo nem interesse, naquele momento, de desenvolver essa pesquisa. Sendo assim, mantive a ideia e o propósito de escrever a respeito do assunto e continuei reunindo material etnográfico, além de, sempre que possível, manter as conversas com os sacerdotes e sacerdotisas a respeito do tema.

Este livro, portanto, deve ser acolhido como resultado de pesquisas e vivências pessoais. No que se refere às pesquisas, o conteúdo, de certa forma, representa uma síntese de diálogos, observações, coleta de material etnográfico, bibliográfico e cinematográfico de um período de nove anos de pesquisas, já que a reunião desse material estendeu-se durante os períodos das minhas pesquisas de mestrado e doutorado e, posteriormente, da minha atuação como professor de Antropologia, na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), no Estado do Ceará.

Já no que se refere às vivências, este mesmo livro também deve ser considerado resultado das minhas vivências como adepto do candomblé que passou pelas experiências de abiã e iyaô, tendo posteriormente sido elevado à condição de babalorixá. Ocupo, então, a posição de antropólogo, pesquisador e sacerdote. Esse é meu lugar de fala e, consequentemente, tal lugar acarreta-me privilégios, responsabilidades e possíveis vulnerabilidades em função do olhar de quem ao mesmo tempo ocupa a posição de outsider (já que antropólogo) e insider (já que sacerdote). Caberá, portanto, ao leitor e à leitora o papel de julgar o que pode ser visto como mérito ou demérito. No entanto espero que a condição de pesquisador insider não seja motivo para uma precipitada recusa prévia da leitura.

Antes de passarmos a anunciar o conteúdo deste livro, é importante fazer algumas advertências. Uma delas está ligada ao recorte espacial abrangido pelo estudo. Não sou africano e nem africanista. Possuo conhecimentos limitados acerca dos cultos tradicionais africanos, apesar de ter relativos conhecimentos do assunto, inclusive pelo fato de estar ligado a um terreiro que mantém, além do culto aos orixás, o culto à Iyami Osorongá, a Ifá, e a Egun, além de outras expressões de cultos tradicionais yorubá. Além disso, por ser professor de Antropologia em uma universidade federal voltada para a integração entre o Brasil e os países africanos de língua portuguesa, estou constantemente em contato e diálogo com estudantes e professores da Guiné Bissau, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, de diferentes etnias, muitos deles ligados a esses cultos por pertencimento étnico, familiares e religiosos. Contudo repito: não sou africanista, e sim especialista em religiões afro-brasileiras. Falo da diáspora e, portanto, minha voz é uma voz afro-diaspórica. É acerca de religiões afro-diaspóricas que pesquiso, compreendo e, portanto, falo. A respeito disso posso afirmar, com segurança, que entendo. Falo isso para que o leitor e a leitora não procurem aqui aquilo que só em estudos especificamente voltados aos cultos tradicionais africanos poderá encontrar. Aqui encontrará reflexões a respeito de candomblé, culto Yezan (tudo que entendo sobre ele devo à generosidade da venerável Dobanna Boressa Mãe Solange Buonocore) e religiões afro-brasileiras. É disso que conversaremos nesta obra.

Outra advertência a ser feita é que, ao analisar novas formas de culto aos orixás, como é o caso do culto sem sangue estabelecido no Brasil pela Dobana Boressa Mãe Solange Buonocore, não pretendo fazer juízo de valor, afirmando ser este ou aquele culto mais legítimo do que qualquer outro. Definitivamente, a intenção aqui não é esta. A intenção é, tão somente, analisar processos atuais de mudanças rituais em curso no campo religioso brasileiro, cujas mudanças podem estar associadas ao fato de as tradições serem inventadas – no melhor sentido do termo – e ao fato de as religiões serem vivas, dinâmicas e, portanto, sujeitas a diálogos, negociações, transformações e adaptações, principalmente quando se trata de religiões diaspóricas, como é o caso dos cultos afro-brasileiros.

Toda diáspora implica revisão de tradições. Nessa revisão – melhor seria falar no plural – há elementos que se mantêm e outros que desaparecem. Ora retomam-se tradições primevas, ora se criam novas tradições mais compatíveis com a situação diaspórica na qual se está envolvido. O caso das religiões afro-brasileiras é um bom exemplo para se pensar essas construções. Atualmente, por exemplo, o simples gesto de entrar em uma livraria especializada em religiões afro-brasileiras poderá servir como exercício para se pensar algumas das transformações pelas quais essas expressões religiosas vêm passando. A impressionante quantidade de livros publicados a respeito do uso de folhas nessas religiões é um dado sintomático. Há livros das mais variadas naturezas, desde aqueles com conteúdos voltados para as práticas rituais até aqueles de caráter mais acadêmico. Da mesma forma, a multiplicação de cursos, oficinas e workshops acerca de manejo de ervas nesses ambientes religiosos parecem apontar para uma valorização cada vez mais acentuada do uso de folhas, ao mesmo tempo em que se evita falar do sacrifício de animais. O que esses fatos podem comunicar de mudanças rituais em curso nessas religiões? Até que ponto as fronteiras do segredo que envolve o sacrifico de folhas e de animais estariam se modificando? Há que se pensar nessas transformações.

Pelas advertências acima, vê-se, já no início, que o livro fala do campo religioso brasileiro. Não se deve, portanto, procurar nesta obra análises muito abrangentes acerca do tratamento dado ao pensamento ecológico contemporâneo e a utilização de animais em ritos religiosos de outras regiões do mundo. Sempre que se evocarem realidades de outros continentes e países será apenas para explicar suas influências no Brasil ou para explicar desdobramentos de dinâmicas que aqui começaram, como é o caso das referências feitas ao candomblé na Itália ou mesmo das influências das discussões da Organização das Nações Unidas (ONU) a respeito da ecoteologia boffiana, ou mesmo das influências do pensamento

Está gostando da amostra?
Página 1 de 1