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Veredas antropológicas: uma exploração em diferentes áreas de pesquisa
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E-book361 páginas5 horas

Veredas antropológicas: uma exploração em diferentes áreas de pesquisa

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Sobre este e-book

Os textos reunidos neste livro reproduzem o caminho do desenvolvimento da Antropologia, que nasceu com foco nas sociedades primitivas e depois se expandiu para as mais diversas áreas da sociedade moderna. O primeiro capítulo, de perfil teórico, aborda a questão das representações coletivas, que é muito importante para o estudo das sociedades primitivas, e os dois capítulos seguintes tratam de grupos caçadores-coletores e abordam temas relativos à igualdade e às relações de gênero. Depois as sociedades indígenas entram em cena, primeiro, para esclarecer a importância da guerra para uma tribo amazônica e, depois, para considerar a relação dos índios em geral com produtos industrializados.
No contexto da sociedade moderna, são abordadas questões de gênero e da importância do corpo feminino nas relações entre homens e mulheres, além do papel do consumo que penetra todos os recantos da sociedade nos tempos atuais. A relação do indivíduo com o consumo pode ser vista como similar a uma prática religiosa, uma vez que se fazem promessas e orações para a aquisição de objetos "valiosos" como se fossem objetos sagrados. Em seguida, observa-se a ênfase dada ao poder da fala, que ocorre em todas as sociedades. Falar bem em qualquer circunstância confere, sempre, um status diferenciado ao falante, em relação aos seus pares.
A última parte do livro mergulha no carnaval, com destaque para as escolas de samba, que se têm tornado o símbolo não só do carnaval do Rio de Janeiro, como também do Brasil. O aumento da importância das escolas levou a uma rigidez nos seus desfiles, que afastou muita gente de suas apresentações. Muitos desses indivíduos migraram para os blocos de rua, que mantiveram a espontaneidade e a liberdade associadas ao carnaval. Isso resultou num grande aumento dos foliões dos blocos carnavalescos, de cuja alegria parece emergir o "espírito carioca".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de jun. de 2020
ISBN9788547332907
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    Veredas antropológicas - José Sávio Leopoldi

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Este livro é dedicado a

    Maria Antonieta, Camila e Rafaella – esposa, filha e neta –,

    veredas iluminadas pela admiração, afetividade, dádiva e amorosidade.

    APRESENTAÇÃO

    O título deste livro pretende dar uma ideia geral do seu conteúdo, a fim de preparar o leitor para a diversidade de tópicos abrangidos pelas pesquisas que se debruçaram sobre vários temas sob o foco antropológico. De certa maneira, isso reflete o desenvolvimento da ciência antropológica, que nasceu e se desenvolveu no campo das chamadas sociedades primitivas, como ainda são chamadas as tribos indígenas, bem como os grupos de caçadores-coletores. O objetivo das pesquisas era compreender tais sociedades do ponto de vista do indígena, como se os antropólogos fossem, eles mesmos, nativos daqueles grupos. Ainda que uma compreensão total pelo pesquisador de uma sociedade diferente seja, na realidade, impossível, por mais que ele se dedique a essa tarefa, o trabalho de campo possibilita uma visão interna daquela sociedade, adequadamente sintonizada com a visão dos próprios nativos. Nesse processo, o esforço do pesquisador consiste em tentar relativizar seus valores, moldados pela sociedade de que faz parte – ou seja, sua visão do mundo – no sentido de possibilitar uma compreensão que tenta ser isenta e aprofundada do contexto ou tema a ser estudado.

    A Antropologia trabalha basicamente com dados referidos como qualitativos, ao contrário dos quantitativos, mais associados a pesquisas de perfil sociológico, político etc. Os dados quantitativos são básicos para a construção de tabelas e a realização de cálculos percentuais, para mostrar a prevalência de alguns dados sobre outros. A pesquisa antropológica busca compreender o significado de um tema específico a ser pesquisado, em sintonia com o contexto em que se insere, fazendo entrevistas, praticando a observação participante e efetuando leitura de textos publicados sobre o tema em estudo. Esse trabalho relaciona-se com a pesquisa teórica e também com as análises de cunho prático, resultando na produção de conhecimento sobre os mais variados temas.

    Os textos reunidos neste livro incluem diversos assuntos do atual campo da pesquisa antropológica. Embora eu tenha iniciado o caminho antropológico enveredando pelos estudos tradicionais, referentes às sociedades indígenas, dos quais resultou a obra De caçadores-de-cabeça a índios urbanos: a saga dos índios Munduruku,¹ aos poucos fui sendo atraído por diferentes tópicos da sociedade moderna. Meu interesse pelo estudo de alguns deles, particularmente relacionados ao consumo, às relações de gênero, aos rituais e ao carnaval,² estimulou-me a olhar também para esses tópicos do mundo moderno. Este livro objetiva fazer com que os leitores sigam por essas veredas, que atravessam diferentes áreas da pesquisa antropológica atual.

    A primeira parte do livro paga tributo às sociedades tradicionais, iniciando com uma discussão, de perfil teórico, que é fundamental para a compreensão delas (capítulo 1), com foco preponderante nas representações coletivas, que parecem submeter de maneira radical os indivíduos às injunções da coletividade a que pertencem. Em seguida (capítulos 2 e 3), volto-me para as sociedades caçadoras-coletoras, consideradas mais igualitárias, para tratar da questão da igualdade. Ainda considerando essas sociedades, passo a tratar das relações de gênero, observando que homens e mulheres têm papéis socialmente bem demarcados, associados às suas características culturais, biológicas e sexuais. Nesse quadro, o status masculino é mais valorizado do que o feminino em razão de sua maior contribuição ao bem-estar e à sobrevivência do grupo, em face de suas atividades de caça e de guerra. É muito interessante perceber que boa parte do comportamento dos homens e mulheres da atualidade tem semelhanças com o que acontece naquelas sociedades, a ponto de alguns antropólogos dizerem que somos modernos, mas com cérebros de caçadores-coletores.

    No capítulo 4, trato de uma questão específica envolvendo os índios Munduruku da Amazônia, os quais, pela sua belicosidade e capacidade guerreira, foram responsáveis pelo extermínio de vários grupos tribais. O objetivo central das guerras em que se envolviam era a captura de cabeças dos inimigos, as quais, depois de enfeitadas e transformadas em troféus, possibilitavam, segundo a crença dessa tribo, melhores resultados na caça e na pesca, atividades fundamentais para sua sobrevivência. Essa sociedade indígena era radicalmente voltada para a guerra, sendo o guerreiro – especialmente o que possuía um daqueles troféus – considerado o modelo por excelência do homem Munduruku, com todo o respeito que ele despertava nos seus pares e com todo o status que estes lhe conferiam.

    No capítulo 5, ainda envolvendo os índios de modo geral, abordo um assunto não muito explorado pela antropologia brasileira, ou seja, o desejo dos nativos pela posse de produtos industrializados, que lhes trazem muitos benefícios e status em relação aos seus assemelhados. Em toda a história do contato dos indígenas com a sociedade brasileira, a doação de presentes (machados, foices, contas para a confecção de missangas, varas de pesca e anzóis etc.) caracterizou-se como a peça chave para a atração de índios e para o estabelecimento de relações pacíficas entre estes e os indigenistas que buscavam contatá-los. O objetivo do texto é mostrar a face oculta dos contatos entre índios e brancos, ou seja, a atração dos índios pelos presentes que lhes são oferecidos, aspecto geralmente omitido nos trabalhos que se referem a esses contatos. Isso porque se poderia supor que os indígenas estariam se sujeitando ao consumo e ao poder do capitalismo e da cultura econômica ocidental.

    Na Parte II, abordo aspectos da sociedade contemporânea, a começar pelas relações de gênero (capítulo 6), procurando compreender os papéis, status e expectativas em relação a homens e mulheres, e até mesmo as diferenças e os aspectos considerados politicamente incorretos. A Psicologia Evolutiva, por meio de pesquisas envolvendo dezenas de culturas, tem mostrado como as relações de gênero assemelham-se em todas as sociedades, tendo por base a evolução humana, fundamentada no evolucionismo darwiniano. O desejo masculino está no centro das discussões levadas a efeito nesse texto.

    Ainda em sintonia com as relações de gênero, no capítulo 7 procuro mostrar como a modernidade, marcada pela individualização exacerbada e pelos contatos superficiais entre os agentes sociais, ao contrário dos relacionamentos densos do passado, influencia as relações de gênero. Para confrontar o distanciamento entre homens e mulheres, a sociedade tem atribuído ao corpo da mulher um papel de mediador do contato entre eles e elas. O destaque do corpo feminino na publicidade, nos mais variados meios de comunicação e nos espaços sociais de modo geral, constitui um estímulo à aproximação do sexo oposto. Esse quadro reproduz o que Danuza Leão caracterizou como o desejo feminino, a partir de uma frase primorosa: Sentir-se desejada é tudo o que uma mulher quer.³

    No capítulo 8, considero a relação da sociedade moderna com o consumo. Homens, mulheres, e crianças tendem a associar sua identidade – e mesmo a felicidade – aos objetos de consumo que obtêm, particularmente os cobiçados por seus pares. Tais objetos lhes propiciam status, prazer, poder, destaque e privilégio. E isso acontece a tal ponto que os despossuídos se sentem inferiorizados e praticamente à margem da sociedade de consumo. Daí poder-se atribuir ao consumo uma prática semelhante à religiosa, uma vez que indivíduos fazem uso de promessas e orações para adquirir objetos valiosos, de maneira análoga ao que se faz para reverenciar um objeto sagrado.

    No capítulo 9, faço considerações em torno da importância da fala, da expressão oral em todas as sociedades. Um chefe indígena, por exemplo, tem, como característica essencial, a forma como domina a comunicação e impõe-se por meio da fala, o que lhe dá poder e prestígio entre seus pares. Na sociedade moderna, esse aspecto é também muito valorizado. Basta ver como o discurso político é um quesito importante entre os parlamentares, devendo-se destacar que, frequentemente, a forma e o vigor com que se fala acabam tendo mais valor do que o próprio conteúdo do que se expõe. O debate televisivo em períodos eleitorais oferece, bem apropriadamente, a dimensão da importância da performance de candidatos a cargos importantes, como se fôssemos indígenas, no sentido de que falar bem significa liderar, governar e trabalhar bem.

    Na Parte III, o assunto dos dois capítulos finais (capítulos 10 e 11) desenvolve-se em torno do carnaval carioca, centrado no desfile das escolas de samba e na apresentação dos blocos carnavalescos. A partir desses textos trato de expor as transformações pelas quais passaram as escolas de samba nas últimas décadas, observando que deixaram de constituir espaços de folia descontraídos para se apresentarem nos desfiles atuais, que se assemelham a desfiles militares, em face da rigidez imposta ao desempenho dos participantes de todas as agremiações. A aspiração a notas elevadas a serem divulgadas pelos jurados que avaliam os diferentes quesitos apresentados pelas escolas de samba acaba requerendo uma seriedade dos participantes que se sobrepõe à descontração, à informalidade, à liberdade e à alegria que caracterizavam os desfiles em um passado não muito remoto. Pode-se mesmo dizer que o desfile das escolas transformou-se numa apresentação teatral com todos os gestos, passos, movimentos e cantos muito bem ensaiados. Minha suposição é que esse engessamento das escolas de samba acabou afastando parte da população dessa manifestação oficial do carnaval carioca, resultando na sua migração para os blocos carnavalescos que têm mantido a descontração, a liberdade e a alegria típicas do carnaval do Rio de Janeiro.

    Atualmente, centenas de blocos são constituídos por milhares de pessoas, que desfilam pela cidade no período carnavalesco, com a responsabilidade da prefeitura de fazer com que os diferentes blocos distribuam-se por diversos bairros e horários para que se evite o encontro de blocos. Apesar desse controle que a prefeitura da cidade tem imposto aos blocos carnavalescos, estes mantêm o clima de descontração, alegria e informalidade que sempre foi a essência do carnaval, razão pela qual seus desfiles têm constituído uma forma, verdadeiramente popular de brincar no carnaval carioca.

    Um grande número de turistas, nacionais e estrangeiros visitam o Rio de Janeiro no período carnavalesco, aproveitando para participar do desfile de um ou mais blocos e usufruir do sentimento carnavalesco que envolve a cidade, de modo a compreender com mais profundidade o descontraído espírito carioca, como, aliás, reza a lenda.

    Sumário

    CAPíTULO 1

    A NATUREZA DESIGUALITÁRIA DAS REPRESENTAÇÕES COLETIVAS E A ILUSÃO DA COLETIVIDADE DURKHEIMIANA 15

    CAPíTULO 2

    A TROCA ORIGINAL E A LEGITIMAÇÃO DA DESIGUALDADE POSITIVA NAS SOCIEDADES MAIS IGUALITÁRIAS 49

    CAPíTULO 3

    A GUERRA IMPLACÁVEL DOS ÍNDIOS MUNDURUKU: ELEMENTOS CULTURAIS E GENÉTICOS NA CAÇA AOS INIMIGOS 73

    CAPíTULO 4

    O FETICHE DAS MERCADORIAS: A FACE OCULTA DO CONTATO ENTRE ÍNDIOS E BRANCOS 101

    CAPíTULO 5

    RELAÇÕES DE GÊNERO ENTRE OS CAÇADORES-COLETORES 129

    CAPíTULO 6

    ANTROPOLOGIA DO DESEJO MASCULINO: SEXUALIDADE, FEMINILIDADE E MODERNIDADE 159

    CAPíTULO 7

    O CORPO DA MULHER NA MODERNIDADE COMO MEDIADOR ENTRE OS GÊNEROS 197

    CAPíTULO 8

    O CONSUMO COMO PRÁTICA RELIGIOSA 221

    CAPíTULO 9

    POLÍTICA E TEATRALIDADE: A PERFORMANCE COMO PRODUTO DISCURSIVO 247

    CAPíTULO 10

    ESCOLAS DE SAMBA, BLOCOS E O RENASCIMENTO

    DA CARNAVALIZAÇÃO 271

    CAPíTULO 11

    CARNAVAL BRASILEIRO: A EMPOLGAÇÃO DOS BLOCOS CARNAVALESCOS 303

    CAPÍTULO 1

    A NATUREZA DESIGUALITÁRIA DAS REPRESENTAÇÕES COLETIVAS E A ILUSÃO DA COLETIVIDADE DURKHEIMIANA

    O objetivo central deste artigo é promover uma discussão em torno do que nos parece a contribuição mais importante de Durkheim à emergência da sociologia como ciência, ou seja, a noção de fato social bem como de representações coletivas. Em última instância buscamos argumentar que, segundo o paradigma durkheimiano, a autonomia atribuída aos fenômenos sociais, se por um lado mostra a verdadeira natureza da instância coletiva, por outro, acaba marginalizando de maneira radical o indivíduo – o sujeito que se diferencia de todos os outros e é o agente da ação prática – na construção daqueles fenômenos. Isto porque ao considerar apenas o resultado das interações individuais que resultam tanto em fatos sociais como em representações coletivas, os indivíduos acabam sendo homogeneizados na elaboração dessas instâncias, apesar de – na realidade – atuarem como participantes individualizados e desigualitários nesse processo e serem objetos do poder coercitivo daquelas representações também de maneira diferenciada.

    Em larga medida, o pensamento de Durkheim decorreu das complicadas negociações que manteve com a psicologia, cujo prestígio tendia a se espraiar para o campo das relações sociais, bem como da correta convicção de que o fenômeno social não se confunde com o individual ou o psicológico e, consequentemente, não pode ser explicado por meio deles. O destaque dado à autonomia do fato social – que doravante iria marcar decisivamente o campo sociológico – contribuiu para um distanciamento, na verdade quase uma ruptura metodológica, entre o indivíduo e a coletividade. A autonomia do social foi um fator decisivo para a implementação da sociologia como disciplina autônoma, mas o agente individual e os fenômenos sociais e simbólicos que aquela autonomia ajuda a criar tiveram doravante suas conexões muito diluídas. A prioridade dada ao processo coletivo de construção dos fatos sociais acabou dificultando a compreensão da natureza última de tais fatos, porque compromete o reconhecimento da participação diferenciada dos indivíduos nesse processo, uma vez que distorce a relação entre individualidade e coletividade e, por extensão, a própria essência desta. É como se os fenômenos sociais resultassem da atividade de um único ser coletivo, de uma coletividade indiferenciada, no sentido de que todos os indivíduos teriam uma participação semelhante na sua construção. Para que seja dado o devido destaque àquela participação diferenciada e às inevitáveis consequências que resultam dela, é preciso rever em alguma profundidade a concepção de Durkheim sobre fato social. E esse é um dos pontos centrais deste trabalho.

    Outro ponto a ser discutido é o que diz respeito à representação coletiva para a qual raciocínio semelhante se aplica, pois, na medida em que é pensada em termos do resultado de uma participação coletiva, ela surge como um produto da interação dos indivíduos, como se todos também tivessem contribuído para sua formação em termos igualitários. Essa questão não foi aprofundada por Durkheim e acreditamos que uma avaliação mais rigorosa da participação individual na construção da representação coletiva traria uma compreensão maior não apenas dessa construção como também da forma diferenciada pela qual ela se impõe aos diferentes indivíduos. Essa participação diferenciada é que queremos destacar, pois dela resulta que, se uma dada representação exerce coerção sobre a coletividade, ela não o faz da mesma maneira e com a mesma força sobre todos os indivíduos. A relação entre uma dada representação coletiva – particularmente a representação compartilhada por um grupo secundário do qual o indivíduo participa – e o indivíduo vai depender do papel que ele desempenhou na formação daquela representação e isso traz grandes implicações para o contexto social respectivo.

    Mas vamos por partes. Durkheim define o fato social como todo modo de agir, pensar e sentir exterior ao indivíduo. Se se priorizam os aspectos simbólicos implicados nessa definição, pode-se seguramente correlacionar fato social com a ideia de cultura avançada por Geertz (1978) ao referi-la como uma teia de significados que envolve os indivíduos de uma dada sociedade, governando o seu comportamento, sua visão de mundo, seus valores e impondo-lhes as representações coletivas características daquela sociedade. Fatos sociais são elementos constitutivos da sociedade e transmitidos às gerações futuras pelos instrumentos culturais específicos dessa sociedade.

    Como elementos culturais, os fatos sociais são construídos pela coletividade, ou seja, pela interação dos indivíduos e transmitidos e validados pelas instâncias socioculturais, sejam elas instituições como as educacionais ou procedimentos informais como acontece no processo de socialização das crianças. O fato social embora seja externo ao indivíduo acaba internalizando-se nele, de modo que seu comportamento individual obedece a um padrão, a uma forma coletiva de agir, pensar e sentir. Essa internalização se dá pelo envolvimento do indivíduo na rede de significados anteriormente referida, vale dizer, pela internalização de padrões, valores e significados culturais que permeiam o tecido social. Aqui entra, então, o papel das representações coletivas, que podem ser consideradas como significantes que remetem a noções concretas que viabilizam a comunicação entre indivíduos e a significados culturais mais subjetivos como os valores, as normas e modos de pensar e sentir. Em termos mais objetivos, pode-se exemplificar uma representação com a ideia de família compartilhada por uma sociedade. Embora definições precisas dificilmente sejam elaboradas pelos diferentes indivíduos dessa sociedade, todos saberão de que se trata quando o termo vem à baila em pensamento, em qualquer conversação ou aparece em textos, como manchetes de matéria impressa, artigos de jornal ou revista.

    Embora as obras de Durkheim – com exceção de As formas elementares da vida religiosa – tenham já completado um século de publicação, seu pensamento continua muito presente no campo das ciências sociais, como pode ser atestado pela publicação do trabalho de Antony Giddens sobre o autor em 1978 na coleção Modern Masters da editora inglesa Fontana.⁴ Apesar de o conjunto da obra de Durkheim não ser particularmente vasto, ele discutiu de forma inovadora vários aspectos controversos da produção política, sociológica, psicológica e filosófica da sua época, marcadamente a segunda metade do século XIX.

    O objetivo deste trabalho não é destacar a contribuição de Durkheim ao pensamento sociológico, o que já tem sido feito por inúmeros intelectuais de várias áreas. Nossa proposta é bastante mais modesta, ainda que muito desafiadora, no sentido de que focalizaremos apenas alguns pontos marcantes do seu trabalho, com o propósito de exercitar o espírito crítico para tentar mostrar como a excelência de suas proposições acabou por dificultar alguns avanços que poderiam ter sido feitos a partir delas. Em outras palavras, elas ganharam tanto prestígio no campo científico que, por assim dizer, permaneceram virtualmente imunes a desdobramentos que poderiam colocá-las sob algum tipo de suspeição. Não estamos dizendo com isso que o trabalho de Durkheim é imune a críticas e revisões, mesmo porque vários aspectos dele já foram superados e outros têm sido contestados com consistência e segurança. Não obstante, o prestígio daquele que pode ser apontado como o fundador da moderna sociologia continua suficientemente forte para legitimar ideias e pensamentos desenvolvidos nas mais variadas obras das ciências sociais.

    Antes de prosseguirmos, cabe fazer referência a uma questão de ordem. A tradução que nos parece mais adequada da palavra francesa fato – referido ao social – do texto durkheimiano para a língua portuguesa é sem dúvida fenômeno. Isso porque fato entre nós remete primeiramente a episódios concretos como acontecimento, sucesso, episódio, caso. A acepção dada por Durkheim a fatos sociais diz respeito, antes de tudo, a coisas abstratas e por isso a nossa preferência pela palavra fenômenos, situada num nível de abstração mais elevado e mais compatível com as ideias desenvolvidas pelo sociólogo a respeito dos fatos sociais.

    Assim, além de fato, palavra que, de qualquer maneira, ficou associada de maneira vigorosa ao discurso durkheimiano, estaremos utilizando também, e preferencialmente, o termo fenômeno social para designar o objeto por excelência da disciplina sociológica. Para Durkheim então fatos sociais ou fenômenos sociais são maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a propriedade marcante de existir fora das consciências individuais. Esses tipos de conduta ou de pensamento não são apenas exteriores ao indivíduo; são também dotados de um poder imperativo e coercitivo, em virtude do qual se lhe impõem, quer queira, que não.⁵. Tais fenômenos, em termos mais objetivos, consistem em representações e ações coletivamente constituídas e, por resultarem da interação dos indivíduos, não se referem a suas individualidades particulares. Têm, ao contrário, fundamento no conjunto dos indivíduos e impõem o espírito da coletividade em cada sujeito particular, que opera como ser social, isto é, que age, pensa e sente – em larga medida – segundo os padrões adequados ao seu ambiente sociocultural.

    Parece claro, então, que formas de agir, pensar e sentir não constituem na realidade representações como tais, mas, sim, atividades desempenhadas pelos indivíduos de determinado contexto social em decorrência das representações coletivas que impregnam tais indivíduos. Dessa forma, percebemos que todo o edifício durkheimiano está alicerçado no conceito de representação e é a partir dele que iniciamos nossa discussão visando a destacar o seu caráter desigualitário para, em seguida, matizar com nitidez nossas considerações sobre a noção de coletividade e a ilusão embutida na proposta de Durkheim referida no título deste trabalho.

    Atualmente, não deixa de constituir um truísmo antropológico a ideia de que a cultura antecede o indivíduo no sentido de que quando ele vem ao mundo ela já está estabelecida e vai moldá-lo, primeiro por intermédio das pessoas que fazem parte do seu círculo mais íntimo de amizade e parentesco, por meio do processo de socialização; depois, pela submissão gradativa às instituições sociais, à medida que se vai inserindo no mundo dos adultos e tornando-se um sujeito integrado ao contexto social. Pode até vir a desempenhar um papel importante no permanente e imprevisível processo de mudança sociocultural se se tornar uma pessoa influente, poderosa, e, consequentemente, exercer maior influência sobre os rumos que a sociedade venha tomar. Porém, de qualquer maneira, as regras, valores e padrões culturais submetem esse e qualquer outro indivíduo às suas determinações, razão pela qual se pode dizer que existem fora dele e exercem sobre ele um poder coercitivo.

    É fácil também perceber que o que se tem referido até aqui como formas de agir, pensar e sentir nada mais são do que processos culturais na sua acepção mais moderna, ou seja, a que privilegia as instâncias simbólicas desses processos, como já salientamos ao destacar a concepção geertziana da cultura. Pois, na tecedura da rede de significados culturais – expressão que, a nosso ver, contempla amplamente a noção de fato social durkheimiano – percebem-se as representações sociais como as unidades significantes que estruturam toda a rede. Afinal, a comunicação que caracteriza por excelência a socialidade, que possibilita a relação com o outro e que em última instância confere ao eu a sua dimensão social, se alicerça na combinação de representações expressas pelos indivíduos, as quais surgem como substrato da ligação entre eles. Dessa maneira, as representações fazem da coletividade algo mais do que a simples soma de individualidades.

    Mas se fatos ou representações sociais são, por excelência, fenômenos culturais, a rigor nem todos os fatos sociais na acepção durkheimiana se confundem com representações, pois há que distinguir modos de agir de modos de pensar e sentir. Isso porque se todos podem ser percebidos como dados culturais, o agir se distingue daquelas outras manifestações pela sua concretude e objetividade; por isso, parece-nos mais apropriado conferir a esse termo não o status de representação, mas de acontecimento social. Agir, significa atuar, fazer, exercer atividade, ou seja, considerando o texto durkheimiano, atuar de maneira socialmente adequada, vale dizer, devidamente ancorada nas representações coletivas. Isto porque alguém age ou se comporta de determinada maneira em consonância com os valores, normas e padrões da sua sociedade, que por sua vez estão sintonizados com as representações coletivas características dela. A ação é, pois, uma coisa concreta, visível, objetivada, e por isso se distingue claramente das formas de pensar e sentir, processos fundamentalmente abstratos que decorrem das representações e se objetivam por meio dos comportamentos exibidos pelos indivíduos. Modos de pensar e sentir não são percebidos empiricamente devido exatamente à sua natureza, à sua abstração essencial, se não quando se transformam em ações, posturas, comportamentos concretos, observáveis. São também fenômenos culturais e sociais e possuem proximidade maior com as representações por sua natureza abstrata, mas também não se confundem com elas, porque decorrem delas.

    Em termos mais práticos, representações sociais consistem em ideias, noções, concepções e conceitos – expressão preferida por Durkheim – que as sociedades necessariamente desenvolvem para possibilitar a interação social, a comunicação, o diálogo. A forma mais óbvia dessa interação é concretizada pelo uso da linguagem, pela troca de palavras, que incorporam as referidas ideias e noções socialmente construídas e lhes conferem objetividade. Mas nesse processo o diálogo nunca

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