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Crianças e mídias no Brasil: Cenários de mudanças
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E-book473 páginas5 horas

Crianças e mídias no Brasil: Cenários de mudanças

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Sobre este e-book

Em países como o Brasil, o desigual acesso às tecnologias de informação e comunicação (TICs) tende a agravar as já profundas diferenças sociais e regionais.
Hoje, ninguém mais duvida de que precisamos todos aprender a lidar com as tecnologias, tornando-as verdadeiros instrumentos de comunicação e educação, uma vez que são tão incontornáveis quanto a multiplicidade e a profusão de informações e imagens a que estamos submetidos, a maioria delas orientada pela lógica capitalista de produção e consumo.
É em tal contexto que esse livro busca compreender como crianças e adolescentes percebem, desconstroem e reelaboram as mensagens das mídias (da televisão a celulares, computadores, videogames etc.), a fim de contribuir para a formação do professor. Se sua tarefa sempre foi desafiante, agora se tornou também ainda mais complexa. No entanto, nada como estar bem-preparado para enfrentar o dragão: seja ele real ou virtual! - Papirus Editora
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de mai. de 2015
ISBN9788544900956
Crianças e mídias no Brasil: Cenários de mudanças

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    Crianças e mídias no Brasil - Maria Luiza Belloni

    CRIANÇAS E MÍDIAS NO BRASIL

    CENÁRIOS DE MUDANÇA

    Ensaios de sociologia da infância

    Maria Luiza Belloni

    >>

    Criança não precisa de esmola

    Criança não precisa de favor

    Criança só precisa de escola

    De carinho e muito amor.

    Quem ama lhe dá comida

    Não promete nada em vão

    Dá saúde que é vida

    Não esquece da educação.

    Criança é diamante puro

    Não façam dela cascalho

    Não estraguem seu futuro

    Nem a explorem no trabalho.

    Toda criança merece atenção

    Não nasceu para prostituição

    E nem para morrer na miséria.

    Mais amor para as crianças

    É o meu pedido derradeiro

    Porque são a esperança

    Dos povos do mundo inteiro.

    Gabriela (12 anos) e Ana (11 anos)

    Casa da Liberdade, 2002

    SUMÁRIO

    AGRADECIMENTOS

    APRESENTAÇÃO

    ENSAIO 1

    INFÂNCIA E MÍDIAS NO BRASIL:

    DESIGUALDADES DETERMINANTES

    1. INFANS SACER : A CRIANÇA COM DIREITOS E O MENOR SEM NADA

    2. DO GRUMETE AO PIVETE: BREVE ESCORÇO HISTÓRICO DA INFÂNCIA NO BRASIL

    3. CRIANÇAS, ADOLESCENTES E MÍDIAS NO BRASIL

    4. A ESCOLA COMO CENÁRIO DE MUDANÇA

    ENSAIO 2

    RELATOS DE PESQUISA:

    DESIGUALDADES E APRENDIZAGENS

    1. INTRODUÇÃO

    2. DESIGUALDADES

    3. APRENDIZAGENS: NOVOS MODOS DE APRENDER COM AS TICs

    4. ESCOLA E MÍDIAS: CENÁRIOS DE MUDANÇA

    NOTAS

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    ANEXO METODOLÓGICO

    SOBRE A AUTORA

    OUTROS LIVROS DA AUTORA

    REDES SOCIAIS

    CRÉDITOS

    AGRADECIMENTOS

    Este livro é fruto de muitos anos de pesquisas realizadas com diferentes equipes de estudantes universitários de diversas áreas e com crianças e adolescentes de Salvador, Brasília e Florianópolis.

    Meu principal agradecimento é para esses jovens cidadãos e seus professores que nos acolheram em suas escolas e participaram voluntariamente, com interesse e motivação, das atividades propostas pelas pesquisas.

    Não poderia deixar de agradecer aos estudantes bolsistas que tornaram possível todo este trabalho, participando das atividades com criatividade e responsabilidade. Tenho certeza de que, juntos, aprendemos muito com nossos jovens sujeitos da pesquisa.

    Quero também agradecer às colegas e estudantes do grupo de pesquisa Comunic, especialmente a Nilza Gomes, que esteve comigo em muitas dessas pesquisas, por seu companheirismo, seu entusiasmo pedagógico e sua sensibilidade na escuta dos jovens. As pesquisas mais recentes não teriam tido a qualidade que têm sem a sua competente coordenação de campo.

    Devo também agradecer ao CNPq, pelo apoio constante a meu trabalho de pesquisa, possibilitando sua continuidade nestes anos todos e a divulgação de resultados neste livro.

    APRESENTAÇÃO

    Os dois ensaios aqui apresentados são fruto de um trabalho de pesquisa empírica e de reflexão realizado ao longo de mais de 20 anos, durante os quais procurei estudar e compreender os modos como as crianças e os adolescentes estabelecem relações sociais, culturais e afetivas com as diferentes mídias às quais têm acesso. Após uma tese de doutorado sobre a televisão educativa no Brasil, comecei, como professora de sociologia, a estudar os públicos infantojuvenis de televisão e a tentar compreender como crianças e adolescentes percebem, desconstroem e reelaboram as mensagens das telinhas que eles frequentam, adoram e são capazes de avaliar criticamente, sempre que se lhes dá a ocasião. O quadro teórico que me orientava então e que continua como fundamento de minha reflexão pode ser resumido pelas questões essenciais da sociologia: a compreensão dos vínculos sociais, ou seja, das relações paradoxais entre indivíduos livres e emancipados e estruturas sociais coercitivas e determinantes, fundamentais para entender a formação das novas gerações e dos processos de socialização de crianças e adolescentes.

    A finalidade é compreender a criança, como sujeito complexo, em suas relações com as mídias e suas interações por meio das tecnologias de informação e comunicação (TICs),[1] no contexto de uma sociedade desigual, altamente tecnificada e globalizada, que mantém, pelo menos como promessa ou construção ideológica, a imagem sonorizada pelo canto de sereia das mídias de massa de que esse é o melhor dos mundos. O papel das mídias nos processos de socialização, em que a criança deve ser considerada como sujeito e não como mero objeto da ação das instituições sociais, é extremamente importante e quase totalmente ignorado pelos sistemas escolares, sobretudo na formação de professores. Nosso trabalho de pesquisa e de reflexão-na-ação de formação de educadores visa justamente contribuir para a mudança nesse setor particular, pois não acreditamos que as tecnologias possam substituir o professor, mas, ao contrário, exigem dele uma atuação bem mais complexa, para a qual ele não está sendo bem preparado.

    Com esse olhar, a importância da abordagem da sociologia da infância (Belloni 2009) se mostra em sua concretude, pois prioriza a compreensão dos diferentes usos e interpretações que os jovens sujeitos fazem dessas técnicas, não se limitando ao estudo da produção e do discurso das mídias nem tampouco se fechando nos estudos sobre os efeitos (o que as mídias fazem aos jovens, considerados como receptores mais ou menos passivos). Isso significa incluir os estudos que envolvem as mídias em uma abordagem sociológica da infância, com ênfase numa sociopolítica dos usos, que considera a educação parte do processo mais amplo de socialização e a criança como sujeito prioritário da educação, cuja compreensão é fundamental para avançar na transformação da sociedade (Belloni 2001b). Implica também conhecer os diferentes modos de uso que os jovens e as crianças (como os adultos) fazem desses meios que, é preciso não esquecer, já pertencem ao seu cotidiano, com diferentes graus de intensidade, segundo as classes sociais.

    Em países como o Brasil, o acesso desigual às TICs tende a agravar as já profundas desigualdades sociais e regionais. Em nossas sociedades contemporâneas, unidas por um sistema econômico globalizado, as TICs são incontornáveis, pois decorrem de um avanço tecnológico inexorável, apropriado e orientado pela lógica capitalista de produção e consumo. Os usos mais extravagantes dos incríveis recursos contidos nos telefones celulares (por exemplo, a moda, bastante difundida entre os adolescentes dos países ricos, de provocar situações de conflito e violência entre pares, para filmar com o telefone celular e imediatamente publicar na internet) ou dos programas de copiar músicas da internet são apenas alguns exemplos da rapidez com que as TICs vão se metamorfoseando e ocupando espaços cada vez maiores no tempo livre e no imaginário de crianças e adolescentes. Os usos das novas TICs (gerados pelo computador domiciliar, mas também pelo celular, iPod e outros gadgets associados), potencializados pelas redes telemáticas, não substituem o já naturalizado uso da televisão e do rádio, mas se acrescentam a ele.

    O acesso às TICs pode estar gerando um abismo tecnológico entre as gerações, ou seja, um afastamento (ou incomunicação) técnico entre adultos e crianças, invertendo radicalmente os papéis tradicionais na relação entre o adulto-que-sabe e a criança-que-não-sabe e criando uma nova espécie de diversidade cultural intergeracional e interclasses, cuja característica mais marcante é uma fissura em torno das questões éticas que envolvem a compreensão de muitos elementos do mundo, especialmente aqueles ligados à política e à violência que circunda nossas vidas. Essas diferenças extremas entre gerações, de abordagem da tecnologia, de perspectivas éticas e estéticas e de formas de perceber o mundo, vêm ocorrendo principalmente nas classes sociais que têm acesso domiciliar às TICs, nas quais as crianças e os adolescentes são em geral os maiores usuários dos computadores conectados.

    Para compreender as crianças é preciso ouvi-las, por isso, nossa metodologia de pesquisa tem como mote principal ouvir efetivamente, com atenção e respeito, as crianças e os adolescentes. Para tal, é preciso estar atento, criar metodologias de pesquisa que permitam compreender as representações, as produções, as interações e as aprendizagens geradas no uso dessas máquinas maravilhosas por crianças e jovens. É preciso atentar para as interações das crianças e dos jovens com as mídias com base em duas dimensões inseparáveis, distintas apenas analiticamente, que podemos nomear como formas e conteúdos dessas mídias, consideradas como ferramentas de comunicação entre nós, seres humanos e sociais. Embora nossas técnicas de pesquisa sejam de caráter etnográfico (com exceção de um survey), nossa pesquisa se caracteriza como uma intervenção sociológica com o objetivo de compreender as experiências de vida de nossos sujeitos, no sentido que Dubet atribui a essas noções em seu famoso estudo dos grupos de jovens desfavorecidos dos subúrbios franceses, no qual ele estuda a galère como uma experiência de vida daqueles jovens (Dubet 1987). Em nosso caso, queríamos compreender as experiências de aprendizagem de nossos sujeitos de pesquisa, ao mesmo tempo em que os estimulávamos a também refletir sobre suas ações e vivências.[2]

    A compreensão dos processos de socialização, entendidos como processos de apropriação do mundo pela criança, implica aprender com as crianças e os jovens os modos como eles aprendem, percebem, reelaboram e expressam o que aprendem. Neste caso, do ponto de vista da pesquisa voltada à educação, o mais importante não são tanto os conteúdos das mídias (objetos de análise das ciências humanas e da comunicação), mas as formas de apropriação das TICs, que estão transformando os modos de perceber e de apreender o mundo e de se expressar, produzindo novos conteúdos e novas formas. Para ensinar, é preciso compreender como os sujeitos aprendentes aprendem. Embora possa parecer óbvia e seja de fato um truísmo, essa afirmação está longe de ser aplicada na formação de nossos professores. A compreensão das mídias como meios poderosos de socialização e controle social, crucial para qualquer intervenção educacional relacionada ou não a seu uso pedagógico, está praticamente ausente da formação – inicial e continuada – de professores e da pesquisa no campo da educação em nossas universidades.

    Os resultados do primeiro momento (sociológico) de minhas pesquisas sobre infância e mídias deram origem a uma preocupação pedagógica: considerando o enorme poder de atração e persuasão da televisão e, por outro lado, suas incríveis virtudes pedagógicas, como promover, com e para crianças e adolescentes, oportunidades de leitura crítica das mensagens televisuais? Descobri então a mídia-educação, na época um campo relativamente novo de pesquisa e intervenção promovido pela Unesco, em plena expansão na Europa e ainda muito incipiente no Brasil. Passei à ação, procurando aplicar o muito que tinha aprendido com crianças e adolescentes sujeitos de minhas pesquisas na produção de um conjunto de materiais pedagógicos de formação do telespectador. Tais materiais, destinados a crianças e adolescentes, tinham como objetivo formar para o uso ativo, crítico e criativo da televisão, por meio da iniciação do público jovem à percepção consciente e distanciada e à discussão crítica das mensagens e de suas próprias relações com elas. O fruto dessa experiência de aplicação de resultados de pesquisa foi o Programa Formação do Telespectador (Belloni 1992), cujo objetivo era levar crianças e adolescentes a decodificar a linguagem televisual, perceber seus truques, compreender suas técnicas de persuasão, desmontar sua magia, praticar o zapping inteligente. O slogan desses materiais resume perfeitamente suas intenções: dominar a linguagem da telinha para não ser dominado por ela (Belloni 1992a, 1995 e 2001a).

    Essa trajetória me conduziu à educação, levando-me a mudar de campo e abandonar os domínios relativamente estáveis, definidos e delimitados de uma ciência social, para ingressar no mundo complexo, multidisciplinar, ao mesmo tempo teórico e prático, em plena mutação, um tanto confuso, das ciências da educação. Nesse novo campo, vivi experiências extremamente enriquecedoras: tornei-me, quase à minha revelia, mais por força das circunstâncias do que por competência técnica ou gosto apurado, especialista das mídias pedagógicas e das tecnologias educacionais na formação de professores. Desde então, venho trabalhando com essas duas temáticas – sociologia da infância e mídia-educação – que, por serem fundamentalmente diferentes no que concerne às metodologias e aos quadros teóricos, não deixam de estar profundamente imbricadas e relacionadas, cruzando-se justamente na formação de educadores.

    Embora continuem a existir fortes resistências ativas no campo da educação, já não se pode negar, nem mesmo nesse campo, a importância das mídias nos processos de socialização e, portanto, na educação das novas gerações. As mídias constituem hoje vetores decisivos do desenvolvimento cultural e educativo; é, pois, imprescindível que estejam integradas aos processos educativos, ao mesmo tempo, como objetos de estudo e como ferramentas pedagógicas. Como gostava de lembrar Mariazinha Fusari, minha inesquecível professora de pedagogia, o educador é antes de tudo um comunicador: todo ato educativo é um ato de comunicação, uma troca, uma relação intersubjetiva, na qual intervêm, como meios, todas as técnicas de comunicação que a humanidade criou, desde a linguagem até a mais recente das tecnologias de informação e comunicação, apelidadas de TICs, termo usado como sinônimo de mídias neste trabalho. Vale repetir aqui uma fórmula que costumava utilizar em minhas experiências de formadora de professores: a razão principal da urgência em integrar as TICs às práticas educacionais é que elas já estão integradas ao cotidiano de alunos, crianças, adolescentes e adultos e que, nesse sentido, a escola acumulou atrasos que é preciso recuperar.

    A crise da escola, que já não pode impor sua autoridade e ainda não conseguiu estabelecer sua nova legitimidade baseada no diálogo e na consideração das novas características da criança e do adolescente, tem muito a ver com as transformações da sociedade, particularmente aquelas relacionadas com o processo de socialização das novas gerações, já que a escola é a principal instituição social especializada no assunto. Além das mudanças radicais ocorridas na família e na intimidade, com a liberação sexual e a recuperação, pelos sistemas de mídias e de produção industrial da cultura, dos ideais da contracultura dos anos 1960, os universos de socialização das novas gerações foram profundamente modificados pelo avanço tecnológico. Durante o século XX, a sociedade foi sendo transformada pelo advento de um novo tipo de máquina, que permite produzir e distribuir industrialmente e em escala planetária um novo tipo de mercadoria abstrata: mensagens audiovisuais. Paradoxalmente, porém, essas mesmas máquinas, ao se tornarem mais amigáveis, leves e fáceis de operar, permitem que todos se tornem produtores desse tipo de mensagem. Em todas as esferas da vida social, no trabalho, no mercado (no sentido lato, de conceito essencial e estruturador de nossas sociedades contemporâneas, e no sentido estrito, de troca de mercadorias), na família, na política, na religião, as novas tecnologias de informação e comunicação foram penetrando, impulsionadas pelo avanço técnico da informática, das telecomunicações, da miniaturização eletrônica. Todavia, essas técnicas são contraditórias, pois, ao mesmo tempo em que invadem o imaginário com suas mensagens pré-fabricadas e direcionadas ao consumo, proporcionam oportunidades incríveis de acesso à informação e ao conhecimento e de comunicação e interações sociais virtuais, possibilitando pensar em cenários positivos.

    Os cenários de mudança que imaginamos e gostaríamos de ajudar a construir, na educação em todos os seus níveis, são fruto de muitos anos de trabalho de pesquisa e reflexão, realizado em parceria com colegas professoras e estudantes e, sobretudo, com crianças e adolescentes, que sempre participaram com entusiasmo e vontade de aprender, conferindo às nossas experiências um clima feliz e colaborativo, que permitiu construir o conhecimento aqui apresentado com base em uma visão otimista e voltada para um futuro melhor. Os dois ensaios que compõem este livro são o resultado, na forma de textos acadêmicos, dessas vivências cheias de criatividade e energia que vivemos com as crianças e nossas equipes de pesquisa. O presente trabalho é a melhor forma de agradecimento a todos e se dirige aos que se interessam pela temática da infância, muito especialmente aos estudantes e pesquisadores, o que explica sua forma de apresentação em dois ensaios mais ou menos independentes e em relatos de pesquisa, bem como pela presença de um anexo metodológico. O primeiro, Infância e mídias no Brasil: Desigualdades determinantes, apresenta uma análise pessoal e impressionista da situação da infância no Brasil, com ênfase nas desigualdades sociais que atingem crianças e adolescentes, inclusive em relação às mídias; o segundo, Relatos de pesquisa: Desigualdades e aprendizagens, apresenta resultados e análises das últimas pesquisas empíricas que realizei com a equipe do grupo de pesquisa Comunic, no Laboratório de Novas Tecnologias (Lantec) do Centro de Educação da UFSC. A insistência na palavra desigualdade deve ser entendida como uma vontade de marcar a importância do conceito para a compreensão da infância e da adolescência no Brasil e para a urgência de imaginar e realizar cenários de mudança.

    Paris, janeiro de 2009

    ENSAIO 1

    INFÂNCIA E MÍDIAS NO BRASIL:

    DESIGUALDADES DETERMINANTES

    1

    INFANS SACER: A CRIANÇA

    COM DIREITOS E O MENOR SEM NADA

    A infância é uma das dimensões da vida social, uma categoria sociológica com base na qual se podem perceber com muita clareza duas características marcantes da sociedade brasileira: a desigualdade e a exclusão. O título deste ensaio pretende chamar a atenção para esse fenômeno que consideramos determinante para a compreensão da situação social da infância brasileira: a exclusão de uma grande parte de crianças e adolescentes dos benefícios sociais mais fundamentais, inclusive aqueles legalmente garantidos na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – proteção, provisão, acesso à educação e à comunicação de qualidade (o que, teoricamente, asseguraria o terceiro p, de participação).[3] Tal situação gera mecanismos de desigualdade que se acumulam, autorreproduzem e reforçam, à medida que os sujeitos infantis e juvenis avançam em seus processos de socialização. Assim, quando a criança pobre chega à escola, aos 6 ou 7 anos, já traz consigo as marcas de sua condição social de pobreza, desigualdade ou exclusão. Mas essas marcas ainda não são indeléveis e a escola teria possibilidades de integrar essa criança à cultura letrada e ao universo da informação escrita e eletrônica e do saber acumulado pela humanidade, assegurando-lhe assim oportunidades de integração à cidadania.

    À medida que a criança avança em sua trajetória escolar, ela vai, em muitos casos, perdendo as possibilidades de integração e as marcas de sua exclusão por dentro vão ficando mais profundas, as desigualdades vão se agravando. Quando chegam à adolescência, muitas dessas crianças, escolarizadas há anos, mas não alfabetizadas plenamente e, portanto, excluídas do letramento, estão de tal modo traumatizadas por um processo escolar de fracasso e pela exclusão social que têm poucas possibilidades de assimilar qualquer coisa que lembre a escola e seu fracasso. Esses jovens (que estudamos nas experiências relatadas no capítulo Desigualdades do Ensaio 2) chegam ao limiar da vida adulta sem as condições psicológicas e socioculturais mínimas para a vida em sociedade, sem a devida preparação profissional, por exemplo, mas não somente. São os excluídos por dentro (Bourdieu 1993), muitas vezes ignorados pelos professores, que não sabem como lidar com esses alunos. Sua presença é às vezes percebida pelos professores como signo do fracasso da escola (e, portanto, põe em questão seu trabalho) e pelos colegas como diferente, incongruente, pois dessas crianças não se exige o mesmo que de todas as outras da mesma classe.

    Evidentemente, a escola não é a única responsável por esse processo de exclusão progressiva, mas é nela que ele ocorre e é dela que os adolescentes fogem sem diploma, sem saber ler e escrever corretamente, sem nenhuma preparação para construir sua cidadania e enfrentar a vida e o mercado de trabalho. São essas crianças e adolescentes que vão formar os exércitos miseráveis que envergonham as ruas de nossas cidades, homens, mulheres e jovens sem nada, sem direitos, sem garantias constitucionais, sem a informação mínima, sem aquele saber básico do cidadão que conhece seus direitos e sabe como exercê-los. São esses indivíduos, seres humanos despojados de humanidade, exemplos da vida nua, que vão constituir o objeto mais característico do biopoder que administra sem piedade os corpos necessários à produção (econômica, mas também cultural e social) da sociedade.

    Eles formam uma espécie de lumpemproletariado pós-moderno, considerados pelos especialistas como excluídos desnecessários (Nascimento 2003a), excluídos do próprio sistema de produção e não apenas da cultura, ao contrário dos excluídos necessários, índios, negros, mulheres e crianças que trabalhavam (e trabalham até hoje em alguns bolsões de miséria e atraso) diretamente na produção, muitas vezes em condições penosas, mas como força de trabalho imprescindível, excluída dos benefícios, mas não do sistema. Nascimento, em sua análise da exclusão no Brasil como consequência da globalização econômica, distingue desigualdade social de pobreza e exclusão, segundo ele, três termos estruturantes do tema das iniquidades sociais. Para esse autor, desigualdade refere-se à distribuição diferenciada das riquezas materiais e simbólicas produzidas por uma determinada sociedade e apropriadas por seus participantes e pobreza tem a ver com a insuficiência de recursos de determinados grupos sociais para aceder a uma vida digna (condições mínimas de suprir as necessidades básicas). Todas essas condições e definições variam, evidentemente, segundo a sociedade e o momento histórico. Já a exclusão é definida com relação à modernidade tardia, ao capitalismo globalizado:

    Desigualdade e pobreza são conceitos diferentes entre si, mas igualmente distintos do de exclusão social. O conceito de exclusão social está mais próximo, como oposição, do de coesão social, ou, como sinal de ruptura, do de vínculo social. Por similitude, encontra-se próximo também do conceito de estigma e mesmo, embora menos, do de desvio. Neste caso, entre outras, a diferença reside no fato de que o excluído não necessita cometer nenhum ato de transgressão, inversamente ao desviante e à semelhança dos que sofrem discriminação pura e simples. A condição de excluído lhe é imputada do exterior, sem que para tal tenha contribuído direta ou indiretamente. (Ibid., p. 59; grifos meus)

    Segundo Foucault, o triunfo do capitalismo não teria sido possível sem o controle disciplinar realizado pelo novo biopoder, que criou os corpos dóceis de que ele tinha necessidade (Foucault 1976, p. 185). Antes de Foucault, Hannah Arendt (1988) havia analisado o processo que leva o homo laborans e a vida biológica a tornarem-se centrais na cena política da modernidade, apontando a primazia da vida natural sobre a ação política, razão, segundo Arendt, da transformação e do declínio do espaço público nas sociedades modernas. O processo pelo qual, na época moderna, o controle da vida natural começa a ser integrado aos mecanismos e aos cálculos do poder de Estado transforma a política em biopolítica. Ao analisar a passagem de um Estado territorial a um Estado de população, Foucault ressalta o crescimento da importância da vida biológica e da saúde da nação (até então consideradas como fora da política, pertencendo ao espaço privado e não ao espaço público) como problemas de poder político que, ao assim se transformar em governo dos homens, tenderia a gerar uma espécie de animalização do homem, efetuada por técnicas políticas sofisticadas, por novas possibilidades das ciências humanas e sociais.

    Agamben (1997) nos faz notar com muita propriedade que nem Foucault nem Arendt vão ao fundo da questão ou tiram todas as conclusões lógicas de suas análises. Segundo ele, Arendt não estabelece uma relação entre a crescente importância política da vida biológica e suas precedentes análises do totalitarismo (às quais faltaria uma perspectiva biopolítica). Foucault, por sua vez, nunca situou suas pesquisas nos locais da biopolítica moderna por excelência, como os campos de concentração ou a estrutura dos grandes Estados totalitários do século XX. O filósofo italiano pretende representar uma continuidade dessas reflexões, buscando ir além e desenvolver todas as implicações do conceito de biopolítica no mundo ocidental contemporâneo, para chegar à conclusão de que a politização da vida nua constitui o evento decisivo da modernidade e marca uma transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico (ibid., p. 12). Tal fenômeno se revela na integração crescente pelo Estado de técnicas de individualização subjetivas e de procedimentos de totalização objetivos.

    O poder sempre implicou aspectos subjetivos, como já havia mostrado La Boétie (1983), com seu célebre conceito de servidão voluntária, mas hoje, diante do poder midiático-espetacular, que transforma o espaço público em programa de televisão, essa intrincada relação de técnicas políticas e técnicas subjetivas se desloca para o centro da esfera pública, pondo em questão valores e crenças democráticas. No contexto das sociedades contemporâneas, para melhor compreender a infância no Brasil, é preciso considerar o lugar do homem e do cidadão no espaço público atual, especialmente nas sociedades periféricas do capitalismo globalizado, onde o conceito de vida nua vem iluminar o que parece ser cada vez mais claramente a característica principal da política ocidental: a exclusão. Nascimento define tipos diferentes de exclusão social e caracteriza a exclusão típica do fim do século XX como uma nova exclusão, que vai além das anteriores e nega aos excluídos o próprio direito a ter direitos:

    Neste caso, o não reconhecimento vai além da negação ou recusa de direitos. Insere-se num processo de – usando uma frase famosa de Hannah Arendt – recusa ao espaço da obtenção de direitos. Estes grupos sociais – moradores de rua, índios ou modernômades – passam a não ter direito a ter direitos. Sem serem reconhecidos como semelhantes, a tendência é expulsá-los da órbita da humanidade. Passam, assim, a ser objeto de extermínio, como os meninos de rua na Guatemala ou no Rio de Janeiro, os mendigos ou índios em Brasília e outras cidades brasileiras. (Nascimento 2003, p. 62; grifo meu)

    Os novos excluídos das sociedades centrais e periféricas do capitalismo globalizado seriam novos espécimes de homo sacer, cuja vida – nua – pode ser retirada impunemente. São indivíduos definidos negativamente, por aquilo que não têm; são os sem – sem-teto, sem-trabalho, sem-domicílio fixo, sem-documentos –, cujos vínculos sociais e familiares foram rompidos. Fazem parte desse contingente de pessoas banidas das sociedades contemporâneas, por inúteis e potencialmente perigosos ou ameaçadores, muitas crianças e adolescentes, frágeis soldados dessa guerra civil disfarçada, pronta a rebentar em qualquer esquina das grandes cidades da América Latina. Problema que preocupa pessoas de boa-vontade em todo o mundo, a situação da criança e do jovem pobres é um desafio não apenas para o Brasil, mas para todos. Trata-se de um fenômeno que corresponde à lógica do capitalismo mundializado e de suas representações difundidas em todo o mundo, principalmente pelos produtos da indústria cultural.

    Para Agamben, "a vida nua tem, na política ocidental, este privilégio singular de ser aquilo cuja exclusão funda a cidade (polis, cité) dos homens" (1997, p. 15). A vida nua, conceito inspirado do antigo direito romano, é aqui definida como a vida do homo sacer, homem sagrado, vida que pode ser tirada impunemente e que é insacrificável. Agamben quer mostrar a função essencial desse conceito na política moderna:

    Uma obscura figura do direito romano arcaico, em que a vida humana é incluída na ordem jurídica unicamente na forma de sua exclusão (isto é, na sua possibilidade de ser eliminada sem sanção), dá assim a chave graça à qual não somente os textos sagrados da soberania, mas, de modo mais geral, os próprios códigos do poder político podem desvelar seus arcanos. (Ibid., p. 17)

    A dimensão da vida nua constitui, para Agamben, o referencial da violência soberana, típica de nossas sociedades e que significa uma vida exposta a uma violência sem precedentes, mas de nenhuma forma sacrificial (ligada à dimensão sagrada), ao contrário, precisamente nas formas mais profanas e mais triviais. Essa dimensão em que o extermínio ocorre não é nem a religião nem o direito, é justamente a biopolítica, para a qual já não existe a figura predeterminada do homem sagrado, "talvez porque sejamos todos virtualmente homines sacri" (ibid., p. 126). A banalização da violência de todos os tipos que vemos ocorrer sob nossos olhos nas ruas das grandes cidades, multiplicada e espetacularizada pelas mídias de massa e típica das sociedades de risco (Beck 2001), atinge em primeiro lugar crianças e adolescentes transformados em seres sagrados, porque banidos, sem direitos, invisíveis, podendo desaparecer, ser eliminados impunemente.

    As concepções de Agamben, em que pese seu caráter abstrato e universal, ou talvez justamente por isso, cabem como uma luva nas descrições das diferentes situações de exclusão e miséria de certos grupos sociais no Brasil, estruturalmente excluídos do desenvolvimento, banidos da sociedade: pessoas sem direitos, moradores de rua, trabalhadores boias-frias, mulheres e meninas destinadas à prostituição, crianças vítimas da pedofilia, da violência e do abuso sexual, meninos e meninas de rua, e mesmo os milhões de trabalhadores moradores das favelas, cercados por bandidos e policiais constantemente em guerra, para citar apenas alguns desses grupos.

    A rigor, trata-se de uma nova categoria social que, sendo desnecessária, é passível de, no limite, ser eliminada fisicamente. São os inúteis e perigosos. A expressão exclusão é de grande valor simbólico e, sem dúvida, chama a atenção para um fenômeno que hoje se apresenta como efeito colateral indesejado da modernidade, manifestando-se até em contextos onde não era de se esperar: os países com alto padrão médio de vida, possuidores de amplo sistema de proteção social e de sistemas econômicos avançados. (Bursztyn 2003, p. 39; grifos meus)

    A exclusão é o ponto de chegada do caminho que vai da pobreza à miséria, fazendo parte da lógica da globalização econômica que aplica a toda e qualquer interação social uma mesma racionalidade instrumental, característica da produção econômica. Nos países ricos, a exclusão aparece como uma invasão da sociedade pelas misérias de um mundo distante, periférico, que se manifestam virtualmente nas imagens midiáticas e realmente em formas diferentes de sociabilidade, trazidas pelas populações imigrantes. Em nossas sociedades periféricas da América Latina, criam-se bolsões de miséria, territórios de exclusão, resultado de um processo de espacialização da exclusão, numa lógica de segregação territorial da miséria, com a criação de guetos urbanos, nos quais a população é refém das lutas entre polícia e bandidos e onde o Estado e seus benefícios e serviços (educação, saúde, proteção, segurança) não conseguem entrar. Para Bursztyn, "a era do liberalismo produziu uma massa de novos pobres e miseráveis mesmo nos países ricos. Assim, diferentemente da utopia distributiva, chegou-se a um mundo de exclusão crescente" (ibid., p. 50; grifo meu).

    Referindo-se ao estatuto incerto dos prisioneiros afegãos e árabes na famosa base militar americana em solo cubano, Guantánamo, o pensador esloveno Zizek (2005) tenta explicá-lo pela distinção, expressa por Agamben, entre cidadãos de pleno direito e o homo sacer que, vivo ou morto, não faz parte da comunidade política como ser humano. Quando os terroristas são qualificados de combatentes ilegais, isso não significa apenas que estão fora da lei, como qualquer criminoso: quando um cidadão comete um crime, ele continua sendo um cidadão com direitos. A distinção entre criminoso e não criminoso não abrange a distinção entre o cidadão de direito e o não cidadão, por exemplo, os imigrantes ilegais. Porém, esses excluídos não são apenas os terroristas ou os imigrantes ilegais em todos os países ricos (e menos ricos, como o Brasil), são também todos aqueles desvalidos do chamado terceiro mundo, vítimas de catástrofes naturais (imigrantes ecológicos, cada vez mais numerosos) ou sociais, de guerras entre tribos africanas ou entre facções rivais do tráfico de drogas, e que dependem da ajuda humanitária. São os homens sagrados do mundo globalizado de hoje, objeto privilegiado daquilo que Foucault foi o primeiro a definir como biopolítica. Ou seja, são todos aqueles seres humanos que perderam a humanidade e os direitos que dela decorrem e que são objeto das atenções condescendentes de grupos bem-intencionados dos países ricos, e que fazem parte, embora de modo contraditório (como dejeto humano a ser eliminado ou, pelo menos, escondido), do sistema global de biopolítica.

    O exemplo extremo da situação de perda da humanidade é o campo de concentração, aberração histórica do século XX, de triste memória, espaço carcerário onde a população era totalmente reduzida ao estatuto de objeto de uma biopolítica tanto mais perversa e cruel porque racional e planejada. A lista dos exemplos contemporâneos de figuras de homo sacer é, todavia, infelizmente, bem mais ampla e variada, segundo Zizek: Os sem-documentos na França, os habitantes das favelas no Brasil, os habitantes dos guetos afro-americanos nos Estados Unidos etc. (ibid., p. 139). Aos quais podemos acrescentar as mulheres e crianças do Afeganistão e do Iraque, as populações ameaçadas da África e de outras regiões do mundo e, de modo geral, as crianças e os adolescentes pobres dos países periféricos, vítimas de todo tipo de violência, do trabalho penoso ao abuso sexual. De uma maneira ou de outra, essas populações são beneficiárias da ajuda humanitária encarnada no trabalho das mais diversas igrejas e ONGs. Parece claro, então, que o que define essas pessoas privadas dos direitos mais elementares do ser humano é a exclusão daqueles direitos que as tornam objetos preferenciais da biopolítica e sujeitos do biopoder. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada pela revolução francesa, mas já presente na Constituição americana, refere-se ao homem e ao cidadão, deixando implícita uma distinção entre os dois. Haveria, então, direitos que se aplicariam a todos os membros da humanidade (mesmo ao homo sacer) e direitos mais restritos, que se aplicariam aos cidadãos, legalmente reconhecidos como tal? Ou então, pergunta-se Zizek (como Agamben), talvez tenhamos de tirar uma conclusão ainda mais radical e considerar a possibilidade de que, no nível mais elementar, sejamos todos excluídos, objetos generalizados de uma biopolítica mundializada, "e que o possível político e o direito do cidadão nos são concedidos apenas num segundo nível, em conformidade com as atenções estratégicas do biopoder?

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