Haitianos no Brasil e a Sua Relação Com a Comunicação, o Consumo e o Trabalho
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Sobre este e-book
Escrita por Cristóvão Domingos de Almeida, a obra Haitianos no Brasil e sua relação com a comunicação, o consumo e o trabalho, novo lançamento da PAULUS Editora, tem o objetivo de analisar e compreender um dos fenômenos recentes nos processos migratórios: a vinda de haitianos para o Brasil, estabelecendo conexão com o consumo de mídia como base informacional para o acesso ao mundo do trabalho.
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Haitianos no Brasil e a Sua Relação Com a Comunicação, o Consumo e o Trabalho - Cristóvão Domingos de Almeida
1. INTRODUÇÃO
Este estudo tem como objetivo analisar e compreender um dos fenômenos recentes nos processos migratórios: a vinda de haitianos para o Brasil, estabelecendo conexão com o consumo de mídia como base informacional para o acesso ao mundo do trabalho. A presença maciça de haitianos no Brasil configura uma nova realidade no fluxo migratório, tanto no aspecto sociocultural, econômico e político quanto nas dimensões das práticas comunicacionais e do consumo simbólico.
Em janeiro de 2010, um terremoto destruiu a capital do Haiti e algumas cidades do entorno, deixando muitos mortos, feridos e desabrigados. Os sobreviventes passaram a viver em barracas de acampamentos, sem infraestrutura, em meio à falta de alimento e água potável. As péssimas condições de vida nos arredores da capital Porto Príncipe provocaram um dos maiores fenômenos migratórios internos e externos.
Diante desse cenário de instabilidade e vulnerabilidade, uma quantia considerável da população haitiana iniciou o processo de travessia, com atenção aos países do Sul, em função da restrição e do controle migratório de países do Norte. Saíram em busca de novas oportunidades: trabalho, estudo, moradia e qualidade de vida. Os países que ganharam atenção para o ingresso dos haitianos foram: República Dominicana, Cuba e Brasil, uma vez que o acesso aos EUA, local de preferência dos haitianos, foi limitado.
Diante de algumas posturas de acolhida que receberam dos militares brasileiros em missão de paz no Haiti, mesmo que ainda hoje os ativistas populares os critiquem pela ocupação, de certo modo, as tropas militares contribuíram com a construção do imaginário de que no Brasil, por ser um país miscigenado, os haitianos teriam facilidade de ingresso, ampla aceitação, oportunidades de trabalho e ausência de discriminação étnico-racial.
O Brasil chamou a atenção dos haitianos por conta do desempenho econômico. Também porque sediaria dois grandes eventos de repercussão internacional: Copa do Mundo e Jogos Olímpicos. Esses dois cenários se uniram à narrativa do futebol, dos enquadramentos das imagens divulgadas nas telenovelas, associados à alegria do povo brasileiro, acolhedor, que reconhece o outro e aberto às interações sociais.
Essas narrativas contribuíram para que os haitianos olhassem o Brasil não como um país de passagem, mas de possibilidades de convívio duradouro ou transitório (SAYAD, 1998). Diante disso, é importante esclarecer que o fluxo migratório no Haiti ocupa um lugar de destaque na vida das pessoas, isso quer dizer que a diáspora haitiana é uma realidade histórica (HANDERSON, 2015).
Nessa conjuntura, as autoridades brasileiras também tiveram alguns gestos de acolhida. Em visita oficial ao país caribenho, em 2004, o presidente Lula demonstrou solidariedade, fez o pedido à comunidade internacional que perdoasse a dívida externa do Haiti e mostrou interesse em acolher os imigrantes. O gesto de compromisso social foi emitido também pela presidenta Dilma com a publicação, em 2012, da resolução do visto humanitário. Não eliminou a figura dos atravessadores por completo, mas foi um passo importante para a conquista do visto mais humanizado. Tanto é que os haitianos, até 2012, ingressaram no país pela região Norte: cidade de Brasileia, no estado do Acre e cidade de Tabatinga, no estado do Amazonas. A partir de 2013, passaram a chegar diretamente a São Paulo.
Neste estudo, centralizam-se esforços para compreender a relação dos haitianos, em solo brasileiro, com a comunicação, o consumo e o trabalho. Compreendendo a comunicação como um espaço de troca, partilha, compartilhamento das ações e interações entre as pessoas. França (2001) afirma que a comunicação compreende a presença de interlocutores que se envolvem nos processos de produção, interpretação e socialização dos sentidos.
Wolton (2006) nos instiga a pensar a comunicação enquanto ser, fazer e agir. Esse movimento se inicia com a comunicação humana, ou seja, comunicar é construir e manter vínculos. Quem comunica partilha algo com alguém, num processo dialógico e de reciprocidade. Afasta-se aqui a ideia de o emissor ser soberano e o receptor passivo. Deve haver ação, trocas e compartilhamento das informações. Nesse sentido, a comunicação se dá quando emissor e receptor se sentem parte do processo e estão no mesmo patamar de igualdade, nem mais, nem menos. De modo que não há comunicação sem o respeito e o compromisso com o outro.
Essa abordagem parte do entendimento de que a comunicação é condição normativa e constitutiva da ação humana (WOLTON, 2006). Antes de ser tecnológica, a comunicação face a face, e mesmo pública e coletiva, possibilita e potencializa os avanços necessários à evolução da pessoa em todas as suas dimensões, desde a ordem material até a simbólica.
Nesse sentido, mesmo reconhecendo a complexidade do encontro entre comunicação e consumo, na sociedade contemporânea, era da comunicação e do consumo, há íntima relação entre os conceitos, não na perspectiva de satisfazer as necessidades biológicas, mas na capacidade de pensar criticamente a realidade e as experiências cotidianas dos sujeitos inseridos na sociedade em rede global (CASTELLS, 2015), tendo à sua disposição os instrumentos e as plataformas de mídia.
A comunicação e o consumo podem servir de espaço de mediação social, processo colaborativo que ajuda a orientar as trocas, os encontros, a socialização e o pertencimento. Ou seja, a proposta é contribuir com os sujeitos para serem capazes de interpretar e ressignificar as informações, os conteúdos, os produtos e as mensagens. Para isso, cabe aos sujeitos conhecerem, se conscientizarem e participarem ativamente do processo. Caso contrário, entra-se na dimensão da comunicação e do consumo do descarte, do transitório e do não durável.
Ao enfatizar a comunicação e o consumo enquanto base de sustentação das relações sociais e espaço para viabilizar a divulgação de produtos, serviços e bens materiais e simbólicos, eles se conectam, de igual modo, com o trabalho enquanto atividade central na vida das pessoas. Para os imigrantes, por exemplo, a conquista do espaço de trabalho e a geração de renda são as principais motivações para o deslocamento. A força vital do trabalho gera inclusão social, possibilita usufruir de conhecimentos, gerando aprendizado, satisfação pessoal e coletiva, mantendo, assim, os contatos presenciais ou digitais.
Em uma perspectiva histórica, pode-se dizer que o sentido, o valor e a importância do trabalho nem sempre foram os mesmos ao longo da tradição ocidental. Em específico, identificam-se três momentos que ajudam a explicar sua situação na atualidade:
Num primeiro momento, houve um período em que o trabalho não possuía uma grande relevância na construção da subjetividade. Isso ocorreu pelo menos ao longo da Antiguidade, passando pela Idade Média até o Renascimento. Nesse período, o trabalho não desfrutava de um status prestigiado em si mesmo. Ele estava à margem em relação a valores sociais considerados centrais.
Num segundo momento, na sociedade industrial, o sentido e o valor do trabalho são redefinidos. O trabalho se apresenta como fonte de valor econômico. Isso fez com que, durante esse período, a atividade laboral ganhasse status de valores socioculturais e políticos.
Num terceiro momento, o trabalho é criticado como única fonte do valor econômico, uma vez que os trabalhadores são controlados de outras formas e em outros espaços, não apenas pelas empresas. Dessa forma, o trabalho ainda é uma das principais vias de acesso à renda e de organização de rotinas produtivas, mas também os trabalhadores, nos dias atuais, vivem constante insegurança no mundo do trabalho, exercendo as atividades em condição de precariado (STANDING, 2015) e na precarização (ANTUNES, 2013). Na expressão de Baitello Junior (2014), quanto mais se trabalha, menos vale o próprio trabalho.
Na construção desta pesquisa, realizamos entrevistas com dezenove haitianos e observação in loco na cidade de São Paulo, na Missão Paz, durante o segundo semestre de 2016 e o primeiro semestre de 2017. Trata-se de entrevistas semidirigidas para compreender a relação dos haitianos com a comunicação, o consumo e o trabalho, enquanto oportunidade de recomeço da situação de vida em solo brasileiro. Evidenciamos que os haitianos utilizam a comunicação e o consumo para fortalecer a rede migratória e solidária. Entende-se que os usos, mais especificamente do celular e das plataformas digitais, são espaços de valorização da informação (FLUSSER, 1985), que revelam as potencialidades e se articulam em forma de resistências.
Por fim, a proposta de compreender o fluxo migratório dos haitianos se mostra útil por oferecer abertura conceitual e analítica de forma ampla e articulada. Por isso, a reflexão está dividida em duas partes: a primeira está centrada no desafio de realizar a conexão entre comunicação, consumo e trabalho, que, no fundo, implica estabelecer as articulações em busca de ações que incluam, transformem e gerem vínculos e não usem os sujeitos como descartes. Na segunda parte, contextualiza-se o fenômeno migratório haitiano, as travessias e seus desafios, e são trazidos à tona os relatos dos sujeitos, suas lutas, reconhecendo a força da rede migratória e solidária, a partir do informacional e do comunicacional, bem como o compromisso do imigrante com o viver e a vida de quem está perto ou longe, mostrando que, no processo migratório, as distâncias também são aproximadas através da resistência e do afeto.
2. COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE DE CONSUMO
A comunicação [1] é conceituada por diversos autores, entre eles Thompson (١٩٩٨), Bordenave (٢٠٠٦), Freire (١٩٩٧) e Duarte (٢٠٠٣), como sendo uma das necessidades básicas nas relações humanas. Para Thompson (١٩٩٨, p. ٣٦), a comunicação [...] serve para que as pessoas se relacionem entre si, transformando-se mutuamente
. Estabelecer relações a partir da comunicação é estar ciente da importância da prática comunicacional na construção do sujeito na sociedade. Nessa perspectiva, a comunicação pode ser compreendida como um processo que expande as trocas de experiências e que promove o consumo de objetos, bens e informações (SILVERSTONE, 2011).
Desse modo, a comunicação se relaciona com as grandes transformações que experimentamos na contemporaneidade. Para Baccega (2015), a inter-relação entre comunicação e a sociedade de consumo é vetor central da atualidade. Ariztía (2016, p. 17) complementa essa ideia ao afirmar que a expansão do consumo mostra-se geralmente como o principal indicador da expansão dos mercados na vida social
.
É nesse espaço de interações, escolhas e diálogo que pode ser compreendido o argumento de Thompson (1998, p. 36):
[...] sem a comunicação, cada pessoa seria um mundo fechado a si mesmo. Pela comunicação as pessoas compartilham experiências, ideias e sentimentos. Ao se relacionarem como seres interdependentes, influenciam-se mutuamente e, juntas, modificam a realidade onde estão inseridas.
É importante superar a noção de uma comunicação determinista