Fernando da Gata: e outros contos
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Fernando da Gata - Roberto de Castro Neves
Copyright © 2016 by Roberto de Castro Neves
Editora: Lucia Koury
Capa e projeto gráfico: Elisa Janowitzer
Revisão: Renata Mattos
Produção de ebook: S2 Books
Dados internacionais para catalogação na publicação (CIP)
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
N427e
Neves, Roberto de Castro
Fernando da Gata / Roberto de Castro Neves. - Rio de Janeiro : Outras Letras, 2015.
180 páginas. : 23 cm
ISBN 978-85-8488-011-9
1. Conto brasileiro. I. Título.
12-2929. CDD: 869.93
Todos os direitos desta edição estão reservados à
Outras Letras Editora Ltda.
Rio de Janeiro | RJ
Tel./Fax: 21 22676627
outrasletras@outrasletras.com.br
Associada à Libre – Liga Brasileira de Editoras
À Doris, companheira.
Aos
Bel, José Roberto, Gui, João Pedro e Duda,
Mi, Dado, Letícia e Rafa,
Cissa, Ipi, Pedro, Lucas e Miguel,
Monica, Felipe e Valentina,
Cecília, Bruno, Dudu e Mariana.
Filhos, enteados, noras, genros e netos.
Sumário
Capa
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
Assim teria falado Agatha Christie
O doador e o doado
Jennifer Calder
Reencontro
Traídos
Memória
Paciente terminal
Mudanças
Corno manso
Fernando da gata
Oitentonas
Caçador de bundas
Família
Terceira idade, quase quarta
Escolhas
Swing
Festa de Natal
Raul
Enfermeira da noite
Kid Perfume
Memórias de um moribundo
Nas nuvens
Confidências
Cabelo molhado
Short cuts
Assim teria falado
Agatha Christie
Famoso industrial é assassinado ao sair de um restaurante na Zona Sul da cidade. Seis tiros no peito. Morreu na hora. A polícia acredita ter sido um crime encomendado. São muitos os suspeitos. O industrial tem fama de filho da puta. Muita gente gostaria de vê-lo morto: ex-mulheres, herdeiros, parentes, filhos não-reconhecidos, sócios, concorrentes, empregados.
Divorciou-se quatro vezes. Dois filhos do primeiro casamento, os gêmeos Flávio e Fúlvio, ambos morando nos Estados Unidos com cidadania americana. O industrial vivia em um enorme e luxuoso apartamento, rodeado de quadros de grandes pintores e com um séquito de empregados (mordomo, cozinheira, faxineiros, motorista etc.). Ouvia Mahler todas as noites enquanto degustava doses de whisky Gold Label.
Descobriu que tinha uma doença terminal. Os médicos foram claros: no máximo, um ano de vida, o fim seria triste e doloroso.
Ao saber que sua morte se aproximava e que seus últimos dias seriam terríveis, pensou em suicidar-se. Analisou as várias alternativas, todas foram descartadas por uma razão ou por outra. No fundo, faltou-lhe coragem de dar fim à própria vida.
Decidiu, então, contratar alguém para matá-lo.
Para encomendar a própria morte, passou a frequentar o baixo mundo. Precisava encontrar uma organização que empregasse
matadores de aluguel. Na procura, usou boné, óculos escuros e um falso bigode.
Encapuzado, foi levado a um chefe de quadrilha. Encomendou o crime sem dizer que o alvo era ele, embora tenha dado o seu próprio nome. Forneceu as características da vítima (dele mesmo), retrato, hábitos. Disse que não queria saber como nem quando ocorreria a execução. O chefe disse quanto custaria o serviço: vinte mil dólares. Dez mil na contratação; os outros dez após a execução. Proposta aceita.
Por mera curiosidade, questão de estatística
, o chefe da quadrilha quis saber a motivação da encomenda: vingança, traição, mulher, negócios? O industrial já estava preparado para a pergunta: Ele é meu sócio e está me roubando
.
O industrial informou que a futura vítima costumava sair de casa, todos os dias, no endereço tal, às sete horas, sentado no banco de trás de um carro, modelo tal, placa tal, com motorista. Deu outras informações da rotina da vítima, ou seja, de sua própria rotina.
O chefe do bando falou orgulhoso do seu trabalho: Nunca falhamos
. Não deixamos pistas
. Sigilo total
. Nossos clientes são principalmente mulheres traídas e executivos cornos
, acrescentou, o que, felizmente, não é o seu caso", ressalvou.
O contratante pediu que a execução fosse realizada somente depois de dois meses. Alegou que precisava desse tempo para resolver algumas pendências com a vítima.
Os dez mil dólares referentes à entrada deveriam vir em nota de cem dólares em um envelope de papel pardo lacrado. Dentro de dois dias, às dezessete horas, o contratante deveria estar na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Sete de Setembro usando uma camisa do Flamengo. O envelope seria entregue a alguém que se aproximaria do contratante dizendo a seguinte senha: O escorpião está faminto
.
Tão logo o dinheiro estivesse conferido, ele receberia uma mensagem SMS com um simples escorpião satisfeito
. Essa mensagem significaria que a organização começaria a agir e que, após dois meses, a execução seria realizada.
No laptop, numa espécie de diário, o industrial comentou sobre discussões acaloradas com uma ex-mulher. Ela disse que vai me matar caso eu não faça o que ela quer
– registrou no diário. E jamais farei o que ela quer
– concluiu. Idem com relação ao sócio. Ele me ameaçou se eu o denunciasse pelo desfalque na empresa e por lavagem de dinheiro
– registrou. Enfim, informações que poderiam servir à polícia e que atazanassem a vida de ambos, ex-mulher e sócio. De caso pensado, não deixou testamento. Eles que se virem
, pensou. Divertiu-se ao imaginar a confusão que seria a disputa por sua imensa fortuna. Filhos, ex-mulheres, credores.
Nesse ínterim, o industrial recebeu boas notícias do médico. Seu organismo estaria reagindo muito bem ao tratamento. Portanto, ele, médico, aumentava a expectativa de vida do paciente. Certamente mais que um ano, talvez dois ou três. Enquanto isso, a medicina faria avanços, quem sabe, em função das novas drogas, e ele poderia viver muito mais tempo, especulou o médico.
O industrial ficou felicíssimo com a notícia. Tentou entrar em contato com o bando para desfazer o acordo. Ou melhor, pagaria os restantes dez mil dólares da combinação e dispensaria a execução do serviço. Razão para ter mudado de ideia? Inventaria ter feito vantajosas negociações com a futura vítima. Agora seria necessário que ele, a futura vítima, vivesse para cumprir a sua parte na negociação.
As tentativas para chegar ao bando fracassaram. O industrial circulou pela noite nos lugares onde poderia obter informações da quadrilha. Em vão.
Passaram-se os dois meses.
Pensou em substituir a figura do homem no banco de trás do carro, usando um boneco. Depois, pensou em trocar de posição com o moto-rista. Botou o quepe e dirigiu o automóvel. O motorista, sentado no banco traseiro, traduziu a troca como sendo uma fantasia do patrão. O truque foi usado por uns dias, mas nada aconteceu. O industrial se lembrou de ter esquecido de informar aos bandidos que o carro era blindado. Será que isso dificultaria a execução? Teriam os bandidos desistido?
Mesmo assim, por precaução, mudou-se para um hotel, trocou de automóvel, deixou a barba crescer, passou a usar uma peruca que escondia a calvície da foto deixada com os bandidos. Visitou os gêmeos, Flávio e Fúlvio, nos Estados Unidos, onde permaneceu por quatro semanas. Contou pra eles a encrenca toda: a doença, o desespero, a dificuldade de dar cabo à própria vida, a terceirização do suicídio, o arrependimento, a impossibilidade de desfazer a contratação.
Suas noites não eram tranquilas. Certa vez, sonhou que estava almoçando numa churrascaria quando o garçom que servia a carne se aproximava dele por trás e cravava em suas costas os enormes espetos. Seu sangue esguichava por cima das mesas e escorria pelo chão da churrascaria. Despertou do pesadelo encharcado de suor. Não dormiu mais. Nessa noite e em muitas outras. Insônia constante. Medo de que o pesadelo voltasse.
Cinco meses depois de ter contratado a sua morte, já desconfiado de ter sido enganado pelos matadores de aluguel – e feliz da vida por ter sido trapaceado – no fim da noite, ao sair de um restaurante com a namorada, o industrial foi morto com seis tiros no peito.
O assassinato teve grande repercussão na mídia. O industrial era super conhecido. Matérias especularam sobre o tamanho de seu patrimônio. Meia página de jornal exibiu anúncios de sua morte e convites para a cerimônia de sepultamento.
Ao enterro, compareceram celebridades de várias áreas: industriais, barões do comércio, banqueiros, políticos, artistas, socialites, jornalistas. E, claro, os curiosos. Os dois filhos chegaram a tempo do exterior e representaram a família.
As circunstâncias do crime e a quantidade de suspeitos suscitavam várias hipóteses.
Como planejado pelo morto, as informações no seu laptop serviram de guia para a investigação. Uma ex-mulher, figura da alta sociedade carioca, citada no diário
, era a principal suspeita. Duramente interrogada, ela negou não só a autoria do crime como as ameaças mencionadas no texto. Um policial – que pediu para não se identificar – afirmou que o depoimento da mulher não convenceu. No dia seguinte, sua foto, de óculos escuros, saindo da delegacia em companhia de seu advogado, estava em todos os jornais e na televisão. O sócio – que, segundo o texto, estaria ameaçando o morto caso este o denunciasse por estar supostamente envolvido em operações ilegais – também foi chamado a depor. Além de continuar como suspeito no caso, complicou-se ao explicar as tais operações ilegais
. Um processo à parte foi aberto contra ele.
Outras pessoas foram ouvidas, incluindo todas as ex-mulheres. O motorista contou a bizarra troca de posições no carro. Essa informação fortaleceu a convicção de que o industrial suspeitava de um atentado contra ele.
Uma carta anônima sugeria que Fábio Noronha, um dos filhos que o industrial se recusou a reconhecer, fosse ouvido. A sugestão foi atendida.
Fábio compareceu à delegacia junto com seu advogado. Nervoso, tenso, suando em bicas. Mal a inquirição começou, Fábio desabou em prantos, repetindo o bordão ele era o meu pai, ele era o meu pai...
. Segundo a polícia, sem muita pressão, Fábio acabou confessando a autoria do crime.
Mais tarde, soube-se que a autora da carta-denúncia tinha sido Madalena, ex-mulher de Fábio, por ele abandonada. Na polícia, Madalena contou que o ex-marido era fruto de uma relação fugaz do industrial com uma cantora de rádio e que Fábio sempre manifestara o desejo de matar o pai por ele não o reconhecer como filho.
O advogado de Fábio conseguiu um habeas corpus. Alegou que o acusado sofria das faculdades mentais
. Fábio aguardaria o julgamento em liberdade. Dias depois, segundo a polícia, Fábio se suicidou, jogando-se da janela do apartamento onde morava. Décimo andar. Pelo menos, nesse aspecto, teve mais coragem que o suposto pai.
Em paralelo, graças à outra carta anônima, a polícia desbaratou uma quadrilha que vendia serviços de execução, recebia a entrada
, mas não entregava a mercadoria. O processo correu rápido na fase policial. Em juízo, o advogado dos bandidos sustentou que eles jamais executaram alguém. Exibiu uma lista de pessoas cujas mortes foram encomendadas, mas não concretizadas: artistas, políticos, empresários etc. Meritíssimo, eles são vigaristas, mas não são assassinos
. Seria crime de estelionato, no máximo. Como nenhum cliente apareceu para reclamar, o juiz absolveu todos por falta de provas.
A história continuou. Hugo Seixas, um repórter policial, achava que o assassinato do industrial não fora corretamente investigado. A apuração tinha furos, segundo ele. Farejou, como disse, que debaixo desse angu tinha carne
e iniciou uma investigação por conta própria.
Há tempos, Hugo buscava um caso que lhe desse oportunidade de crescer profissionalmente e que o protegesse de futuros passaralhos, cada vez mais comuns no jornal para o qual trabalhava. Foi à luta.
Começou bem. Baseado em informações de um amigo bancário, Hugo ficou sabendo que, alguns dias após seu fatídico depoimento, Madalena, a ex-mulher de Fábio Noronha, que o denunciou como autor do crime, recebeu em sua conta bancária cinquenta mil reais.
Hugo procurou o advogado que assistiu Fábio e ouviu dele que seu cliente jamais admitiu categoricamente ter matado o pai. Fora interrogado pela polícia em pleno surto nervoso, não dizia coisa com coisa, ora chorava, ora ria, ora