A dança das letras: memórias e histórias
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A dança das letras - Ruth Lifschits
Copyright © 2017 by Ruth Lifschits
Capa, projeto gráfico e diagramação: Elisa Janowitzer
Revisão: Carolina Medeiros
Coordenação editorial: Lucia Koury
Produção de ebook: S2 Books
DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
L722d Lifschits, Ruth, 1944 -.
A dança das letras : memórias e histórias / Ruth Lifschits. – Rio de Janeiro : Outras Letras, 2017.
196 p. ; 21 cm.
ISBN 978-85-8488-045-4
1. Contos brasileiros. 2. Ficção brasileira. I. Título.
CDD – B869.3
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Lioara Mandoju CRB-7 5331
2017
Todos os direitos desta edição estão reservados à
Outras Letras Editora Ltda.
Rio de Janeiro | RJ
Tel. 21 2267 6627
contato@outrasletras.com.br
www.outrasletras.com.br
Associada à Libre | www.libre.org.br
Aos meus pais,
com quem vivi
histórias marcantes
que continuam
a dançar em mim.
A dança das letras
Letras se juntam,
se movem,
trocam de lugar.
Revelam,
em danças e volteios,
o que o tempo
quer apagar.
Sumário
Capa
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
Apresentação
Prefácio
1. Balanços, quedas e improvisos
À deriva
Sendo Vica
Cinderela
Quarto 224
Reencontro
2. Jogos de cintura
A demora
A volta
O prêmio
De fósforo e fogo
À procura
Ao vento
Tenho direito
3. Adágios e contratempos
Ao apagar das luzes
Num apartamento
Pronto, acabou
O creme
O encontro
Parcerias
4. Acrobatas
Helena
Peça rara
A lei é clara
Cloviska
Um caco de vida
O Camiranga
Dogs do Dan
Mau cheiro
5. Sobressaltos e elevações
Bola pra frente
Um arcano que cai
Estrela apagada
Aqui não
Tarefa cumprida
De olhos fechados
6. Grand finale
A dança das letras
A autora
Apresentação
As letras de Ruth
Quando eu tinha 12 anos, minha mãe resolveu que estava na hora d’eu aprender inglês. Minha tia decidiu a mesma coisa e lá fomos, meu primo e eu, para aulas particulares. Por algum motivo, meu primo logo desistiu, mas eu fui mordido pelo idioma do bardo e lá fiquei. A professora se chamava Ruth. Era bem-humorada, jovial e excelente mestra. Tinha um método simples, mas muito eficaz: sua aula era dividida em três atos. No primeiro, ela corrigia a redação (eu escrevia uma redação para todas as aulas); no segundo, gramática propriamente dita e, no terceiro, o chat – para soltar a língua – um bate-papo sobre qualquer assunto. Geralmente, eu contava o último capítulo da novela O direito de nascer
. Para completar, era, geralmente, recebido, pela gravação original de My fair lady
– daí, talvez, minha paixão pelo musical e pela estrela dele: Dame Julie Andrews. Durante um ano, me dediquei com afinco e prazer àquela porta de conhecimento que se abria para mim. Mas, depois de doze meses, Ruth viajou e, na volta, decidiu interromper seu bem-sucedido curso. Pela primeira vez na vida, experimentei um estranho sentimento de perda e só me conformei quando, depois de testar e detestar várias outras professoras particulares, decidi me matricular em um conceituado curso de inglês. Fiz um teste de avaliação e entrei logo para o quinto ano daquela instituição. Um ano com Ruth e eu havia pulado quatro anos. Terminado o curso, tornei-me professor de inglês, mas nunca dei aula. Jamais seria tão bom quanto a Ruth. Enveredei pelos caminhos do jornalismo e, a seguir, pelas veredas teatrais.
Este flashback não é apenas fruto de um surto nostálgico da minha parte. É mais uma reação à leitura deste livro de contos da minha querida Ruth: A dança das letras. Como diz seu subtítulo, memórias e histórias
, o livro conta várias histórias, e a escritora, ao remexer no seu baú de memórias, mexe, também, com a nossa memória afetiva.
Marvin Hamlisch, Alan & Marilyn Bergman falam na canção The way we were
: O que é muito doloroso de se lembrar, a gente prefere esquecer.
Ruth é corajosa: ela enfrenta lembranças pouco agradáveis de frente, numa narrativa clara e, ao mesmo tempo, delicada. Talvez por isso, seu livro seja quase o oposto do Pentimento de Lillian Hellmann que descreve seu processo de memória assim: A sensação que eu tenho é a de que estou olhando para um quadro envelhecido que, com o tempo, ficou com a tinta toda esmaecida. Todas as coisas perderam os contornos, como se uma neblina tivesse tomando conta de tudo
. No caso de Ruth, sua memória é tão vívida e nítida que tudo parece que aconteceu ontem. São particularmente sensíveis e atentos ao detalhe os contos que envolvem perda como A demora
, em que descreve sua amizade com um tipo caladão, Seu Zezinho. Ou a perda de Helena
, aquela empregada que já faz parte da família. Ou, ainda, de um tio estouvado, simpatizante do Comunismo, em Cloviska
. Como acontece no clássico Crepúsculo dos deuses
, no conto Bola pra frente
, o narrador está morto. A princípio, pensamos tratar-se de um texto sobre futebol - essa grande paixão nacional -, mas, na realidade, estamos, mais uma vez, lendo sobre um sutil processo de perda.
A sutileza também está presente no estilo da autora quando ela escreve sobre outros temas, como em Mau cheiro
, em que, à la Rashomon
, apresenta duas visões de um mesmo fato: a de uma patroa e a de uma empregada. Essa relatividade, no entanto, sai de cena para dar espaço ao grand finale que dá título ao livro A dança das letras
: O que começa como um absoluto tributo ao conhecimento desemboca numa comovente declaração de amor ao teatro.
Mesmo tocando em assuntos por vezes espinhosos, A dança das letras é sempre uma leitura agradável, de discreto senso de humor, em que sua autora exerce um bem-vindo poder de concisão. Um livro adoravelmente simples e eficaz, como as aulas de inglês da Ruth. Divirtam-se com as suas letras.
Dear Ruth: All the luck in the world,
Yours truly,
Flavio Marinho
Prefácio
Uma foto em movimento (Pas-de-deux)
O que dizer da fotografia? Vejo crianças, um cachorro e casas. Uma menina, à vontade junto ao cão, cuida de conter o animal. Toca-o como que pedindo que obedeça e colabore. Logo sua agonia acabará e ele poderá sair do lugar da obediência e da submissão. O cão procura sinais de agrado no dono, o fotógrafo, que o posicionou e ordenou que ficasse sentado naquele lugar. Só meu pai tinha voz de comando sobre o animal. Sou a menina solícita.
***
Desde muito cedo, me acostumei a ver as imagens colecionadas por minha mãe em um álbum intitulado My book of treasures. Um grande álbum marrom de capa dura com o desenho de um pirata e um baú de moedas de ouro e muitas páginas negras repletas de fotos coladas. Álbum com várias anotações em nanquim branco, letra de minha mãe, com as datas e locais do nosso passado. Gostava de folhear o álbum com mamãe ao meu lado. Ela enriquecia os momentos me contando sobre os lugares, as pessoas, o que tinha acontecido naqueles dias. Esclarecia tudo sobre as circunstâncias desse ou daquele momento, entrelaçando acontecimentos corriqueiros e grandes celebrações.
Tudo passava a existir para mim. Viajava no tempo e assim construía minhas lembranças. Adorava dar vida e significado àquelas imagens. Era sempre a voz dela contando tudo, pois papai tinha morrido muito cedo. Mas, nesses momentos em que o álbum me falava, meu pai também ganhava vida e vinha para junto de mim. Em meio a histórias e cenas, meus irmãos e eu éramos personagens, com papéis marcantes. Única filha, eu era muito observada e fotografada.
Durante muitos anos tive como certo que a função de fotógrafo tinha sido exercida unicamente pelo nosso pai. Afinal, a câmera era dele e mamãe nunca assumiu autoria de nada e nem mostrou interesse por fotografia. Agora, ao folhear com cuidado o álbum que se desfaz em farelos, vejo a sombra dela dentro de algumas imagens, na posição de fotógrafa. Sua silhueta também faz parte do tempo a ser lembrado.
***
Eu me reconheço na menina da foto. Sei quando e onde estava. O cenário é familiar. De tanto conviver com essas imagens, consegui não me esquecer das casas onde morei.
Esta fotografia certamente foi tirada em um dia fora do comum, em hora de estar vestida com capricho. Eu não estava arrumada para brincadeiras no quintal. O laço de fita que enfeita os cabelos sempre aponta para momentos especiais. Laços duravam pouco tempo em meus cabelos lisos e muito finos.
Meu irmão mais velho, ao fundo, se afasta do recorte escolhido para a minha pose. Também está bem vestido, num terninho escuro de mangas compridas, de sapato e meias pretas – não é traje para folguedos nos fundos da casa.
As longas sombras na grama me dizem que o sol estava baixo no horizonte. Começo ou final de dia? Estamos ainda limpos e bem arrumados, mas não me lembro de nada, nem de explicações dadas por minha mãe. E por que a pose no quintal e não no jardim de frente para a rua? Decerto para que o cão-personagem pudesse interagir sem possibilidade de fuga.
Nossas roupas são as de exibir, do reino do parecer, destinadas às páginas de um elegante álbum que eternizará cenas de tempos idealizados, esquecidos pelos personagens dessas breves histórias. Adultos tecem fios condutores da memória, empenhados em classificar e registrar os muitos minutos mágicos proporcionados à sua prole. Constroem cenas para provar a todos que houve infância, vida em família, alegrias e felicidade, e que as crianças foram o centro das atenções e dedicações cegas dos pais.
Rip, o cão de papai, completa o quadro que fala da família perfeita: filhos sadios e bem vestidos, animal de estimação de raça e casa nos Estados Unidos, o que dá ao nosso núcleo familiar uma posição social privilegiada.
Minha mãe devia estar dentro de casa, ocupada com meu outro irmão, e papai aproveitava seu tempo livre fazendo o que mais gostava: documentando nosso dia a dia, nossas aventuras naquelas terras distantes.
Esta fotografia é profética. Nela, só há dois dos quatro filhos do casal, os dois ainda vivos. E é também coreográfica, cheia de movimentos, aparentes e ocultos. Faz a gente entender que os ausentes são parte essencial da dança.
1
Balanços,
quedas e
improvisos
À deriva
Noite fria, muito escura. Nós três, os maiores, grudados, bem juntinhos, sentados no primeiro degrau da escada. O caçula passava pra lá e pra cá no colo da babá apressada, arrumando coisas, pegando roupas nossas no quarto dos fundos, no andar de cima, pela casa. Não sei bem o que ela fazia, mas estava muito ocupada. Nossa casa cheia e continuando a se encher de pessoas sérias. Umas conhecidas e muitas outras não. Onde estava minha mãe? Continuava sumida. Tínhamos voltado do colégio e ela não tinha aparecido para nos receber. Eu ouvia seu choro, mas quando a procurava só via as costas de mulheres encurvadas olhando para algum ponto no meio daquele embolado de gente – de lá vinham os sons de gritos e gemidos. A voz era dela, mas muito diferente. Não sei quanto tempo se passou, ficou escuro e deixamos nossa casa. Não me disseram por quê. Nada.
Fomos levados para a base militar e pensei que papai estivesse lá. Procurei por ele, esperei por ele, mas ele não apareceu. Entramos num avião depois de passarmos por homens fardados que nada diziam, só nos olhavam com olhar esquisito. Ninguém dizia nada. Estava com medo. As fardas eram como as do papai. Onde estava ele? Também tinha sumido. Um amigo dele me pegou no colo, me abraçou