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Da aurora ao pôr do sol
Da aurora ao pôr do sol
Da aurora ao pôr do sol
E-book426 páginas6 horas

Da aurora ao pôr do sol

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Sobre este e-book

Mas foi você mesmo quem insistiu que lhe contasse tudo, detalhe por detalhe. Ficou conhecendo toda minha vida. Os fatos e as pessoas pitorescas, importantes e angelicais, que povoaram meus anos de sonhos, meus anos dourados, rebeldes e de chumbo, minhas derrotas e vitórias. Ficou sabendo como e por que um menino, que um dia ficou de mal com Deus por lhe tirar seu pai; um jovem idealista aprendiz de guerrilheiro, que treinava a pontaria tendo como alvo um crucifixo; um homem tão bem-sucedido e próspero quanto ateu e insensível transformou-se, e transformou-se muito. Mudou demais, a ponto de trocar Nova York, Las Vegas, Atlantic City e Paris pelo Rajastão. Ainda se dispor a viajar várias horas de trem e ter de caminhar com seu cármico joelho dando o ar de sua presença. Depois disso, você poderá deduzir por que a busca de um lugarejo, como Monte Abu, para enclausurar-se em um mosteiro durante vinte dias, estudar e meditar muito.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de mai. de 2017
ISBN9788542811636
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    Da aurora ao pôr do sol - Luiz Ayrão

    capítulo

    PARA COMEÇO DE CONVERSA

    aquele rostinho bonito,

    que me olhava atento e apreensivo lá embaixo,

    nunca tinha visto por ali.

    Nós morávamos bem na curva. Nossa casa ficava no fim da ladeira, na parte alta do bairro. Volta e meia, ouvia-se dizer que éramos todos privilegiados por desfrutarmos do mais puro ar de toda a cidade do Rio de Janeiro. Isso devido à altura da região e, principalmente, pelos inúmeros quintais plantados de eucaliptos. Até a Marinha, em virtude da qualidade do ar, construíra ali seu hospital, afirmavam os orgulhosos moradores daquele modesto subúrbio da Zona Norte. As casas eram todas parecidas e as pessoas, de certa forma, também. Cumprimentavam-se sempre gentis, conversadoras e respeitosas. Todo mundo era bom. Da nossa varanda, via-se com bastante nitidez o encontro dos morros com as nuvens brancas. Durante tempos acalentei o sonho de brincar com um pedaço delas. Só podiam ser de algodão ou de borracha bem macia. Como devia ser gostoso manusear uma fatia de nuvem! Tudo era sonho.

    Nossa casa era assim: beirando a calçada, um pequeno portão de ferro, que unia dois muros de meia altura com grades também de ferro. Vinha a varanda frontal e, no meio dela, surgia outra bem menor, coberta e amparada por quatro colunas de lascas de pedras superpostas. Nessa varandinha, a porta da casa. Entrando, um corredor comprido. Certo dia, uma amiga de minha mãe sentiu-se mal, desmaiou e ficou estendida ali, no chão. Como ela também era comprida! Tudo era grande! O corredor separava dois quartos: o meu e outro usado como sala de visitas. No fim, a sala de jantar e, contíguo a ela, o quarto de meus pais. Da sala, à esquerda, saía-se para a área de serviço. À direita, por outro corredorzinho menor, chegava-se ao banheiro e, por fim, à cozinha. Em frente a ela, separado pela área de serviço, havia outro cômodo. Era bem amplo e nós o chamávamos de sala dos fundos. Dava vistas para a rua e para o imenso quintal. Ali fazíamos nossas refeições, meu pai lia, minha mãe bordava e, em dias de chuva, eu brincava... e até estudava.

    E os eucaliptos? Imensos. Eram tão altos que eu julgava poder avistar a cidade inteira se conseguisse chegar ao topo de qualquer deles. Rodeavam quase todo o nosso quintal, e nas noites de tempestade, aqueles gigantes metiam medo, balançando seus galhos enormes. No outro dia, porém, lá estavam, firmes, espalhando cheiro bom, gravetos e centenas de piõezinhos, que eu fazia girar no chão da varanda. Tudo era brinquedo! Ladeando a cerca que separava o nosso terreno do terreno da dona Ester enfileiravam-se as bananeiras. Havia pés de manga, cajá, fruta-de-conde, goiaba, carambola, jambo, jabuticaba, pitanga, amora... Uma árvore, porém, era a minha preferida: o abieiro. Ficava bem no meio do terreno, escondida entre as outras árvores. Era o centro do mundo. Do meu mundo, onde tudo era possível. Eu nasci ali e dali só saía para ir às aulas, para alguns passeios dominicais à Tijuca, onde morava a família de minha mãe, ou a Bangu, para visitar a família de meu pai. Caminhávamos até a estação do Méier e pegávamos o trem elétrico. Toda vez minha mãe comentava a mesma coisa: tinha vindo de sua terra natal em um trem de ferro e este, elétrico, era muito rápido, corria muito, demais da conta. Era o seu jeito mineiro.

    O jambeiro ficava bem vermelhinho e florido nos meses de março e julho. Parecia uma árvore de Natal, de tão lindo. Na primavera, carregado de frutas, nem se fala. Até alcançar os galhos nos quais pontificavam os jambos era uma boa escalada. Eu me abraçava ao tronco e impulsionava com os pés. Fazia da camisa uma sacola e, pouco depois, à sombra, deliciava-me com o sabor adocicado daquela frutinha macia. Era o único filho de um casal que não podia ter mais crianças. Quando nasci, minha mãe e eu passamos por maus bocados. Se tentassem outra vez, ela e o bebê talvez não sobrevivessem. Com a mãe dela fora assim e eles tinham medo. Estava eu, então, com oito anos. Era muito magro e crescido para a idade. Um menino só, mas que não se sentia assim.

    Estava próximo o tão esperado dia 12 de agosto. O estádio do Vasco iria superlotar. Era o velhinho de volta para lançar sua candidatura à presidência da República. Iria governar com o povo no Catete. O pai dos pobres: Getúlio Dornelles Vargas. Que veneração! Meu pai relembrava esses slogans com bastante entusiasmo e até pendurou na parede da sala o retrato daquele bom velho, sorrindo simpaticamente. Nessa altura, passei a torcer para que ele viesse logo de sua fazenda, no Sul, reencontrar-se com seus fervorosos adeptos naquele grande comício.

    Finalmente! Lá estávamos nós, metidos no meio da multidão, que gritava sem parar o nome do homem do retrato na parede. Seu Valdemar e mais outro senhor entraram na pista de atletismo que circundava o campo de futebol, e estenderam uma faixa preta com letras douradas. Lia-se um nome, para mim, muito do esquisito: Salgado Filho. Isso lá era nome? De repente, seu Valdemar me largou uma das extremidades da faixa na mão e me mandou marchar. Isso eu tinha de saber. Havia assistido ao meu pai no quartel. Aquele sujeito alto e compenetrado carregava o fuzil no ombro e marchava à frente dos outros soldados. Que orgulho eu sentia! Tinha de fazer o mesmo. Na outra extremidade da faixa, ia um camaradinha, já adulto, que eu não conhecia. Foi a glória. As arquibancadas, a pista, enfim, toda a multidão, ao ver a cena, desabou em aplausos e ovações. É que o dono do nome dourado, falecido havia pouco, brilhara também em vida. Fora nomeado ministro da Aeronáutica, embora fosse um civil, para os últimos anos de governo ditatorial daquele gaúcho, seu amigo e conterrâneo, recebido agora com tanta idolatria. Que rebuliço! Que alvoroço! Que passeio! O único senão foi meu joelho dolorido. Também, marchando daquele jeito, com aquelas pernas finas e compridas, o que eu poderia esperar?

    As pessoas que não tiveram acesso à pista ou às arquibancadas pareciam querer passar por entre as grades dos portões de ferro. Ali se comprimiam e esticavam os braços, como a pretender tocar a figura que acabara de chegar à pista no Rolls-Royce preto de capota arriada. Correndo atrás do carro, ia outra pequena multidão de fotógrafos e repórteres. Ao mesmo tempo em que corriam, escreviam em um caderninho, e eu me perguntava como eram capazes de tamanha proeza. Iam também policiais e uns homens grandalhões, de terno escuro e gravata, com umas caras não muito agradáveis. Pareciam com os desenhos dos bandidos que eu via no Gibi, minha revista em quadrinhos favorita. O carrão passou por nós bem devagar e pude ver o velho de perto. Era claro, baixinho, gordinho e com uma expressão afável, ao contrário dos pesos-pesados de terno. Havia outras pessoas no carro, mas parecia que só eu as notara. Aquele homenzinho, que sorria desde sua entrada no estádio, passava grandioso, imponente, acenando com gestos calmos e repetidos, enquanto aquele mundo de gente gritava seu nome sem parar: Ge-tú-lio! Ge-tú-lio!. Era uma verdadeira loucura. De repente, ao perceber um menino segurando aquela apelativa faixa, virou-se para o lado, encarou-me, aumentou o sorriso e fez como que um gesto de reverência. Aí eu não tive dúvidas: Getúlio!!! Getúlio!!! Getúlio!!!.

    Foi por essa época que comecei a conhecer de fato um grande amigo. Ia aos poucos tomando consciência daquela figura que era o meu pai. Reformara-se moço ainda e, por isso, estávamos convivendo bem mais. Aquele dia estava sendo um marco importante nessa amizade. Quando Vargas conseguiu chegar à tribuna de honra para iniciar sua fala, o barulho era ensurdecedor. Depois de algum tempo, pôde começar, clamando em voz alta e estridente: Trabalhadores do Brasil!.... Foi o bastante para recomeçar a gritaria, obrigando-o a aguardar por mais alguns instantes. Estávamos bem próximos do palanque e eu, montado no pescoço do meu pai, engrossava, ou melhor, afinava o inflamado coral do Já ganhou!. Não sei quanto tempo ficamos ali, a gritar e a aplaudir. Só sei que, ao final, seu Valdemar, membro do PTB, Partido Trabalhista Brasileiro, arranjou um jeito de, no empurra-empurra, chegarmos mais perto do recém-lançado candidato. O dono da festa já ia se retirando. À medida que caminhava, saudava as pessoas. Quando podia, apertava algumas das centenas de mãos, quase suplicantes, que lhe eram estendidas. Ao passar por nós, ficamos imóveis, hipnotizados. Aí, afagou minha cabeça e estendeu a mão a seu Valdemar e a meu pai. Caramba! Como somos importantes!, concluí.

    O dia seguinte era um domingo. Parece que o sol sempre teve certa simpatia pelos domingos e sua moradia era lá no meu bairro. Meu pai ligava o rádio e cantava junto. Minha mãe parecia mais contente. As janelas da frente da casa eram abertas, mas a felicidade não ia embora, como acontecia em uma valsa daquelas que apresentavam no Para você recordar. Eu aguardava irrequieto todas as coisas boas daquele dia especial, e o doceiro era uma delas. E lá vinha ele gritando qualquer coisa que ninguém entendia, mas sabia bem o que era. Eu corria logo para o portão. Ele parava, armava o cavalete e arriava o mágico cesto de vime que trazia na cabeça. Era o paraíso. Antes do almoço, não!, dizia minha mãe, sem o menor efeito. Guarde o doce de leite para os seus primos, que vão chegar daqui a pouco!, aí, com efeito. Eu tinha de ter alguma surpresa para Aninha, minha prima. Era pouco mais velha que eu, muito esperta e cheia de iniciativa. Tanto que, em uma das idas lá em casa, perguntou-me assim, sem mais nem menos: Você quer ser meu namorado?, o que aceitei de imediato. Trocar retratinhos com dedicatória e usá-los na carteira de estudante, brincar juntos e guardar segredos, sonhar com a sua próxima visita, suportar a tentação de não comer as balas de caramelo, só para guardar para ela, foi um verdadeiro tratado sobre amor em versão dente de leite.

    — Olha aí a sua nota, menino! — Minha mãe estava furiosa comigo. — Cinquenta em Aritmética! Deixa seu pai chegar! Quando não estuda com você, é isso! Também... chega da escola, mete-se nesse quintal, desaparece, volta imundo e não come nada. Como é que quer aprender?

    Lá ia ela resmungando e andando para lá e para cá, sempre envolvida com seus afazeres. E agora? Não tinha explicação. Isto é, tinha sim! Minha mãe estava certíssima. Mal chegava das aulas, corria para o meu mundo. As árvores, os passarinhos, os formigueiros, as trilhas estavam a minha espera. Que Aritmética, nada! Mas, logo mais, como ia ser? E meu pai chegou. A casa toda tremia com seus passos. Apesar do seu tamanho e de seu jeito sério, era uma pessoa afável conosco. Gostava de cantar e lia muito. Lecionava Gramática Portuguesa e Aritmética, e vinha dando aulas nos cursos internos da Polícia Militar. O motivo de ter se reformado tão cedo nunca ficou bem esclarecido. Teria comprado o laudo que lhe indicava um sopro no coração. Hoje, tenho certeza de que foi apenas uma evasiva para não deixar ninguém da família preocupado. Apesar de ter sido atleta e de ainda conservar o porte, algo de fato devia existir. Nada tão grave, supúnhamos. Mesmo assim, não seria aconselhável participar de puxados exercícios físicos. Às vezes, eu ouvia alguém da família dizendo que, quanto ao seu gênio explosivo, estava mudando. Já não seria mais um cabeça quente, andava calmo, controlado. Em casa, conosco, era sempre muito bom, amigo e atencioso. Toda vez que ia ao centro da cidade, trazia-nos alguma lembrança. Hoje, por exemplo, foi uma caixa de carrinhos de galalite e um pacote de balas de hortelã. Recebi meio ressabiado meus presentes e comecei a sofrer a expectativa. Veio o jantar. Passou o jantar. E até aí, tudo tranquilo. Nada de sobrancelhas cerradas, nem de conversa séria. Veio a hora de dormir. Nada, afinal! O perigo havia passado. Minha mãe se esquecera de contar.

    A punição, quando acontecia, era escrever frases disciplinares ou copiar lições do livro. As mesmas, e várias vezes. Vinte, trinta, conforme a gravidade da falta. Dessa vez, seriam duzentas, no mínimo. Mas, se eu pudesse fazer como tinha feito no outro dia, tudo seria fácil. Meu castigo era copiar cinquenta vezes a frase: Não devo desobedecer às ordens de minha mãe!. Lembrei-me de um recurso que aprendera: usar aspas embaixo da palavra já escrita na linha superior. Não seria necessário repeti-la. Bastavam umas aspinhas e pronto! Não se perdia tempo. Resolvi não perder e só escrevi mesmo a primeira linha. Depois, até o número 50, coloquei as tais aspas, e em cinco minutos me livrei do compromisso. Meu amigo não teve outra saída, senão aceitar o meu recurso. Mas, na primeira oportunidade em que aprontei das minhas, ordenou-me outra frase sem apelação: Nem sempre nos é permitido usar aspas!, cem vezes! Podia ser tudo, qualquer punição, menos não brincar no meu quintal. Isso, nunca! Lá estava o grande parque de diversões, que a natureza e a imaginação haviam colocado ao meu dispor.

    Eram poucas as crianças da minha idade nas casas vizinhas. Dona Ester tinha uma filha já mocinha, que me olhava de nariz em pé e com os mesmos olhos da diretora da minha escola. Do lado esquerdo, morava uma família grande, cheia de filhos, mas todos já criados. Na casa defronte, havia um menino da minha idade, mas pouco o via. Mais abaixo, outro menino. Não era hábito, porém, os pais permitirem que seus filhos frequentassem as casas dos vizinhos. Só mesmo em um aniversário, e olhe lá! Criança é debaixo dos olhos!, costumavam dizer. Cada qual que brincasse com seus irmãos ou sozinho, pois o que não faltava era espaço. De fato, todas as casas possuíam terrenos enormes e, quando muito, sinuosas cercas de feixes de bambu separavam uns dos outros. Para criança e ladrão não há cerca nem paredão!. Guardei bem esse verdadeiro habeas corpus concedido por minha avó paterna, ao relembrar sua infância nas chácaras de Botafogo. Segundo suas palavras, ela teria sido uma criança pau com formiga. Meu território e minha formigante imaginação não tinham limites. Uma criança, quando brinca só, engendra seus sonhos sem interrupções. Em um fiar contínuo, o raciocínio estimula ainda mais a criatividade e a fantasia. Ela fala sozinha, imita vozes, dá socos no ar, viaja. Nada existe que não possa ser ou ter. Se não dispõe de um brinquedo bonito, uma vara seca de bambu vira uma flauta, uma espada, um trem. Se não há ninguém ao seu redor, inventa as companhias. Eu nunca estaria só, pois era só um menino. Alma pura e mente límpida, em meio a tantas energias. Um pequeno elo latente, iniciando sua caminhada por entre imensos verdes.

    Nos últimos dias, andava muito ocupado. Bem no centro do nosso terreno, escondida por um declive e pelas árvores, estava construindo uma cidade: a minha cidade. Claro que fiz, primeiro, o quartel da polícia; depois, o do Exército e o do corpo de bombeiros. Fiz o campo de aviação, o palácio do governo, uma escola, um hospital e uma alegre estação de rádio. As construções eram sólidas. Um tijolo comum virava um pequeno prédio. Os duplos viravam edifícios. Para levantá-los era preciso muito trabalho, e isso movimentava operários, caminhões e tratores. Ficava horas raspando os tijolos com uma faquinha. Depois de bem limpinhos, livres do limo e das imperfeições, pintava-os com cal: sobras que sempre existiam nos terrenos. De novo, com a faquinha, cruzava riscos verticais e horizontais, usando como régua algo que já me proporcionara minutos de extrema satisfação: um palito de picolé. Com esse artifício, criava as janelas dos arranha-céus.

    Eu gesticulava, dava ordens, falava sozinho, espionado, vez por outra, pelos gatos da dona Inez. Eram nove, e ela fazia a mesma coisa com eles: dava ordens, gesticulava e conversava com os bichanos, filhos da sua solidão. Já de idade, pequena e frágil, morava no porão de dona Ester. Quase todas as residências tinham um. Altos e confortáveis, davam para os quintais, enquanto que a parte de cima se nivelava à rua. Compunham as chamadas construções geminadas ou, como se dizia, de parede-meia. A nossa era assim, e qualquer menino curioso que colasse o ouvido à parede poderia escutar muito bem o que dizia uma mãe nervosa como dona Ester, ao brigar com uma filha precoce e fogosa, como Leninha, por causa de namoradinhos.

    Seu Valdemar apareceu lá em casa levando mais panfletos e santinhos dele e de seus candidatos. Era muito engraçado. Calvo, gordo e com um cacoete intermitente. Às vezes, observava-o em demasia e aí ganhava ou o franzir de sobrancelhas de meu pai ou um disfarçado cutucão de minha mãe, para que também parasse de mastigar a língua. Isso pega!, dizia baixinho. Ele já chegou furioso. Queria saber quem era aquele vizinho da frente, que colocara bem na fachada da casa uma placa do brigadeiro. Seu Valdemar era candidato a vereador e nos dizia sempre que nem ele, nem seu grande líder, o Gegê, perderiam aquela eleição. Lembrei-me de que, meses antes, ele também dissera: O escrete brasileiro não perde essa Copa do Mundo!. Para começo de conversa, seu Valdemar perdeu a direção do seu Ford 29, quando Friaça marcou o único gol do Brasil contra os uruguaios. Ouviu-se a patriótica gaitinha do Ari Barroso ecoando sonora, vibrante e repetidas vezes. Ari, além de compositor consagrado, apresentador de programas de calouros, com grande sucesso, era também locutor esportivo e tinha enorme audiência na Rádio Tupi. Toda vez que acontecia um gol, executava sua especial gaitinha, e com muito mais ênfase se fosse um gol do Flamengo, seu clube do coração. Por causa da comemoração, literalmente, desenfreada, saímos ziguezagueando pela pista da Rio-São Paulo e só fomos parar a meio metro de um respeitável buraco: uma vala que corria ao lado da estrada. Era 16 de julho de 1950.

    Enquanto todos estavam atentos às transmissões, colados aos seus rádios, nas casas, nos botequins, nos alto-falantes instalados nos postes, nós prosseguíamos naquele fordeco cheio de placas no teto e fotos grudadas por todo lado. Valdemar estava querendo aproveitar as aglomerações. Ali por volta de Realengo, paramos em um boteco lotado de gente. Era o pessoal humilde do subúrbio, que, ao seu modo, enfrentava a expectativa e a tensão da partida final: uma cervejinha, um traçado, uma pura. Em meio àquele burburinho, lá ia eu cumprindo minha missão. Só faltava entregar prospectos e cédulas de votação a uma pessoa. Um homem comprido, que estava de costas, falando alto e gesticulando com um copo de bebida na mão. Por trás, dei um tapinha de leve no braço dele. Não percebeu. Repeti, e nada. Então, bati com um pouquinho mais de força. O homem se virou de repente, com os olhos avermelhados e acho que zangado com a impertinência. Meio sem-graça, estendi-lhe a mão. Nessa altura, meu pai já estava ao lado. Sorrindo, perguntou ao homem:

    — O senhor vai votar no Getúlio?

    A resposta foi imediata e inesquecível:

    — Moço, só tenho três coisas na vida... — Aí, ajoelhou-se em uma das pernas, ergueu o braço do copo para o céu e, colocando a outra mão sobre o peito, completou: — ... é Deus no céu, Getúlio na Terra e o escrete brasileiro no coração!

    Estávamos desde muito cedo envolvidos com a nossa maratona. Meu pai, em retribuição àquele modesto operário da Brahma, que, na verdade, era mais amigo do meu tio do que dele. O tio Zezé recuperava-se de um derrame e estava sendo ajudado pelo companheiro sindicalista, que tratava da sua aposentadoria e ainda se empenhava em lhe conseguir um apartamento no Iapi de Padre Miguel. Essa era a sigla do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários, um dos órgãos de assistência previdenciária, que naquele tempo cada categoria profissional possuía em separado. O Instituto estava construindo moradias populares bem acessíveis aos trabalhadores, contudo, era preciso uma mãozinha de alguém com boas amizades... e essa mãozinha era a do seu Valdemar. Meu tio, como não podia colaborar na campanha, pediu a meu pai que o fizesse. Inquieto e entusiasmado, não via a hora de usar o microfone, ouvir minha voz nos dois alto-falantes, que se equilibravam no teto do carrinho. Uma criança fazendo propaganda política e cantando marchinhas de Carnaval chamava a atenção de todos. Muita gente parava para ver e ouvir. Com o final do jogo no Maracanã, demos por encerrada a nossa árdua tarefa de caçar votos. Naquele dia, milhões de brasileiros, getulistas, udenistas, pessedistas, democratas ou não, ricos ou pobres, todos, enfim, também haviam perdido a direção e, atônitos, caíram em um enorme buraco: a frustração da derrota. Dois a um para os gringos. O Uruguai ganhou a Copa.

    Veio o dia da eleição. Para levantar o astral do povão, Getúlio arrasou. A tal placa do vizinho ficou lá até quando percebeu que o brigadeiro Eduardo Gomes não tinha mais condição de tirar a vantagem extraordinária que o vencedor lhe impusera. Se já era meio fechado conosco, depois dessa, nem sequer nos cumprimentava mais. O menino que havia na casa, quando nos encontrávamos a caminho da escola, baixava os olhos como que obedecendo a alguma proibição. Parecia que havíamos ganhado uma revolução armada, de tão ressentidos que ficaram os perdedores. Todos os nossos candidatos foram eleitos: o presidente, o senador e o deputado federal. Menos um: seu Valdemar. Teve, contados e recontados, apenas 811 votos.

    — Cadê essa gente? Pobre não vota em pobre e operário não vota em operário! Traidores! Falsos! — vociferava, magoado, o modesto e determinado líder sindical, ex-trabalhador braçal da Cervejaria Brahma.

    Não bebia e não fumava, mas possuía outros vícios incontroláveis: paixão pelo Getúlio, pela política e por mastigar a irrequieta língua.

    Estava chegando o fim do ano. Na hora do jantar, meu pai deu a notícia. Fora chamado a São Paulo por um irmão de minha mãe, com urgência, como dizia a carta. Esse meu tio era dono de um grande parque de diversões, precisava de alguém de pulso forte para socorrê-lo na administração e contava com o cunhado e amigo. Pela cara de minha mãe, ele não iria nunca. Mas foi. Recordo-me de quando fomos levá-lo à estação. O trem saía da gare Dom Pedro II, na Central do Brasil. Foi nessa tarde que me dei conta de quanto éramos importantes um para o outro, de como podiam ser fortes os laços que nos uniam. Meu pai brincava comigo, tentando desviar minha atenção, pois devo ter estampado nos olhos os meus primeiros sinais de tristeza. Depois do terceiro apito, ruidosa e vagarosamente, a composição foi se locomovendo. Beijou-nos e subiu no trem. Desprendi-me da mão de minha mãe e saí correndo pela plataforma, ao lado do vagão no qual ele se sentara. Era como se aqueles segundos a mais de proximidade fossem os últimos de que disporia para demonstrar-lhe todo o meu afeto. Quando a composição já estava se distanciando, apequenando-se, meu pai acenou com o lenço. Aí foi demais! Botei a boca no mundo. Estava me acostumando com a presença mais constante daquele amigo, que me ensinava coisas, estudava comigo as lições, que cantava valsas dolentes e bonitas e me contava histórias inventadas na hora. Descobri isso porque, ao lhe pedir que repetisse qualquer uma delas, já era outra história.

    Meu pai era pessoa de grande sensibilidade que, órfão muito cedo, buscara na vida militar a tábua de salvação. É, de fato, possível endurecer-se sem perder a ternura. A reforma, aquela saída obrigatória do convívio de companheiros de tanto tempo, deixou meu pai consternado, necessitando de se ocupar com alguma coisa. Acho que esse fato foi decisivo para que considerasse o apelo de meu tio. Mais do que nunca, busquei refúgio na minha cidade, entre os meus sonhos. Passava nela horas e horas, e só despertava quando minha mãe, lá da janela da cozinha, gritava por mim. Já estava escuro quando isso acontecia. Tão escuro quanto ficava o piso da banheira, após a primeira chuveirada. A criança está bem próxima do Criador e é prova irrefutável de como iniciou Sua Obra. Pois como são inerentes a ela, a intimidade e o tão natural prazer com que se mistura a terra ao barro, sem a menor cerimônia!

    Os dias iam passando. Minha mãe, como sempre, nos afazeres domésticos, às vezes inventava. Mudava os móveis de lugar, pintava uma mesa, uma cadeira, fazia o seu delicioso manjar, ou, cheia de desprendimento, encerava o assoalho, tarefa para a qual me convocava como auxiliar. Claro que eu não gostava! Mas, durante esses dias, aceitava sem resmungos. Afinal, até meu pai retornar, eu seria o homem da casa. Naquele exato momento, enternecia-se com suas folhas de papel. Eu gostava de ver. Dobrava e redobrava as de crepom azul, e com a tesoura, da qual sempre reclamava, ia fazendo pequenos recortes. Depois, forrava a prateleira da cozinha com papel de seda branco e colocava as folhas azuis por cima. Ressaltavam, então, as mais pitorescas figuras. Pequeninos losangos – balõezinhos, como eu os chamava –, triângulos e estrelinhas. Era demais! Eu acompanhava lance por lance, esperando o final da mágica. A singela mágica que minha mãe fazia, de transformar simples folhas de papel no mais puro amor.

    — Carrrrteiro!!!

    O ressonante e original aviso vinha lá do portão, no qual estávamos segundos depois.

    — Deve ser carta do seu pai.

    E era. Só falava de coisas boas. Dirigia-se ora a mim, ora a minha mãe, como se já soubesse que a leríamos juntos. Ao final, prometia-nos estar em casa até o Dia da República ou, no máximo, até o Dia da Bandeira. Ainda estava com o calendário militar na cabeça. Com o fim do ano, viriam as provas e tinha de me enfurnar na Aritmética. Mas, aos sábados e domingos, nem pensar! Mal o sol se levantava, corria ao encontro dos meus sonhos. O abieiro estava lá, cheio de sombra aconchegante. Florescia em novembro e a fruta surgia como um presente de Natal no mês seguinte. Ah, o abiu! É grande e carnudo como um tomate, só que bem amarelo. Por dentro é branco igual a um manjar de coco e tão gostoso quanto. Tem caroços também, que são grandes, mas diante de tanta delícia passam despercebidos. O abiu tem uma espécie de visgo, de grude, que faz com que os lábios fiquem colando. Esse grude é um delator da mesma turma do jamelão, que tinge a língua toda de roxo. Examinando a boca, a mãe descobre a razão daquela dor de barriga inesperada. Dessa vez, estava mais precavido com os abius. Mesmo assim, subi na árvore para pegar um deles, que despontava bonito e maduro. Não podia perdê-lo de forma alguma. Ia me equilibrando por entre os galhos, esticava o braço o máximo possível, mas não dava. Mais um pouquinho, mais um pedacinho e...

    — Espere! Eu pego pra você!

    Parei de imediato.

    — Balance o galho que eu pego pra você!

    Mesmo surpreso e imóvel durante alguns segundos, percebi que aquele rostinho bonito, que me olhava atento e apreensivo lá embaixo, nunca tinha visto por ali. Muito menos tinha ouvido voz tão delicada pela vizinhança. Bastou um leve balançar e o abio se desprendeu. A menina, com toda a suavidade, aparou-o. O movimento que ela fez para pegá-lo me lembrou da bailarina da caixinha de música de minha avó. Estava encantado com a visita inesperada. Os raios de sol penetravam pela folhagem do abieiro, criavam fachos de luz que iam até o chão. Um deles recaía exato sobre minha visitante. Era como a imagem que tinha visto, fascinado, quando passaram filmes na minha escola. A luz que saía do projetor dava vida deslumbrante à tela. Foi assim que vi aquela menina: iluminada. Era uma criança bem morena, de cabelos pretinhos e feições muito delicadas. Devia ter a minha idade, mas eu era bem maior, o que era normal em qualquer grupo de crianças em que me encontrasse. Chamaram-me a atenção seu narizinho afilado e os dentes bem branquinhos e certos. Perguntou-me, então, com sua voz doce:

    — Você construiu esta cidade? É linda! Como se chama?

    — Ela não tem nome ainda e não fui eu que construí. Foi meu irmão. Ele é que gosta de brincar com essas coisas de criança.

    — Mas você não tem irmão gêmeo, tem?

    Aí, imaginei o que ela iria dizer. Com certeza já andara me espionando e sabia muito bem que eu não tinha irmão nenhum, que era o responsável por tudo aquilo. Na verdade, estava era morrendo de vergonha de confirmar que todos aqueles carrinhos, soldadinhos de chumbo e casinhas, eram meus.

    — Estou brincando com você. Não tenho irmãos. — E, tentando mudar de assunto: — De que casa você é? Mora aqui por perto?

    A meninazinha, entretida com os brinquedos e mexendo em tudo, não me ouviu. Seus gestos eram de criança meiga e bem-educada. Mudava algumas coisas de lugar, ia arrumando outras, e assim passamos o resto da tarde juntos. Tempo, no sentido de espaço de vida, nada quer dizer para uma criança. Não houve prazo suficiente ainda para significar alguma coisa. A vida é o presente. Começa a cada instante e nunca vai terminar. É isso o que interessa. Uma amizade iniciada há cinco minutos, sem preconceitos e sem bloqueios, já está inserida e solidificada. Sem perguntas ou cerimônias, ambos nos entendemos e nos distraímos brincando muito. Paramos ao ouvir aquele som, aquele grito, meu velho conhecido, vindo lá da janela da cozinha. Cada vez mais agudo e mais zangado, chamava-me pela quinta vez. Minha amiguinha, então, acenou-me e foi embora saltitante em direção aos fundos do quintal.

    Minha mãe avisou-me de que eu ia começar a frequentar as aulas de catecismo. Era a primeira comunhão!

    — Mas já sei rezar!

    — Só sabe a ave-maria!

    — Sei o padre-nosso! Sei rezar dor de dente!

    — Mas não é só isso! Tem que saber outras rezas para quando precisar! Tem que conhecer melhor a vida de Jesus, dos santos, dos anjos...

    Sobre Jesus, já poderia saber muito, se não fosse aquele incidente da Semana Santa, na Sexta-Feira da Paixão. A vida de Cristo era o filme do Cine Vila Isabel, único nas vizinhanças. Uma fila imensa se alongava para fora do cinema. Mal entramos nela, começou a chuviscar. Meu pai queria muito que eu visse a fita e suportava tudo com paciência. Inclusive a intransigência de um guarda municipal corpulento, com um cassetete enorme na cintura. Cheio de ignorância, não permitia que pelo menos parte da fila fosse acomodada na sala de espera. Estavam todos do lado de fora, sob uma marquise estreita, apanhando a chuva fina, que aos poucos ia aumentado. Ouvi meu pai resmungar para si mesmo: Qual!. Enfim, terminou a sessão. Quanto tempo naquela fila! Vale o sacrifício!, era o que se ouvia. Entreguei os ingressos ao porteiro e quando íamos entrando na sala de projeção, o tal guarda berrou:

    — Ei! Ei! O senhor aí! Não pode entrar com esse garoto!

    — Por que não?

    — É a lei, meu amigo!

    E meu pai, querendo parecer tranquilo:

    — Lei? Que lei?

    — O quê? O senhor está me chamando de mentiroso? — retrucou o intempestivo guarda. — Se eu estou lhe dizendo que não pode, é porque não pode e fim! Eu sou a lei aqui! — falou alto e de forma ríspida o homem.

    Todos olharam para nós. Percebi que meu pai se esforçou muito para engolir a grosseria, tentando conter-se. Veio o gerente com mais um funcionário:

    — Cavalheiro, por favor, saiu uma portaria do Juizado de Menores proibindo crianças nos cinemas depois das oito da noite!

    — Mas agora são sete!

    — Mas, quando der oito, o senhor vai estar lá dentro com o menino.

    Meu pai foi se enervando e alteando a voz.

    — Então, prevendo isso, por que não avisaram às pessoas que estavam com crianças na fila? Esperamos mais de uma hora... e na chuva!

    Pressentindo o pior, eu não sabia o que fazer para dissuadi-lo e tirá-lo dali. Não tinha a quem recorrer, pois ninguém se metia ou aparecia para arrefecer os ânimos. Quando olhamos em volta, já não havia mais ninguém com crianças. Todas as pessoas que não puderam entrar já tinham ido embora. Aceitaram a tal lei esdrúxula sem a menor reação, sem o menor questionamento. Mesmo temendo tudo aquilo, toda aquela confusão, não deixei de perceber que alguma coisa estava errada na atitude passiva delas. Meu pai estava bastante alterado, quando pegou o papel da mão do gerente. Leu-o e, depois de alguns instantes, disse:

    — Olhe aqui! Leia aqui!

    Alguma coisa lá no papel fez o gerente mudar por completo de postura. Daí a pouco, estava nos pedindo desculpas e por várias vezes. Todo solícito, querendo se livrar logo do problema, caminhou em direção à sala de projeção, abriu a cortina, chamou o lanterninha e convidou-nos a entrar. Meu pai não aceitou. Pegou-me pela mão, virou as costas e saiu.

    — Estou com o coração muito cheio de raiva pra ver um filme como esse! Vamos pra casa!

    Anoitecera. Chuviscava. Nem filme nem bonde. Não era o nosso dia – ou noite. Sua mão estava gelada. Ainda não se acalmara e aquele desfecho o deixara insatisfeito. E era mesmo para estar. Enquanto o gerente se desculpava, o nosso desmancha-prazeres resmungou coisas que nem eu gostei. Para que meu pai não o ouvisse, eu falava alto e perguntava-lhe qualquer

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