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Grande mar oceano
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E-book250 páginas3 horas

Grande mar oceano

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Sobre este e-book

Lisboa, 1760: por entre os escombros do Grande Terramoto, um cais oferece aventuras e, quem sabe, um futuro melhor. Rio de Janeiro, anos 1970: sob a vigília do regime militar, a busca por respostas no passado. Dois séculos de histórias — de pessoas e de povos — a cruzar o Grande Mar Oceano. Na Biblioteca Nacional, um jovem bibliotecário tem acesso a um velho baú contendo manuscritos antigos, fotografias, mapas. Percebe tratar-se de alguns diários contendo o registro detalhado da vida de Lúcia, uma portuguesa que, com o marido, chega ao Brasil em fins do Século XVIII, abandonando Lisboa. Moisés, esse jovem leitor, revela então a aventura dessa mulher em pleno Brasil-Colônia. "Por seus olhos também, acabamos lendo as cartas de amor escritas por Joaquinna, filha adotiva de Lúcia, a seu amado J.G., negro escravo, durante a Guerra do Paraguai e acompanhamos o descortinar do século XX nos diários de Isabel, sua filha. O romance acompanha a vida dessas três mulheres, atravessando dois séculos e meio da História do Brasil", explica o autor. É em seus diários e cartas que essas personagens deixarão suas impressões, suas esperanças e medos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de out. de 2019
ISBN9789898938510
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    Grande mar oceano - Leonardo Almeida Filho

    1810

    Agradecimentos

    Atravessar esse Grande Mar Oceano não foi uma tarefa solitária. Claro que houve momentos em que a solidão se fez necessária para botar a nau na água. Primeiro nas pesquisas na Biblioteca Nacional e nas leituras intermináveis que me deram material para construir a embarcação e fazê-la flutuar. Depois na tarefa de dar vida às pessoas que pilotaram essas galés e viveram a minha história. Mas uma segunda etapa dessa viagem pediu a participação de algumas pessoas muito importantes, que me ajudaram nessa jornada, com seu apoio, sua crítica, sua leitura, sua paciência e seu amor. A essas almas boas eu agradeço com o coração em festa.

    Agradeço a Josélia, Anna, João e Daniel, pela inspiração diária e afetuosa.

    Agradeço ao amigo João Mattos pela leitura criteriosa dos originais e pelo olhar de lince na revisão impecável.

    Agradeço aos amigos Ronaldo Cagiano e Tiago Ferro pela leitura e crítica generosa do texto.

    Agradeço aos editores por comprarem essa ideia.

    LAF

    Linha severa da longínqua costa –

    Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

    Em árvores onde o Longe nada tinha;

    Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:

    E, no desembarcar, há aves, flores,

    Onde era só, de longe a abstracta linha.

    Mar portuguez, Fernando Pessoa

    Em tuas ondas precipitadas,

    Onde flamejam lampejos ruivos,

    Gemem sereias despedaçadas,

    Em longos uivos

    Multiplicados pelas quebradas.

    Mar que arremetes, mas que não cansas,

    Mar de blasfêmias e de vinganças,

    Como te invejo! Dentro em meu peito

    Eu trago um pântano insatisfeito

    De corrompidas desesperanças!…

    Mar bravo, Manuel Bandeira

    Meu coração é tão profundo quanto o mar

    Tenho cá dentro minhas marés

    Nele me afogo, me afago, deixo singrar

    No mar do mundo, minhas galés

    Canto de marinheiros do século XVIII,

    Gaspar Sapateiro

    Aos meus amores

    Lisboa, 1760

    Que idade tens, ó pá? Quinze, meu senhor, respondeu, esfregando as mãos suadas nos calções que, muito largos, amplificavam o efeito dos cambitos brancos que o sustentavam. Era puro osso, mas de uma ossatura que prometia vigor físico. Ele tinha olhos de quem sabe onde quer chegar, olhos de tino e desatino. Sabes que o trabalho é muito pesado? Ele assentiu. Tens alguma ideia do inferno que será a tua vida aqui? Ele balançava a cabeça afirmativamente, ansioso, uma nesga de sorriso rasgando nervosamente o canto dos lábios. Não terás folga nem sossego, pensaste nisso? Sim, eu sei, eu quero, meu senhor. Essa obsessão de largar família e rotina já andava a incomodar o pai e a irmã, mas ele insistia: quero o mar, quero o mar. Tu não passas de um graveto e, além disso, quando ao mar, contar com um fracote como tu é muito arriscado, muito perigoso. O capitão coçou as costeletas grisalhas, tinha dúvidas. Tem problema não, meu senhor, ele respondia, excitado, sou forte, apesar de pouca carne, ele mostra o braço ostentando minúsculo bíceps e arrancando sorrisos dos marinheiros e estivadores que assistiam a cena. É isso mesmo que tu queres para a tua vida, miúdo? O capitão resolvera conversar com aquele pirralho que, do cais, há dias pedia atenção e implorava que o deixassem embarcar. Incansável, o fedelho apareceu logo pela manhã quando atracaram no porto, e ofereceu-se para ajudar a descarregar a mercadoria. Foi enxotado pelo pessoal de bordo e pelos fiscais do reino. Passa, menino! Mas ele voltou de novo, e de novo, e de novo. É um miúdo teimoso, disseram. Não tenho família, meu senhor, ele tenta comover o capitão com uma mentira. Meus pais e irmãos morreram no grande terramoto. Há cinco anos vivo nas ruas, de favor. Tenho boa saúde, braços e pernas fortes como só o meu senhor poderá avaliar se me permitir trabalhar para vossa mercê. Posso servi-lo muito bem e juro não comprometer os serviços de vossa embarcação. A nau Nossa Senhora da Conceição estava de partida para Goa com escala em Funchal e Cabo Verde para abastecimento de azeite, vinho, água. Apesar de estar com a tripulação fechada, o capitão sucumbiu à insistência do menino e permitiu que subisse a bordo, determinando que lhe dessem guarida. Ordenou ao contra-mestre que orientasse o pequeno nos trabalhos do navio. Qual o teu nome, filho? Gaspar, senhor, ele respondeu com os olhos cheios de sonhos, Gaspar é o meu nome, filho do finado Pedro Sapateiro e Dona Maria do Pote.

    Rio de Janeiro, agosto de 1954

    Algumas folhas secas, empurradas pelo vento, envolvem os passos lentos de um homem que caminha solitário pela Avenida Rio Branco neste fim de tarde. Ela está morrendo, lamenta, e segue pensativo, observando as lojas que se fecham, as luzes que se acendem nos apartamentos, a praia distante, o pouso de uma aeronave no Santos Dumont. Acendeu um cigarro e ficou observando, de longe, um casal abraçado na Praça Paris, no mesmo banco onde costumava ficar com… desviou o pensamento para algo menos dolorido e concluiu que seria muito bom se a vida fosse assim como chutar uma lata e seguir caminhando, fumando, baforando os males, com o vento no rosto e o silêncio ao redor, mas aquele calor incômodo vem lembrar que a vida real é muito mais que um cigarro fumado e beijos trocados num banco de praça e, para seu desencanto, ela está morrendo. A noite tem cheiro de algas podres e parece sibilar, uma ambulância passou apressada e fez com que, assustado, apertasse o passo, estava muito distante de casa e aquele vento prometia chuva em agosto. A escuridão mostrava-se sobre o perfil montanhoso no horizonte, vinha devagar, monstro imenso mastigando o verde da floresta da Tijuca e os braços abertos do Redentor, que parecia oscilar ante o lusco-fusco das estrelas ao fundo. Veio deslizando sobre a lagoa Rodrigo de Freitas, sobre os prédios do Leblon, de Ipanema, lambendo a espuma do mar no Arpoador, subindo nas pedras, invadindo as ruas de Copacabana, o morro do Leme, a Urca e mergulhando na baía de Guanabara, cobrindo o casal de namorados na Praça Paris, Salvador, seu cigarro e seu coração e sapato apertados. Densas nuvens, muito escuras, denunciavam agora há pouco, quando ainda havia luz, a iminência de chuva forte e no entanto o calor abafa tudo, como se um rio de lava, correndo sob o asfalto, sob a terra, numa fervura de magma plena de pecados e gemidos surdos e suores, no calor de sangue tamoio derramado há séculos, viesse arder nas camas de todas as casas, da Lapa ao Mosteiro de São Bento, entre Eros e Tanatos, entre o gozo e a extrema-unção. Pode-se sentir o pulsar das profundezas nas rochas, latejando com um peito arfando, nas pedras portuguesas das calçadas, no asfalto da Rio Branco, na Pedra do Sal que, a esta hora, deve carregar alguns sambistas em luto batendo o couro de seus tambores. Estranhamente há silêncio, pesado, como um manto cobrindo as ruas da cidade, contrastando com a ruidosa manifestação ocorrida durante grande parte do dia. Já não se escutam os gritos da turba que, pela manhã, vociferava pelo Centro, por bares e becos e vilas e barcas e praças e largos, da Gamboa ao Catete, explodindo em espalhafato e terror. Agora, nem sinal dos populares em revolta que, desordenadamente, ensandecidos, queriam consumir tudo na porrada. A ira, com o passar das horas quentes deste agosto, tornara-se mansidão no ocaso do dia. Nada daquelas almas em combustão ardendo no Castelo, na Glória, na Praça XV e, principalmente, em frente ao edifício Sul-Rio-Grandense, sede da Rádio Globo, onde funcionários e jornalistas, aterrorizados diante da fúria do ataque popular, tiveram que se proteger no último andar e assistiram, apavorados, às pedras que explodiam no belo vitral que havia na fachada do prédio. Lamentava-se no rádio a morte de um homem, ainda não identificado pela polícia, envolvido em conflito no Arco do Teles, mas juram que o motivo do assassinato foi passional, não político. Depositaram algumas flores, acenderam velas e o cobriram com o jornal do dia anunciando outra tragédia. Mesmo a fumaça dos carros queimados durante os distúrbios dissipou-se com o último pedestre na Cinelândia. Pelas ruas, muito lixo, entulho, vidros estilhaçados, restos de cartazes de propaganda e papéis e folhas secas ao vento. Salvador caminha devagar, mãos nos bolsos, pés doloridos. Fumara alguns cigarros, observava as luzes que se acendiam nas casas, passara o dia no leva-e-trás de seu ofício de contínuo no Ministério da Educação. Lembra exatamente o momento em que lera, na primeira página do jornal Última hora, o anúncio do suicídio do presidente Getúlio Vargas. Estampada a manchete: Matou-se Vargas. Foi o trágico sinal para que a população do Rio de Janeiro, estupefata, explodisse em fúria e vandalizasse carros da Rádio e do Jornal O Globo, identificados com a crítica implacável ao presidente morto. No Largo da Carioca os conflitos ocorreram entre simpatizantes do presidente, a grande maioria dos passantes, visivelmente enlutados e transtornados, e uns poucos gatos pingados, eleitores da UDN e lacerdistas que se vestiram de coragem – alguns dirão, de loucura - e foram às ruas. Seu olhar registrara as expressões de ódio e os lábios contorcidos de quase feras aos berros de Viva Getúlio, Fora, Lacerda, Assassinos, assassinos! Notou como os homens, em momentos de fúria, perdem tudo aquilo que os torna homens. Vão-se o verniz, a cultura, a educação. Mergulhados no ódio, tudo vai saindo em cada músculo que se enrijece, punho que se ergue, mão fechada que se choca contra outra face tão crispada de ira quanto a do agressor. A barbárie é algo assim, o homem sem o humano ou, de outra maneira, impossível explicar algo como Auschwitz ou Hiroshima, Canudos ou Monte Castelo. Salvador teve medo, era um sujeito de poucas palavras, retraído, uma timidez incômoda. Diriam que era sonso, mas no fundo ele não era mesmo um tipo falante, conversador. Poucos amigos, muitas mulheres, pouca conversa, muitos beijos. Um jeito simplório de encarar a vida, passivo por natureza e com uma certa preguiça quando se tratava de enxergar as coisas da política. Não era de todo um alienado, longe disso, sabia muito bem quem chicoteava e quem era chicoteado. Identificava claramente quem explora e quem é humilhado. Desde pequeno acostumara-se ao silêncio e à disciplina. Trabalhava muito e sem se queixar das tarefas que lhe eram atribuídas, subindo as escadas do Ministério da Educação, de seção em seção. Preferia usar as escadas, gostava de exercitar-se, apesar do cansaço estranho e das palpitações e suores excessivos que lhe causavam esses estirões e que ele atribuía ao consumo exagerado de cigarros. As coisas se acalmaram ao cair da tarde, ao fim do expediente no ministério, e ele resolveu voltar a pé para casa. Precisava pensar. Apesar do receio de que chovesse durante o trajeto, deixou-se seguir pela Avenida Beira Mar, no Flamengo, uma longa caminhada que ele, assumindo o risco de meter-se num temporal, insiste em fazer, maneira de colocar os pensamentos em ordem. O alvoroço da revolta que testemunhou durante o dia encontra eco na tristeza em que está mergulhado há algum tempo. Ela está sofrendo muito, ele pensa e lamenta, e nada se pode fazer. Na calçada, dormindo sobre papelões, dois pivetes encolhidos. O menor deles acorda à passagem de Salvador e lhe pede uns trocados, pra comprar comida, moço. Ele procura nos bolsos algumas moedas que entrega ao garoto. Por trás da sujeira e dos farrapos, aparenta não ter mais do que dez anos. Exatamente a idade que ele mesmo tinha quando a conheceu. Lembra das noites em que, fugindo da violência do pai, alcoolizado, dormia pelas ruas do Catumbi. Recorda o medo, o abandono, o frio. Voltava para casa na manhã seguinte e encontrava a mãe com sinais de espancamento, os irmãos pequenos chorando, famintos, o pai dormindo. Eram tempos de muito sofrimento e desesperança que se resolveram com a morte da mãe, assassinada pelo pai, e o recolhimento dos pequenos aos cuidados da assistência social. Como era o mais velho, acabou numa casa de abrigo para jovens sem família, em Botafogo. Ele lembra quando ela chegou, numa tarde, e lhe ofereceu uma maçã. No canto da sala, sentado, ele viu aquela mulher elegante se aproximar, mas julgara que era apenas mais uma madame como tantas que ele vira chegar no abrigo nos dias de visita, momento em que as crianças alimentavam grande esperança, na maior parte das vezes vã, de conseguirem um lar. Mas não para ele, não para mim, ele cochichava consigo. Ele não. Acostumara-se a ficar só. Qual o seu nome? Salvador. Ele se lembra dos olhos dela brilhando para ele, como que encantada pelo nome que ele acabara de lhe revelar. Salvador? Ela tornou a perguntar, visivelmente emocionada, como se tivesse reencontrado alguém muito querido e que não via há anos. Sim, dona, sou Salvador Monteiro da Silva. Me chamo Isabel, Salvador. Um sorriso doce emoldurado por uma pele muito branca, olhos castanhos. Coma, ela pediu. Não gosta de maçã? Ele, desconfiado, afirmou positivamente com a cabeça. Teve a nítida impressão de que a viu chorar. Ela voltou outras vezes, trazendo biscoitos, doces e, finalmente, um convite, você gostaria de morar comigo, Salvador? Lá se vão mais de vinte anos, ele pensa, enquanto acende outro cigarro e finaliza o percurso da Senador Vergueiro. Já em Botafogo, sobe pela Marquês de Olinda que, a esta hora da noite encontra-se escura e vazia. Anda lentamente, como quem não quer chegar. Ela está muito doente. Seus passos ingressam na Bambina em direção ao número 28 da rua Professor Alfredo Gomes. Uma longa caminhada e muitas lembranças. Não deve passar de hoje, disse o médico com expressão de desânimo e uma certa impaciência revelada na agitação das mãos. Na saída entregou-lhe um receituário. Para as dores, falou baixinho, a voz cheia de fatalismo. Não posso fazer mais nada, me desculpe, agora é esperar. Salvador despediu-se do médico e dirigiu-se ao quarto. Ele estava aguardando fazia um tempão, Salvador, disse Clemência. O doutor ia se embora, mas eu pedi pra esperar aqui, dizendo que o senhor não demorava chegar, mas custou tanto, já andava aperreada, pois não se fala de outra coisa que não a baderna de hoje. Salvador sorriu amarelo para a velha e fez um gesto dizendo que estava tudo bem. Como ela passou o dia? Dormiu um pouco, mas agora voltou a delirar. Às vezes ela grita: Grande mar oceano, e se agita toda. Hoje ela falou o nome da dona Lota, mais de uma vez. Não fala coisa com coisa, é de dar dó. Sobre a cama, respirando com certa dificuldade, a velha senhora tenta inutilmente aspirar o ar que cheira a naftalina, demonstrando um sono agitado. Os cabelos muito brancos e ralos parecem raios partindo de um centro agonizante, como se o rosto se desintegrasse em fiapos brancos e secos, numa explosão de cabelos desgrenhados. As rugas pela face desenham uma superfície intransponível que, serpenteando o canto dos olhos, da boca e do nariz, compõem um quadro abstrato em alto relevo. Nos momentos em que tosse, deixa transparecer nos tênues músculos da face a dor que doses cavalares de morfina não conseguem dominar. Os olhos abrem-se por instantes, pálpebras em movimentos involuntários acelerados. Aparentemente nada enxergam ou nada reconhecem, uma vez que pulam de foco para foco. As luzes do quarto foram apagadas e apenas a lâmpada de um abajur estilo Tiffany, à beira da cama, insiste em iluminar, com sua luz fria, o recinto que tem fumos de câmara mortuária. Sobre o criado mudo, um copo e uma jarra com água, algumas caixas de comprimidos, uma bíblia com capa de couro negro, uma imagem de Santo Antônio e uma de Nossa Senhora dos Prazeres. Nas paredes, diversos quadros, paisagens e retratos aprisionados em molduras de gosto duvidoso, decoradas com figuras de animais, plantas, arabescos em alto relevo, cobertos por fina camada de verniz, esmalte ou, como no caso de uma Nossa Senhora de Copacabana, ouro. A impressão que se tem do lugar é a de que são obras de artistas desconhecidos que se foram há décadas. Quadros assinados por viventes do século XIX, exatamente como seus retratados, cobrem o papel de parede estampado, estilo inglês, que já começa a demonstrar sinais do tempo, como alguns pequenos rasgos e partes que se descolam, especialmente junto ao teto e ao rodapé, o que é natural já que as extremidades se mostram mais frágeis e sucumbem mais facilmente à ação de Cronos. Um enorme guarda-roupas de madeira escura assiste, em seu silêncio de jacarandá, à agonia da velha senhora que se retorce sobre a cama. Uma penteadeira, com um grande espelho de cristal decorado, compõe com um móvel de madeira maciça, também escura, e com um gaveteiro decorado em relevo, pernas torneadas, belíssimo exemplar, logo abaixo da janela que dá para a rua, os móveis daquele quarto. Tapetes muito gastos espalham-se pelo ambiente que parece decompor-se lentamente. Um lustre de cristal empoeirado testemunha quando Salvador, despedindo-se de Clemência, pede gentilmente que os deixem a sós por alguns instantes. Arrastou uma pesada cadeira estilo medalhão, colocando-a próximo à cabeceira da cama. Segurou a mão frágil da mulher, investigou mais com afeto do que propriamente com curiosidade a pele recoberta de manchas sobre ossos pequenos. Uns gravetos, ele pensa. Lembra-se daquela mão oferecendo-lhe uma maçã há muitos anos, acariciando os seus cabelos, acenando adeus. Eram mãos macias, de uma brancura leitosa e perfumada, muito diferentes daquelas mãos que agora se dissolviam, cheias de arestas, entre as suas. A calma era quebrada por movimentos involuntários da face e, principalmente, dos pés, que insistiam estranhamente em oscilar para cima e para baixo, constantemente. Às vezes, aquela imobilidade doentia manifestava-se num aperto de mão mais forte, quando aqueles dedos finos e frágeis pareciam absorver um último lampejo de força e apertavam a mão de Salvador, como se estivessem a pedir socorro, exatamente como fazem os afogados nos momentos

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