Homens sem coração
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Guilherme Piló Sales
Guilherme Piló Sales nasceu em 1942, na Nazaré, onde até aos cinco anos de idade cresceu no meio dos barcos e das caixas de peixe. Veio depois com a família para Matosinhos, onde aprendeu a nadar e a pescar na praia. Aos sete anos, mudam-se para Leça, com os parcos haveres carregados num carro de mão. Aos doze anos, passa a viver em Vila Chã, onde começa a vida no mar, na pesca à faneca e aos congros, com linha de mão e arcos. Vai ao bacalhau pela primeira vez com dezassete anos, em 1960.
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Homens sem coração - Guilherme Piló Sales
Falar com o mar, falar do mar
É saudade, mas não é só saudade. Isto vem de muito fundo. Os meus actos são guiados por mãos desaparecidas e a minha convivência é com fantasmas
RAUL BRANDÃO, Os Pescadores
Conheci Guilherme Piló numa célebre sequência de A Mãe e o Mar (2014), um filme de Gonçalo Tocha sobre Vila Chã e as suas mulheres, pontuado pela participação quase poética de um homem que, a dado momento, nos tenta convencer de que não só fala com o mar, como o mar o compreende. Sorri ao escutá-lo, no escuro do cinema. O meu pai não se atreveria a tanto. A maioria dos pescadores que conheço respeita demasiado o oceano para se dar a essas confianças, mas há meia dúzia deles que, como Piló, parecem entender a linguagem das vagas e da espuma e que se entretêm a falar-lhe. Desconfio que na expectativa de, distraindo-o, lhe sobreviverem.
A minha perspetiva é outra. «O mar não fala, os que lhe sobrevivem, sim», escrevia a propósito de um grande amigo que, praticamente até morrer aos 102 anos, conseguia, de olhos cintilantes, remar aos tempos da sua meninice e da pesca do bacalhau em que fora, durante mais de duas décadas, um dos melhores. Numa homenagem a propósito do centenário de Fernando Matias Marques, de que recupero algumas palavras, assumia que em lugares como Caxinas, onde nasci, ou como na vizinha Vila Chã, também em Vila do Conde, «o mar é como a gente. Cresce e míngua, mata e dá de comer.» E só lhe falta, de facto, falar.
Dada essa sua mudez, escrevia que «para sabermos do mar, é preciso, pois, procurar na língua da maré os homens e mulheres que se tornaram escravos dos seus humores e que conseguiram sobreviver a essa incerteza. Elas esperando, com uma roda de filhos e mil tarefas em terra; eles pescando, na ânsia do regresso, dos corpos delas, e de um copo na loja ao pé da praia. Para sabermos do mar e das suas gentes, é preciso escutar o rumor do tempo que se espraia das suas bocas nos dias de brisa e escrever na areia, para não esquecer.»
Não esquecer. Não esquecer. De outro amigo, que partiu pouco antes de se tornar centenário, guardo outra frase marcante: «Nino, ninguém quer saber da nossa vida para nada!» Por essa altura, já eu tinha feito do registo das suas experiências uma espécie de missão, inglória quando vemos que a morte tantas vezes nos ultrapassa, capitaneando a última viagem destes homens e mulheres antes de que alguém os escute. Falhei com o Tio Acácio, falhei com muitos: homens e mulheres que se calam, remoendo episódios inimagináveis mesmo para um dos seus descendentes, à espera, talvez, de que alguém lhes pergunte. Ou nem esperando nada.
Analfabetos ou humildes demais para se aventurarem a navegar, sem agulha, por um texto, são raros os que escrevem. Na pesca, e na saga incomparável do bacalhau, a história tem sido sempre contada pelos da ré. Senhores da melhor comida, do diário de bordo e da última palavra. Nos navios, e na vida. Não menosprezo a importância dos testemunhos dos oficiais, mas sinto que, tal como na literatura sobre a faina maior do século XX, que ficaria incompleta se, em contraponto à visão da ponte que caracteriza A Campanha do Argus, de Alan Villiers (1951), não tivéssemos Nos Mares do Fim do Mundo (1958) e O Lugre (1959), de Bernardo Santareno, obras ancoradas nas vivências dos pescadores; nos falta, também nos registos mais testemunhais e biográficos, a voz destes últimos.
Embalado pela maresia e pela sofreguidão do Guilherme, que escreve, na verdade, ao mesmo ritmo com que fala – e com uma desenvoltura que faria dele um primeira-linha, se prémio houvesse para quem enche o bote com tanto detalhe –, é provável que ao ler este livro se deixe perder até ao fim. Aconteceu comigo há uns anos, uma noite, na casa dele, em que, convidado, com Gonçalo Tocha, para provar uma das suas especialidades culinárias, nos perdemos ambos, madrugada dentro, enredados na voz ora maviosa, ora lúgubre deste contador de histórias. «Será tudo isto verdade? Quanto daquelas experiências foi já lapidado pelo rememorar constante, para nos ser apresentado, num tom ora excessivo para nos prender, ora suavizado para não escandalizar?», perguntava-me eu, na viagem de regresso a casa.
Saúdo, pois, este livro, que desde essa noite esperava, por ser um búzio que nos traz os mares que perdemos para a história. E saúdo-o pelo arrojo do seu autor, esperando que o exemplo prospere e outros lancem linhas nos bancos da sua própria memória. Que venham mais, lá do rancho da proa onde se forjavam amizades e rivalidades, onde os louvados abençoavam cada acordar, e a exaustão, mais do que o rolo do navio, embalava o descanso nas curtas madrugadas. Tornado salgador nessas viagens à Terra Nova e à Gronelândia, o menino do Tio Abílio conserva esse tempo com o mesmo enlevo com que conservava o bacalhau, e é desfiado e cru que, por estas páginas, ele nos é servido. Bem servido. Abra um bom vinho se puder, para acompanhar a leitura. E, quando terminar, faça, como eu, um brinde a estes «homens sem