Candomblé da Bahia: Resistência e identidade de um povo de fé
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Candomblé da Bahia - José de Jesus Barreto
Copyright © 2020 José de Jesus Barreto
Copyright © 2020 Solisluna Design Editora
Edição
Enéas Guerra
Valéria Pergentino
Design e Editoração
Valéria Pergentino
Elaine Quirelli
Capa e Ilustrações
Enéas Guerra
(ilustração da capa baseada em foto de Pierre Verger)
Fotografias
Isabel Gouvea
Agradecimento especial
Cida Nóbrega
Revisão do texto
Maria José Bacelar Guimarães
E-ISBN
978-65-86539-07-3
Todos os direitos desta edição reservados à Solisluna Design Editora Ltda
editora@solislunadesign.com.br
www.solisluna.com.br
Sumário
PREFÁCIO
A BAHIA
O TRÁFICO
A RELIGIÃO
AS IRMANDADES
O CANDOMBLÉ
OS TERREIROS
OS ORIXÁS
SINCRETISMO
AS FESTAS
GLOSSÁRIO
BIBLIOGRAFIA
NOTAS
Landmarks
Cover
Frontmatter
Bibliography
Glossary
O ser humano é livre para abraçar qualquer crença. A fé não se impõe, nem se chega a ela pelo intelecto. Chega-se ao Orixá pelo coração.¹
maria stella de azevedo santos
Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá
PREFÁCIO
Da Bahia costuma-se dizer que o melhor está preservado nas histórias de vida de seu povo. São relatos de uma gente simples que nada têm a ver com os escritos oficiais. São casos recheados de crenças e certezas improváveis que retratam um jeito singular de ser e de viver.
Narrativas como a de um moço trajado de branco que nunca esqueceu o som dos atabaques distantes que enchia de mistério as noites do Subúrbio Ferroviário de Salvador e sua alma de criança, nos anos 50 passados. O toque monótono e repetitivo do couro instigava sua curiosidade infantil e acalentava nele sonhos de um outro mundo, mágico, encantado. Maiorzinho, escapava da vigilância severa da mãe católica, desafiava o medo e seguia a trilha dos batuques que, de tempos em tempos, festejavam São Jorge, Santa Bárbara, Cosme e Damião, orixás e caboclos. Esticado, na ponta dos pés, o queixo na janela, espremido entre dezenas de outros meninos que esperavam a hora da distribuição da comida do santo
, apreciava atônito aquele ritual, coração na boca, os olhos pequenos para registrar tudo o que acontecia naquela sala apertada, enfeitada de bandeirolas e folhas verdes, atulhada de gente de cor vestida de branco que falava e cantava numa linguagem incompreensível a seus ouvidos. A despeito do clima de festa – a dança, o canto, o ritmo, o chão batido coberto de areia fina e folhas de pitanga –, o tom era solene, de respeito, mesmo do lado de fora. Num canto da sala, num altar improvisado e colorido com papel celofane, ficavam entronizadas as imagens das divindades homenageadas. O santo pegou!
, gritava alguém, enquanto os tocadores batiam mais forte nos atabaques e o burburinho se formava em torno de uma figura ou outra que girava com um ar esquisito, parecendo que ia cair. O medo cerrava os olhos da criançada que não achava pernas para sair do lugar, entorpecida e magnetizada pela energia que emanava, o bafo do calor e o cheiro de incenso exalando da sala repleta. O guri voltava para casa enfeitiçado e não conseguia dormir à noite, revendo as imagens, tentando compreender o incompreensível. Mas o coração repousava ciente de que alguma coisa de sagrado acontecera.
Anos depois de uma formação católica rígida em colégio interno, aquele menino já adulto reencontrou-se por acaso com o mistério. Pra que vosmecê vai comer esse acarajé com pimenta no dia de hoje?
, perguntou-lhe a baiana cheia de contas e balangandãs, uma negra gorda e lustrosa, daquelas de quem nunca se esquece a fisionomia, dona de um tabuleiro ao lado do Mercado Modelo, na cidade baixa da velha Salvador. Era tarde de verão de uma sexta-feira, algumas batidas de limão embaralhavam as ideias e a fome apertara. E por que não?
, indagou o moço de volta, já afiando o pensamento para o debate. Em vão. Ela riu gostoso, mostrando os dentes alvos, olhou com maternal superioridade e religou (o termo religião vem daí, do latim re-ligare) a alma dele ao mistério, assim falando:
– Meu filho, sua cabeça é de Oxalá, e Oxalá não come azeite e muito menos pimenta, ainda mais hoje, que é sexta-feira, dia dele. Senti seu santo logo que você chegou aqui perto. Deixe eu lhe dizer, não tome cachaça também, dia de hoje. Vista branco e acenda uma vela pra ele, seu pai, toda sexta.
Perplexo, o moço curvou-se para pedir a bênção e, de quebra, ganhou um belo colar de contas brancas que ela retirou do pescoço e passou sobre a cabeça dele, ajeitando-o no pescoço sob a camisa. Passou a fome, o efeito da cachaça, e ele foi para casa matutando no acontecido.
Decidido a tirar aquela revelação a limpo, andou consultando mães e pais de santo que jogavam e liam a mesma mensagem nos búzios: Oxalá o protegia. Era como se uma porta lhe tivesse sido aberta, como se dentro dele acendesse uma luz. E, mesmo sem nunca ter se entregado aos ritos da iniciação, só por estar ciente de que uma divindade regia sua cabeça foi o bastante para se sentir em paz, protegido, abrigado no traje branco de todo dia.
***
A pretensão deste trabalho é tão somente apontar uma trilha, acender uma chama, apagar o medo e, com a licença e as bênçãos dos Orixás (santos, voduns, inquices, caboclos, encantados, anjos da guarda), abrir uma porta, uma fresta que seja, para a percepção, sem preconceitos, de um mundo diferente, mágico e real, rico e pouco conhecido, mesmo tão presente: a religião e o culto aos Orixás nos terreiros de candomblé da Bahia. Axé.
Este trabalho é dedicado ao povo de santo
da Bahia.
A BAHIA
Berço de uma nova nação, misturada e única
Poucos conseguiram retratar em palavras a alma baiana como o escritor Jorge Amado. Em 1983, por ocasião de uma conferência sobre a cultura e a