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A Mesa das Autoridades: O Comer e o Poder no Candomblé
A Mesa das Autoridades: O Comer e o Poder no Candomblé
A Mesa das Autoridades: O Comer e o Poder no Candomblé
E-book454 páginas10 horas

A Mesa das Autoridades: O Comer e o Poder no Candomblé

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Sobre este e-book

Resultado de pesquisa independente em terreiros e com lideranças religiosas do candomblé em São Paulo, João Pessoa e Fortaleza, este livro traz ao centro da discussão o mundo das festas de candomblé e os banquetes servidos às visitas. Ao demonstrar que comida também serve para governar, Patrício Carneiro Araújo conduz-nos por uma sociologia da mesa das autoridades, mostrando quanto, no mundo dos terreiros, comer é um ato político; e cozinhar, um ato de poder: uma autêntica diplomacia da boca.
As relações de poder, próprias ao mundo intra e interterreiros, passam por diferentes espaços, representados por cadeiras e mesas em torno das quais orbitam alianças políticas e rígidas etiquetas ligadas à hierarquia religiosa e ao tempo de iniciação. Aí, o lugar ocupado à mesa está diretamente relacionado com a posição ocupada no sistema religioso. Aqui, a discussão vai além da especulação sobre a dieta das divindades e concentra-se naquilo que as pessoas comem e como comem. Por outro lado, ao buscar compreender os sentidos do comer na sua interface com as redes de poder religioso, o autor demonstra quanto as tradições afro-religiosas são dinâmicas, seja adaptando sua mesa às novas dietas alimentares que chegam aos terreiros por meio dos adeptos, seja criando novas tradições alimentares determinadas pelos orixás.
Da sua cadeira ou da sua mesa, babalorixás e ialorixás governam o microcosmo dos seus terreiros, valendo-se de um sistema de redistribuição alimentar e de uma endopolítica fundamentada na ideia de axé, também sinônimo de poder. E como a comida é portadora de axé, comer confunde-se com poder, já que ter poder também é poder comer o que se quer.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de fev. de 2022
ISBN9786558205913
A Mesa das Autoridades: O Comer e o Poder no Candomblé

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    A Mesa das Autoridades - Patrício Carneiro Araújo

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Dedico este livro à minha irmã Sueli (in memoriam – no Orum), que

    não conheceu o candomblé, mas, assim como eu, conheceu a fome.

    Agradecimentos

    Agradeço à minha família biológica por todo o apoio que sempre me dá. Agradeço também à minha família de santo, a Egbe Ireo (Diadema, SP), na pessoa do meu babalorixá, Daniel Oguntobi Gonzaga, e aos demais membros da comunidade, entre eles a Ekede Wilma Rigolon (Odemolá), Adriana de Oyá, Camila Losimfeld de Oxum, Danielle de Oyá, Valéria de Oxósse, Andréia de Oyá e ao chef Márcio. Ainda em São Paulo, agradeço à Mãe Solange Buonocore, à Iyá Senzaruban (Shirley Badaró), ao babalorixá Celso de Oxoguiã, ao Pai Kabila, ao babalorixá Gil Sampaio Ominirô, à Tatiane Montanholi e ao Gil de Oxoguiã. Em João Pessoa, agradeço ao Pai Mano de Oxósse, à ebome Dulce Edite de Yansã, à Mãe Chaguinha de Oxum, à Ekede Daniele de Oxalá, à Mãe Tuca de Oxoguiã, à Mãe Paula de Oxum. No Ceará, agradeço ao Babá Cleudo de Oxum, à Mãe Valéria de Logum Edé, ao Pai George de Iemanjá, ao Ogã Leno de Oxósse e à Mãe Evelane de Iemanjá, ao Babá Linconly de Ayrá, ao Babá Leonardo de Oxum, ao Pai Shell de Obaluayê, aos ebomes Joana de Oxum e Joécio de Oxósse, aos ogãs Igor de Oxósse e Ricardo de Oxoguiã, ao Pai Aluízio de Aganjú, à Marina Vieira de Oliveira e a Ozaías Rodrigues. Agradeço à Unilab, a todos os seus profissionais, incluindo meus colegas do Colegiado de Antropologia e dos demais colegiados, e a todos os seus estudantes, das mais diversas nacionalidades. Agradeço aos meus alunos e alunas do curso de Antropologia e aos membros do Tierno Bokar: núcleo de pesquisas e estudos sobre o fenômeno religioso. Em Recife, agradeço à Maria José dos Santos e à Graça Elenice Braga. Em Paris, agradeço à Giovanna Capponi. Também agradeço ao professor e babalorixá Vilson Caetano de Sousa Júnior, por ter feito a leitura dos originais e aceitado o convite para escrever o prefácio deste livro. Agradeço à equipe da Câmara IV do Consea/Fortaleza, na qual eu tenho assento representando a Coletivo de Cultura Afro-Brasileira Ibilé, a quem também agradeço. Por fim, agradeço aos meus editores, pela disposição em publicar este livro e pela paciência tão exigida durante o processo de edição e lançamento do mesmo. Serei sempre grato.

    PREFÁCIO

    ou

    A comida dos santos e os de comer da comunidade

    Os estudos sobre a alimentação ritual dos terreiros de candomblé contribuíram, sensivelmente, para o fortalecimento da antropologia da alimentação no Brasil e com o diálogo entre as ciências sociais, humanas e da saúde.

    Trabalhos em torno dos de comer dos santos, ou da chamada cozinha votiva, ou cozinha sacrificial, há mais de 20 anos vêm se destacando entre os estudos afro-brasileiros e por meio das chamadas literaturas de divulgação, algumas delas reeditadas inúmeras vezes. Tais fatos, obrigam-me a relembrar o meu primeiro encontro com o professor Vivaldo da Costa Lima no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, nos idos de 1990, quando, almejando lançar os meus primeiros passos na antropologia, fui lhe apresentar um projeto sobre os de comer dos orixás a ser desenvolvido na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sobre o qual, entre outras coisas, me disse: Os santos comem o que os homens comem. E, se há comidas de santo, é porque sempre houve santos para comer. Os santos comem comidas mais elaboradas.

    Sem sombra de dúvidas, a maioria dos trabalhos em torno da comida dos orixás norteou-se por tal premissa, daí aqueles terem recorrido à catalogação de maior número de iguarias servidas a esses, realizado classificações baseadas em modelos binários e enfatizado aspectos simbólicos da comida e do comer nessas religiões em detrimento de outros contextos.

    A Mesa das Autoridades: o comer e o poder no candomblé, de Patrício Carneiro Araújo, se coloca em outro tempo ou permite situarmo-nos no tempo de terreiros de candomblé onde os santos têm comido menos o que os homens comem, ou, em outras palavras, as comidas servidas aos orixás têm se afastado cada vez mais das comidas degustadas pelos visitantes ou até mesmo dos próprios filhos que estão oferecendo comida ao seu orixá em dias de festas. Terreiros que estão sendo desafiados, cada vez mais, a cederem a regimes alimentares que lhe são impostos ou adotados. No âmbito das religiões afro-brasileiras espraiadas de norte a sul do Brasil, tal fenômeno não é de tudo novo. O que nos chama a atenção é a intensidade e a rapidez com que tais mudanças têm acontecido. Assim também como têm sido rápidas as soluções encontradas por essas comunidades a fim de manter a fidelidade a suas tradições.

    O trabalho de Patrício Carneiro Araújo se coloca na direção de entender não apenas o porquê de, nem sempre, os santos e as pessoas dividirem a mesma comida, mas, também, a adoção de novos alimentos, como o bolo confeitado, ou de novos regimes alimentares pela chamada cozinha votiva dos orixás, como a abolição do sangue em certas comunidades, fato que, embora tenha encontrado resistência das lideranças religiosas, já vem acontecendo de forma lenta e tímida em algumas regiões do país e que, portanto, não pode passar despercebido dos estudos afro-brasileiros, tema que de certa forma o autor deste livro já enfrentou em outro trabalho.

    Paraibano, filho de Oxóssi, orixá da caça de maior expressão, segundo a mitologia dos orixás, o dono da carne; não apenas a que comemos, mas a que reveste os nossos ossos, referendado como origem ancestral relacionada ao corpo dos povos de língua iorubá no Novo Mundo, o autor desenvolveu o seu trabalho em três regiões metropolitanas, São Paulo, João Pessoa e Fortaleza, e foi privilegiado por ter como interlocutores sacerdotes, sacerdotisas e lideranças representativas da alta hierarquia do candomblé desses lugares, além de contar com a sua experiência e vivência como iniciado. Esse olhar de dentro permitiu ao autor transcender ao barracão, local onde concentrou as suas observações, sem infringir as chamadas coisas de fundamento, ou awo, responsável pela conservação, permanência e manutenção das religiões dos orixás no Brasil.

    A máxima de que comida é axé é bastante conhecida e já foi revisitada várias vezes para falar sobre a cozinha ritual, o ato de comer, a dieta dos orixás e a distribuição da comida nos terreiros de candomblé. Este livro, todavia, nos propõe outra abordagem. Pensar a comida como poder. Comida é poder, entendido como relações que estão associadas a questões sociais, políticas e econômicas. É deste olhar que o autor nos conduz através de lentes que nos permitem ficar mais próximos das mesas, esteiras, camas e cadeiras, todos vistos como lugares de poder no candomblé.

    A mesa no candomblé, segundo o autor, extrapola o seu sentido literal e está para além do artefato de origem ocidental. Ela diz respeito a configurações que em determinado espaço adquirem e refletem relações sociais e políticas que podem ser demonstradas por meio daqueles que se sentam à mesa e dos que estão fora da mesa, naqueles que têm assento em determinadas mesas ou àqueles que se sentam a mesas à sua volta e, por fim, nos lugares dispostos nela.

    Símbolo de poder e prestígio, as mesas de bolo têm se tornado cada vez mais comuns e, em alguns locais, obrigatórias. Mesmo dividindo opiniões dos sacerdotes entrevistados, a mesa do bolo tem sido um bom exemplo para demonstrar que a adoção de certos elementos exige a criação de ritos, o que é também explicado pelo poder e prestígio do sacerdote, a exemplo da recente invenção das Panelas de Oxóssi, abordada neste livro, por um Babalorixá que tem uma casa de candomblé no interior de São Paulo em comemoração ao cinquentenário de sua iniciação. O termo invenção aqui utilizado nada tem de pejorativo. Além de nos permitir fugir de esquemas já conhecidos que permitem perceber a festa de candomblé em momentos compostos pelo padê, o xirê, o rum e o ajeum, ou seja, o momento de invocação a Exu e aos antepassados; o momento de invocação dos orixás culminado com a sua vinda; o momento em que os orixás retornam ao barracão e dançam as suas cantigas e, por fim, a divisão da comida, o bolo permite prolongar o tempo da festa, demonstra o autor, ao mesmo tempo que propõe uma espécie de arqueologia do bolo.

    Este livro, por meio de uma etnografia das festas que o autor tomou parte e de depoimentos recolhidos das lideranças religiosas, propõe pensar o ato de comer, para além da divisão das comidas dos orixás, sob uma abordagem temática metodológica surgida em contextos onde cada vez mais os homens tomam menos parte dos repastos oferecidos por eles próprios aos orixás, o que o autor chama de "continuidades e descontinuidades entre o menu dos deuses e das pessoas. Mais do que se ocupar com a dieta dos orixás, ou cozinha votiva dos santos, o livro se debruça sobre os ritos de comer, do comer como ato político e cozinhar como um ato de poder".

    Tem, também, o povo de santo se ocupado em criar tipologias para falar sobre suas comidas, como comidas de egbé, comidas africanas e comidas sociais. As primeiras, conforme demonstra o autor, dizem respeito àquelas servidas internamente; as segundas, à comida dos orixás propriamente dita; a última, à que é oferecida aos convidados. Há três anos, uma pesquisa realizada em terreiros de candomblé na cidade de Salvador, sob a minha coordenação, demonstrou também que a velha oposição entre comida de santo e comida de branco, esta última entendida como a comida do dia a dia, não servia para pensar mais a comida dos terreiros, ora porque a palavra branco havia adquirido outra semântica, ora porque, como demonstrou o autor, o cenário tem mudado e as religiões afro-brasileiras têm procurado atualizar as suas tradições a fim de permanecer dialogando com a contemporaneidade. Também, na cidade de Salvador, apareceram três categorias: a comida refinada, servida nos dias de festas, a comida de santo e a comida do dia a dia, chamada também de feijão com arroz. Como nos locais pesquisados, em alguns terreiros da cidade de Salvador, as comidas refinadas, chamadas também de grã-finas, têm diminuído a presença das chamadas comidas de azeite nos dias de festas. Isso foi abordado no ano de 2016 mediante Comida de santo e comida de branco, artigo nosso publicado na Revista Pós Ciências Sociais, da Universidade Federal do Maranhão, v. 11, n. 21. Segundo Patrício Carneiro Araújo, a formulação de novas tipologias se articula com base em lugares de poder dentre os quais se destaca a mesa das autoridades, lugar reservado aos comensais da alta hierarquia do candomblé, representada por lideranças de outros terreiros. O autor chama a atenção a que essa mesa é atravessada por gestos e códigos de etiquetas que, entre outras funções, cumprem a de reforçar a distância entre as pessoas que se sentam e as que não se sentam à mesa.

    Lugar do qual a liderança religiosa governa, mas também de encontro e interação, a mesa reservada aos Babalorixás, Ialorixás e outros cargos de mando do candomblé é descrita pelo autor como espaço de construção de teias de poder e redistribuição de axé. Por meio dela, podem-se perceber relações a semelhança do potlatch observado por Marcel Mauss na Polinésia, mas também redefinições de fronteiras hierárquicas. É preciso fazer uma sociologia da mesa das autoridades, segundo o autor, a fim de compreendermos o comer como parte de um sistema de distinção sociorreligiosa e a mesa como parte de um complexo sistema de classificação do qual os indivíduos também fazem parte.

    A Mesa das Autoridades: o comer e o poder no candomblé, como o próprio autor referiu, é um livro não concluído ou que não apresenta conclusões. Está aí uma de suas riquezas. O leitor vai se deparar com isso não apenas ao esperar um capítulo conclusivo, mas em outras passagens do texto em que o antropólogo fornece pistas para o desenvolvimento de novas pesquisas. Sábio filho do caçador, como Oxóssi compreende que a permanência da comida dos orixás não depende da dieta dos homens.

    Acredito que a expressão os santos comem o que os homens comem era mais uma retórica para nos forçar a perceber que é preciso ir além da cozinha ritual, o que este trabalho faz de maneira singular e sem nada dever a outros que lhe antecederam. Reconhecemos, todavia, que foi preciso os orixás cederem mesmo aos homens de maneira mais intensa e abrirem mão de iguarias que outrora seus devotos apenas degustavam por causa deles. Isso, sem sombra de dúvida, obriga os estudos sobre a cozinha ritual dos terreiros de candomblé a transcenderem a premissa que norteou tantos trabalhos.

    Afinal, já nos foi dito que comida é boa para pensar e que comida é boa para ensinar. Esta obra sugere que comida é boa para governar, pelo menos nos terreiros de candomblé e nos contextos abordados em que esses sacerdotes e sacerdotisas têm participado de discursos contemporâneos, sendo obrigados a adaptarem as suas mesas para manterem unidos homens e orixás.

    Prof. Dr. Vilson Caetano de Sousa Júnior

    Professor da Universidade Federal da Bahia

    Sumário

    Introdução 19

    1

    Considerações sobre o ato de comer no candomblé e nas religiões afro-brasileiras 25

    1.1 O que significa comer, no candomblé? 29

    1.2 Bori: quando a cabeça come, ela passa a ser 31

    1.3 Baba Pecê Fala Sobre a Origem da Feijoada de Ògún ٣٤

    1.4 Èsù: a Boca que tudo come 39

    2

    A mesa: artefato ocidental assimilado na diáspora 43

    2.1 A esteira e a mesa nos terreiros de candomblé 49

    3

    O Bolo de candomblé: arqueologia de uma tradição

    em desenvolvimento 55

    3.1 A mesa do bolo em terreiros de São Paulo, Paraíba e Ceará 55

    3.2 O bolo de festa em terreiros de São Paulo: metamorfose dos

    doces tradicionais 55

    3.3 O bolo de festa em terreiros de João Pessoa: a busca por sobriedade 70

    3.4 O bolo de festa em terreiros de Fortaleza: o orixá se confraterniza 77

    3.5 Arqueologia do bolo: sua impressionante ausência nas primeiras

    etnografias a respeito do candomblé 84

    3.6 O bolo e seus ritos como estética da comemoração 89

    4

    A mesa do santo: quando as divindades comem 107

    4.1 As dicas deixadas por Vivaldo da Costa Lima 108

    4.2 A ênfase nas comidas de santo e o Olubajé: breve incursão à mesa de um rei que come no chão 114

    5

    Comer e poder no candomblé:

    influências e confluências 119

    5.1 O Ajeum: comendo entre mesas e esteiras 119

    6

    A mesa das autoridades: simetrias e assimetrias à mesa 141

    7

    Lugares de poder no candomblé e os sentidos da mesa das autoridades: a cama, a cadeira e a mesa 151

    7.1 A cama e o poder que dura o tempo de um romance 151

    7.2 A cadeira e a força do poder de quem nela senta 157

    7.3 A mesa e o poder de quem nela toma parte 165

    7.3.1 A mesa pessoal do babalorixá ou da ialorixá na sua casa privada 165

    7.3.2 A mesa de jogo do babalorixá ou da ialorixá 168

    7.3.3 A mesa da cozinha do terreiro 171

    8

    A mesa das autoridades em dias de festa:

    a hora do Ajeum 191

    8.1 O que dizem os religiosos a respeito da mesa do Ajeum:

    babalorixás e ialorixás 196

    8.2 O que dizem os religiosos a respeito da mesa do Ajeum: ogãs 210

    8.3 Sociologia da mesa das autoridades: ensaio de uma compreensão do poder da mesa 217

    9

    Acrescentando uma mesa: vegetarianos e veganos

    no candomblé 243

    9.1 Vegetarianismo e candomblé na metrópole paulistana: dissensos de um campo em movimento 245

    9.2 Vegetarianismo e candomblé no Ceará: negociações possíveis que

    visam à acolhida 255

    9.3 Dinâmicas internas ao candomblé e o trato da carne 263

    10

    As Panelas de Oxósse: vendo nascer uma tradição na metrópole pós-moderna 265

    10.1 A origem das tradições 267

    10.2 Quem tem o poder de criar tradições? 269

    10.3 As Panelas de Oxósse: fartura de carne na casa do rei 274

    Referências 279

    Índice remissivo 285

    Introdução

    Este livro é resultado de pesquisa independente e vivências no candomblé, uma religião afro-brasileira na qual a comida e o ato de comer estão intimamente ligados ao culto às divindades e às relações de poder. Mas, para ser honesto, devo explicar também que as origens mais remotas deste livro podem ser localizadas na minha infância e adolescência no interior da Paraíba, quando vivi a traumática e dolorosa experiência de passar fome. É escusado dizer que naqueles difíceis anos de seca nem eu nem meus irmãos, também pequenos, tínhamos consciência dos efeitos da fome sobre nossos corpos em formação e nossa psicologia pessoal em desenvolvimento. O fato é que muito cedo minhas irmãs e meus irmãos – éramos quatro ao todo, apesar de minha mãe ter tido 12 filhos – tiveram que sair de casa para trabalhar e viver fora. Hoje compreendemos que a partida precoce também tinha como objetivo contornar o problema da escassez de alimentos em casa. No trabalho, mesmo que fosse insalubre e em regime de exploração aguda, ao menos havia acesso à comida.

    Minha irmã mais velha saiu cedo de casa e foi viver na Bahia. Lá morreu, aos 52 anos, com fortes sintomas de desnutrição. Meu irmão mais velho, por volta dos 15 anos, literalmente se mudou para a padaria onde trabalhava em regime de tempo integral, sem nenhuma garantia trabalhista registrada em carteira de trabalho. Vinha para casa apenas à noite, contudo bem nutrido. Minha irmã mais nova também se mudou para a casa de uma senhora onde viveu por anos como empregada doméstica. Lá ela tinha acesso à comida. Muitas vezes fui visitá-la na esperança de almoçar dignamente. Não precisava lhe dizer que estava com fome: pelos meus olhos ela entendia e fazia questão de me alimentar. Comida gostosa e bem preparada, como até hoje ela faz. Tempos depois ela, assim como meu irmão, mudou-se para São Paulo, onde trabalhou por muitos anos em restaurantes e lanchonetes, muitas delas nas praças de alimentação dos grandes shoppings paulistanos. Nossa história é como se fosse uma constante perseguição ao alimento.

    No seu clássico livro Geografia da Fome, publicado pela primeira vez em 1946, e se referindo a uma década anterior àquela data, Josué de Castro (1987) falou de quanto até aquele momento abordar os temas fome e sexo representava um tabu, fato que se revelava pela escassez de pesquisas a respeito desses dois assuntos. Segundo ele, esse tabu estaria ligado, entre outras causas, à vergonha de tocar nesses assuntos. Sei que ainda hoje falar da fome como experiência pessoal vivida ainda representa um tabu para muita gente¹. Para mim não é mais. Talvez pelo fato de hoje acreditar que já não estou mais exposto a esse risco, mesmo sabendo que essa sensação pode ser apenas uma ilusão, já que as inconstâncias deste mundo no qual vivemos não dão mais garantias a ninguém acerca disso. De qualquer forma, na minha família até hoje é muito comum falarmos do tempo em que passamos fome. Minha irmã Paula mantém uma relação muito própria com os alimentos, não admitindo o desperdício nem se privando de comer alguma coisa que lhe apetece e está ao alcance de suas possibilidades financeiras. Já vi muitas vezes ela reclamar de seus filhos ao se recusarem a comer determinadas comidas, com o argumento de que eles deveriam agradecer a Deus por ter esse alimento, já que no nosso tempo nem isso tínhamos. Esse tipo de comportamento é típico de quem passou fome e depois se vê em situação de maior segurança alimentar. No mundo dos terreiros, os alimentos também são vistos como sinais de bênçãos divinas, como será mencionado ao longo deste livro.

    Com 15 anos de idade, fui para o seminário. Naquela época eu era movido por um sincero sentimento de vocação sacerdotal. Durante os sete anos em que permaneci lá, tive acesso à comida boa e bem preparada. Contudo, por termos cozinha e cozinheira sempre à nossa disposição, nunca aprendi a cozinhar. Convivo até hoje com essa limitação, sendo obrigado a peregrinar por diferentes espaços nos quais se servem alimentos prontos a preços módicos. Isso também tem contribuído para que eu me interesse progressivamente pela pesquisa a respeito de alimentação. Da mesma forma, a condição de comedor solitário me tornou ainda mais sensível para a observação de formas de comensalidade em que a dimensão coletiva é reforçada pelo ato de comer, como acontece nos terreiros de candomblé.

    Por quase todo o tempo em que estive no seminário, sempre me coloquei como voluntário nos serviços de copa e cozinha. Nada pensado, tudo inconsciente. Mas era impressionante como eu sempre dava um jeito de estar próximo às áreas de cuidado com os alimentos. Talvez o instinto de sobrevivência e autopreservação me levasse a isso. Honestamente, eu não agia de forma pensada. Quando, em 2005, já morando em São Paulo, tornei-me professor de Educação Básica, na rede estadual de educação, era nas cozinhas das escolas que eu fazia minhas refeições. Comida grátis, mas muito ruim, não obstante o grande esforço das cozinheiras para melhorar o sabor daquela comida pré-pronta fornecida pelo Estado. Fiz amizade com quase todas as cozinheiras das escolas nas quais trabalhei. Uma dessas cozinheiras, talvez em função da convivência comigo, resolveu fazer graduação em Letras, mesmo na altura dos seus quase 70 anos.

    Quando descobri o candomblé e o mundo dos terreiros, por volta do ano 2000, em João Pessoa, um dos aspectos que mais me encantaram nessa religião foi justamente sua relação com os alimentos e com o ato de alimentar deuses e pessoas. Minhas constantes visitas aos terreiros do Pai Gilberto de Xangô Alafin (bairro de Cruz das Armas) e Pai Pedro Veras (bairro do Castelo Branco I) me colocaram diante de verdadeiros potlatch². As comidas diversificadas e frias, servidas em alguidares no chão do terreiro, me fizeram perceber quanto religião e alimentação podem formar uma combinação capaz de dar respostas existenciais às pessoas, mesmo que elas estejam passando por profundas crises existenciais e de fé, como era meu caso naquele momento. Afinal de contas, seguir uma religião de barriga vazia não deve ser nada fácil. Descobri no candomblé uma religião que não se preocupava apenas com o espírito, mas também com o corpo das pessoas. Corpo esse que deve estar sempre bem nutrido para melhor receber as divindades.

    Foi por meio de uma comida de Oxum (ipeté) que vivenciei minha primeira experiência de transe de orixá, no terreiro de Mãe Chaguinha de Oxum (Ilê Axé Omi Odé), em João Pessoa. Essa mesma ialorixá é uma das colaboradoras para a pesquisa que deu origem a este livro. Nas suas palavras reproduzidas aqui se poderá perceber a importância da comida nessa religião. Aquela pequena porção de ipeté, comida que eu jamais tinha experimentado, alterou totalmente minha respiração, batimentos cardíacos, circulação sanguínea, temperatura corporal e nível de consciência. Mais tarde me explicaram que tudo aquilo que eu senti era Oxósse, meu orixá de cabeça. Depois daquela experiência, eu nunca mais seria o mesmo e nunca mais me relacionaria da mesma forma com os alimentos.

    Foi por meio de uma das suas comidas mais apreciadas que Oxum me deu de presente a Oxósse, seu companheiro de aventuras e amores. Eu havia redescoberto os alimentos pela religião. E, como naquele momento eu já vinha passando por um processo de desidentificação com o Cristianismo em geral e com o Catolicismo em particular, pelos alimentos redescobri a importância da religião. A religião me levava na direção dos alimentos. Dezenove anos depois, eu dedicaria parte do meu tempo para pesquisar as relações entre essa religião e os alimentos; o resultado dessa pesquisa é o que você tem em suas mãos.

    Desde que me foi revelado meu orixá – Oxósse – e que me iniciei no candomblé, no ano de 2007, a vivência da religião passou a ser uma constante descoberta da importância dos alimentos como veículo de comunicação entre as pessoas e as divindades. Conforme fui compreendendo os significados do meu orixá pessoal, Oxósse, e sua relação com os alimentos, principalmente com a caça e a agricultura, também fui me identificando com um desejo quase incontido de pesquisar essas relações entre comer e poder.

    As pesquisas que desenvolvi acerca do segredo ritual no candomblé (ARAÚJO, 2018) e os sentidos do sacrifício de animais (ARAÚJO, 2019) nessa religião me levaram a querer pesquisar também a questão da alimentação. Não mais focalizando as comidas de santo, como sempre fizeram os pesquisadores das culturas alimentares de terreiro, mas buscando os significados profundos do comer e do poder, ou seja, buscando entender e explicar as comidas das pessoas e as formas de comer nos terreiros. Queria, grosso modo, compreender o porquê de nem sempre as comidas dos santos serem as das pessoas. Queria compreender os diferentes sentidos da palavra comer no candomblé. Cheguei então à refeição oferecida nos finais das festas e, desta, à mesa das autoridades religiosas. Essa mesa, como tempo e espaço de política e negociação, que encontrava forma naquilo que Jean-Marc Albert (2011) chamou de diplomacia de boca, me pareceu lugar e tempo privilegiados para compreender as redes de poder existentes no mundo intraterreiro e interterreiros.

    Neste livro, portanto, o leitor encontrará resultados da confluência de três movimentos: (i) minha trajetória pessoal, fora e dentro do candomblé; (ii) uma acurada pesquisa bibliográfica acerca dos estudos de alimentação no candomblé; e (iii) pesquisa de campo realizada em terreiros de São Paulo, Paraíba e Ceará. No que se refere à pesquisa de campo, incluiu observação sistemática, em dias comuns e de festa, e entrevista com ialorixás, babalorixás, ogãs, yabassés³ e pessoas de cargo dentro da religião, nessas três regiões do Brasil. Durante a pesquisa de campo, procurei observar, o máximo possível, as festas nos terreiros que acompanhei e entrevistar um número significativo de lideranças religiosas. Mesmo tratando também dos modos de comer dos estratos hierárquicos que ocupam as posições mais subalternas, não me detive nelas, tendo focalizado mais as lideranças – babalorixás e ialorixás – e a figura dos ogãs, por motivos que serão explicados detalhadamente nos capítulos que tratam da mesa deles nas festas.

    Ao analisar a importância da mesa das autoridades religiosas, terminei também descobrindo outros lugares de poder que, se não na mesma intensidade, ao menos de forma relevante, participam das redes de governo dos terreiros. Foi assim que também tive que abordar o papel da cama e da cadeira das lideranças de terreiro. Como se verá, o papel desses dois espaços de poder não é desprezível no que se refere ao poder das lideranças à frente de uma comunidade religiosa. Talvez o que se diz da cama desperte alguma polêmica ou mesmo estranhamento, principalmente entre religiosos. Caso isso aconteça, relembro aos leitores e leitoras que, mesmo sendo religioso, também sou cientista social. E, como tal, não posso me furtar de pesquisar determinadas questões, mesmo que poucos se sintam confortáveis para fazê-lo. Prefiro pecar por tentar a pecar por inércia. Contudo, caso alguém não se sinta representado na escrita, nada impede que faça uma pesquisa mais profunda e explique melhor aquilo que por desventura eu não consiga fazer.

    Para alguns leitores e leitoras acostumados com leituras mais breves, este livro poderá parecer longo e excessivamente detalhado. Talvez os trechos reproduzidos das entrevistas também pareçam por demais extensos. Sobre isso relembro que, para compreender bem os sentidos do comer no candomblé, é imprescindível dar voz aos protagonistas dessas dinâmicas alimentares. Sendo assim, assumo que se trata de uma descrição (etnografia) que se pretende densa e deixo aos leitores e leitoras a decisão de ler todas as partes ou apenas aquelas que melhor despertem o seu interesse e atenção. Acho que, assim como ao comermos gostamos de ter a liberdade de escolha, ao lermos também deveríamos tê-la. Logo, não se sinta na obrigação de ler o livro inteiro e fique livre para pular partes ou ler apenas aquelas que lhe parecem mais importantes. Contudo, recomendo que não perca a visão geral deste tão importante panorama.

    1

    Considerações sobre o ato de comer no candomblé e nas religiões afro-brasileiras

    Muitos são os estudos sobre o ato de comer e seus significados nas mais diversas culturas. Em seu livro Comer: necessidade, desejo, obsessão, Paolo Rossi, por exemplo, começa justamente evocando os diferentes significados do ato de comer na forma descrita pelos dicionários. Naquele estudo, para além dos significados literais e metafóricos do ato de comer, Rossi discute os sentidos simbólicos desse ato, chamando a atenção para o fato de que:

    Como muitos – há muito tempo – têm enfatizado, as ações para se livrar da fome e da sede empreendidas pelos membros da espécie humana

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