Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Mama: um relato de maternidade homoafetiva
Mama: um relato de maternidade homoafetiva
Mama: um relato de maternidade homoafetiva
E-book358 páginas4 horas

Mama: um relato de maternidade homoafetiva

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Uma noite, conversando no sofá, Marcela e Mel decidem ter filhos. Logo surge a dúvida: como um casal de mulheres faz para engravidar? Perdidas, resolvem pedir ajuda aos amigos no Facebook.

Sustentando o desejo da gravidez sem pai, elas se colocam diante de muitas questões. Qual das duas vai engravidar, como funciona um banco de sêmen, como fica o registro de nascimento, a ausência de um pai pode prejudicar a criança? Pesquisadoras incansáveis, se informam, refletem e bancam cada uma de suas escolhas. Agora corajosamente compartilhadas neste livro.

Marcela Tiboni acredita no diálogo como forma de emancipação. Por isso escolheu viver a maternidade de forma aberta e inclusiva. Não há nada a esconder. Em Mama: um relato de maternidade homoafetiva, seu primeiro livro, a autora rompe com o tabu que ainda hoje cerca o amor lésbico e a gravidez entre mulheres para contar a história de sua família. Ao amamentar seus filhos gêmeos, mesmo sem ter sido ela a mulher a gestar, Marcela literalmente peita, num perfeito equilíbrio entre força e delicadeza, os preconceitos e as intolerâncias da nossa sociedade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de jun. de 2020
ISBN9786587530000
Mama: um relato de maternidade homoafetiva

Relacionado a Mama

Ebooks relacionados

Bem-estar para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Mama

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Mama - Marcela Tiboni

    Para Melanie, que me permitiu sair do singular e me tornar plural

    Para Iolanda e Bernardo, que me fizeram conhecer um amor impensado

    Eu estou só vivendo a maternidade, em tempos atuais isso é militância!

    img7

    SUMÁRIO

    Capa

    Folha de rosto

    1. decisão

    O DESEJO DE ENGRAVIDAR E OS CAMINHOS SINUOSOS ATÉ A FECUNDAÇÃO

    2. maré fértil

    AS ESCOLHAS DE PESO: DE QUEM SERÃO OS ÓVULOS E O SÊMEN

    3. expectativa

    A ETERNIDADE ENTRE OS PROCEDIMENTOS E A CONFIRMAÇÃO DA GRAVIDEZ

    4. revelação

    GÊMEOS EM GESTAÇÃO, SONHOS MALUCOS E EUFORIA NOS PREPARATIVOS

    5. mama

    A IDEIA DE DUPLA AMAMENTAÇÃO, QUATRO PEITOS PARA DOIS BEBÊS

    6. ansiedade

    LEITE À VISTA, UM RETORNO ÀS ORIGENS E UMA NOTÍCIA FRUSTRANTE

    7. tá quase

    CONTAGEM REGRESSIVA E SUSTOS NAS ÚLTIMAS SEMANAS DA GRAVIDEZ

    8. boa hora

    O PARTO SE APROXIMA, AS CRIANÇAS AVISAM QUE ESTÃO PRONTA

    9. voar livres

    O DRAMA E AS ALEGRIAS NOS PRIMEIROS DIAS DA FAMÍLIA COMPLETA

    10. outros olhares

    PROFISSIONAIS DE SAÚDE FALAM SOBRE O ATENDIMENTO A CASAIS HOMOAFETIVOS

    Créditos

    Landmarks

    Cover

    Table of Contents

    img10

    Desde a adolescência, costumo dizer que gostaria de ter muitas vidas para viver tudo o que eu tenho vontade. Este livro é um resultado dessas muitas vidas. Nunca tive planos de escrever um livro, mas acho que este pediu para ser escrito. E foi assim, meio sem pensar, que, em uma tarde de abril, comecei a escrever. Eu e minha mulher tínhamos decidido engravidar. E havíamos passado um ano vivendo as tentativas de uma gravidez sem pai. Eram tantas as novidades, tantas as situações diferentes das que eu havia vivido ao lado de irmãs, cunhadas e amigas grávidas, que decidi compartilhar nossa história com o mundo através da escrita.

    Em menos de duas semanas já eram quase 50 páginas, tornou-se meu vício, passava de três a cinco horas por dia – todos os dias – escrevendo este livro. Arranjava motivos para não sair de casa, adiava reuniões, trabalhava no computador ou no celular. E assim fui escrevendo. Em menos de três semanas, já eram 115 páginas escritas. Da mesma forma, no mesmo ritmo, com a mesma intensidade de quem não queria esquecer um dia sequer dessas vivências. Conforme escrevia, me lembrava de novos acontecimentos relevantes. Muitas vezes fiquei em dúvida sobre o que deveria e o que não deveria ser dito, me embananei quanto à veracidade de cada diálogo, recorri a lembranças nas redes sociais, trocas de mensagens de celular, ligações telefônicas e conversas com os amigos e a família. Uma narrativa pessoal, em primeira pessoa e que transpira, página a página, o que vivemos até a chegada dos nossos dois bebês.

    O desejo de escrevê-lo foi pontual. Eu e minha mulher, Mel, queríamos engravidar e, perdidas que estávamos, começamos a pesquisar livros que trouxessem relatos de outros casais de mulheres que tivessem vivido processo semelhante, dicas de clínicas e procedimentos, relatos de prováveis problemas que teríamos com documentação, preconceitos, burocracias... Enfim, queríamos livros que nos elucidassem as escolhas futuras. Mas, pouco a pouco, fomos descobrindo que esses livros não existiam no Brasil. Passamos, então, a caçadoras de relatos em blogs, redes sociais, fóruns de internet, amigos, amigos de amigos, conhecidos na fila do supermercado, artigos de revista... Cada uma dessas leituras, cada um desses diálogos nos ajudaram a organizar a nossa maternidade. Sim, organizar. Porque um casal de mulheres dificilmente terá uma gravidez acidental: pelo contrário, cada etapa é bem planejada, determinada e datada.

    Foi assim que o livro começou. E, à medida que eu escrevia, ele se tornava cada vez mais um espaço de reflexão, descobertas, memórias e motivação para novas pesquisas e leituras. Por fim, tornou-se um lugar onde pude encontrar o meu lugar de mãe na maternidade em que não carreguei nem um nem dois bebês na barriga. O relato dessa gravidez tornou-se uma extensa narrativa da descoberta de uma dupla maternidade.

    Conforme vivíamos a maternidade, percebemos que as pessoas em nossa volta também a descobriam junto conosco. Carregávamos muitas dúvidas e essas pessoas traziam outras mais. Passamos a ser inundadas por perguntas, as mais variadas: qual das duas vai engravidar, quem será o pai, como funciona um banco de sêmen, as duas vão amamentar, o registro de nascimento sairá no nome das duas, não ter um pai pode prejudicar a criança, vocês vão doar óvulos, os bebês vindos desses óvulos não serão filhos de vocês? Foram tantas e tantas perguntas que respondemos e continuamos respondendo pacientemente até hoje.

    Encorajamos as pessoas a fazerem perguntas, pois acreditamos profundamente no diálogo como forma de aproximação e emancipação. Escolhemos viver a maternidade de forma aberta e inclusiva; deixamos a porta aberta para todos que dela querem participar. Não há nada a esconder, há muito a revelar: nossas dúvidas são as dúvidas de outros casais, de outras mulheres, de outros homens. Querendo ou não engravidar, todos têm algo importante em comum: são pessoas dispostas a partilhar o mundo do outro como parte de seu próprio mundo.

    Vocês vão perceber, inclusive, que muitas vezes eu disse estamos grávidas, o que para mim sempre foi muito natural dizer, afinal a gravidez da Mel foi minha gravidez também. E só fui perceber o quanto essa frase poderia soar confusa quando uma pessoa olhou para minha barriga e perguntou: Grávida? Mas quem está grávida?.

    A gravidez de um casal de mulheres ainda é pouco discutida no Brasil, e este livro talvez atraia e aproxime os mais diversos olhares para o assunto. Um assunto repleto de amor, sonho, afetos e cumplicidade. Este livro nos ajudou a perceber muitas nuances do exercício da maternidade quando existem duas mães!

    Temos muito a agradecer, foram tantas as pessoas que participaram desta história: nossas mães, que são nossos maiores exemplos; nossos pais, que também nos ensinaram tanto sobre a maternidade; nossos irmãos, que vibraram a cada sucesso; os padrinhos dos nossos bebês, fundamentais nesta história; amigos que nos ajudaram em tantas coisas diferentes. Esperamos poder ensinar a estes pequenos recém-chegados ao mundo que habitá-lo de forma colaborativa é muito mais gostoso e produtivo. Agradecemos também a vocês, leitoras e leitores, por fazerem parte, de alguma forma, da nossa história!

    Uma ressalva. Antes de avançar pelas próximas páginas, tenha claro que não somos médicas nem enfermeiras nem sequer da área de ciências biológicas. Somos uma artista plástica e uma arquiteta que pouco, ou quase nada, sabem sobre medicina. Todas as informações que vocês lerão aqui devem ser confirmadas com seu médico. Nosso relato é baseado em nossa experiência pessoal, nossa memória e em como nós, na época, entendemos cada procedimento. Estejam certos de que podemos ter errado algumas palavras, em algum momento trocado inseminação por fertilização, fertilização por fecundação, e assim por diante. Mas que fique claro que nada aqui é mentira, fantasia ou invenção: tudo realmente aconteceu. Por mais incrível que possa parecer!

    Marcela Tiboni, maio de 2019

    Como viver um sonho...

    Um sonho de amor?

    Apertem os cintos para embarcar nesta travessia, que Marcela nos conta com o coração na ponta dos dedos. Duas mulheres. Duas humanidades. Um amor. Amor que voa e sobrevoa os dias, criando um laço para além de duas. Dois corações, que viraram quatro. Quatro seios, que viraram alimento para enfrentar os dias mais acinzentados e as noites mais escuras.

    O presente livro conta a história de duas mulheres que se amam, e que decidem peitar – literalmente – a sociedade para construírem sua família. Essa família que tem como base o afeto genuíno, transbordante e potente de mulheres que dão as mãos para atravessarem os preconceitos e intolerâncias dessa nossa sociedade machista e lesbofóbica. Dúvidas, angústias, medos, perguntas que vão se dissipando à medida que Marcela e Mel se fortalecem para gerar vidas. Duas mães. Duas amantes. Duas mulheres. Duas crianças.

    O sonho ganha corpo, dentro do corpo de Mel. Ganha mais dois corações para baterem juntos, ritmados, celebrando a união dessas duas grandes mulheres. O amor se transforma e a barriga cresce. Marcela, corajosa, generosa. Mel, grávida, pulsante, força motriz. O amor é tanto que nascem dois. Bernardo e Iolanda. As águas femininas embalam o nascer e os olhos que se abrem pela primeira vez ao mundo. O espanto. A transformação. Uma jornada que nos enche de esperança e inspiração para lutar pelo direito de todas as famílias homotransafetivas deste país.

    Preparem-se para acompanhar Marcela e Mel, Bernardo e Iolanda, mamas, bebês e todas as etapas e pessoas que participaram desta história de amor, força e luta, capaz de transformar incompreensões em flores, que colhemos com elas ao longo do caminho. As páginas a seguir são recheadas de muito leite materno e amor entre mulheres. Férteis de vida que se espalha para os dias que vêm, deixando a terra úmida para as próximas colheitas de sonhos maduros de famílias homotransafetivas. Preparem as sementes!

    SILVIA BADIM

    mãe, lésbica e professora da UnB

    img17

    É terça-feira de um mês quente, fevereiro de 2017. Eu e a Mel, no sofá, logo depois do jantar. Geminianas falantes, engatamos um assunto no outro, mal conseguindo respirar entre eles. Deitadas no sofá, nos acomodamos uma de frente para a outra, minhas pernas por cima das dela, braços jogados para o lado, cabeças apoiadas em almofadas. Rimos e passamos por diversos assuntos: trabalho, família, futuro, plantas e... filhos. Desde que começamos a namorar sabemos que ambas sonham ter filhos, isso não era novidade, mas naquela noite a pergunta vem à queima-roupa:

    – Amor, qual é a hora certa para engravidar? – a Mel me pergunta.

    – Caramba, me faço essa pergunta muitas vezes, linda. Não sei responder. Você sabe?

    – Ah, eu fico achando que antes precisamos estar morando juntas, curtir a rotina, viajar, nos conhecermos melhor, termos certa estabilidade financeira. Mas como determinar que essa hora já chegou?

    – Bem, se for para pensar a partir desses princípios, já podemos ter filhos, não?

    – Sim, podemos. Mas será que esse é o melhor momento? Não dá medo pensar que a hora certa é agora?

    – Medo? Sim, claro! Mas acho que tenho medo hoje, ontem, amanhã e daqui cinco anos... Você não acha?

    – É, sim, acho que sim.

    A conversa se estende por algum tempo. Falamos de medos, desejos, ansiedades. Nos ajeitamos no sofá, nos olhamos e, imediatistas como todas as boas geminianas, decidimos que a hora certa tinha chegado: queremos ter um filho!

    Um detalhe importante nos faz rodar em círculos: como um casal de mulheres faz para engravidar? Naquele momento, somos uma soma infinita de perguntas, sem saber nem por onde começar. Não conhecemos nenhuma clínica, não temos nenhuma amiga casada com mulher que já tenha engravidado, não sabemos onde conseguir o sêmen. Estamos perdidas.

    Não era a primeira vez que conversávamos sobre o assunto. Na verdade, ele já vinha surgindo havia mais de um ano, mas nunca falamos nisso com muita profundidade. Chegamos a ter conversas intermináveis ao longo da noite, em devaneios longínquos, a pensar e pensar sem chegar a lugar nenhum, sem nunca definir por onde começar, a quem recorrer ou o que escolher.

    Em ações que achamos que seriam potencialmente esclarecedoras, pesquisamos em sites, blogs e entrevistas, mas as informações vinham picadas, não nos ajudavam muito. Precisávamos mesmo de um passo a passo, um livro ou um manual que nos ensinasse o caminho das pedras. É estranho como a ausência do sêmen nos colocava nesse lugar de pleno desconhecimento.

    Mas, naquela noite, foi diferente. A decisão estava tomada: vamos mesmo engravidar, precisamos começar e é agora! Trocamos olhares decididos e começamos a pensar em possibilidades:

    – Talvez aquele seu amigo possa doar sêmen e fazemos uma inseminação caseira.

    – Mas e se ele quiser ser pai da criança? Não vai dar certo.

    – E se você viajar para um lugar bem distante e já voltar grávida?

    – Ah, claro, grávida e com doenças!

    Eu folheio aleatoriamente um livro com histórias de casais homoafetivos, enquanto ela fuça um blog de gestantes. Quase ao mesmo tempo, temos uma mesma ideia: e se escrevermos um post em rede social abrindo o jogo e pedindo ajuda? Possivelmente será o jeito mais rápido de entrar em contato com pessoas que, de verdade, possam nos ajudar. Escrevi no mesmo instante.

    A expectativa era que essa mensagem nos colocasse em contato com pessoas que estivessem vivendo essa situação naquele mesmo momento, quem sabe uns dez ou 12 conhecidos com boas dicas. Mas a mensagem, simples e descompromissada, gerou um alarde entre nossos amigos e conhecidos: quase 500 likes e cerca de 200 comentários. Foram muitas dicas diferentes, nomes, telefones, sites e contatos de médicos os mais variados, até em cidades fora de São Paulo, dicas de doulas, parteiras e clínicas de fertilização, entre mensagens no post, inbox, WhatsApp e ligações também.

    No amanhecer da quarta-feira, quando acionamos o wi-fi dos nossos celulares, ouvimos o que parecia uma sinfonia de alertas, uma quantidade absurda de mensagens. Enlouquecemos, e as pessoas à nossa volta também – tamanha comoção causada pelo fato de um casal de mulheres querer seu primeiro filho foi surpreendente, lindo e assustador! Não imaginávamos que nossa rede estaria tão antenada e disposta a nos ajudar nem que tantos amigos se prontificariam a nos auxiliar. Muitas pessoas nos escreveram simplesmente para nos parabenizar pelo passo, pela decisão e até pela coragem do post. Ficamos perdidas em meio a tantas dicas. Pelo menos não estávamos mais imersas no vazio, mas sim imersas em possibilidades.

    Dividimos as tarefas: eu respondo as mensagens vindas pelo celular e pelo inbox de uma rede social, a Mel responde os comentários e as marcações no post. Começamos às 10h15, já é quase meio-dia e seguimos no computador e no celular, entrando em contato com todos que se prontificaram a ajudar. Alternamo-nos entre anotar e-mails e telefones de clínicas e médicos e ler relatos de amigos, amigos de amigos, conhecidos que haviam feito fertilização in vitro, inseminação artificial ou inseminação caseira.

    Histórias como a da prima de uma amiga da amiga, que tentou quatro vezes a inseminação e não conseguiu: pagou caro e desistiu. A amiga da vizinha, que conseguiu engravidar de primeira: seu médico só atendia celebridades, mas tinha as melhores estatísticas para fertilização in vitro. Ou ainda a tia de um amigo, que tentou três vezes, e na última deu certo, mas ela engravidou de quadrigêmeos.

    Às vezes líamos alto uma para a outra, para alinharmos as histórias e possibilidades, outras vezes ríamos ou reagíamos em silêncio. Mas estávamos certas de ter adentrado uma espécie de portal que não teria mais volta. Uma rede estava se formando e a possibilidade de gravidez se mostrava realmente próxima. Anunciar publicamente o desejo da gravidez foi um marco para nós. Era como se o conhecimento dos outros nos impelisse a seguir em frente e não desistir.

    Uma pausa estratégica e necessária do computador, já há uma quantidade suficiente de relatos e contatos, agora precisamos conversar, avaliar e decidir por onde começar. É hora do almoço e merecemos um momento de ventilação de pensamentos. Vamos a um restaurante por quilo perto de casa. Quando nos sentamos à mesa com os pratos, um silêncio cúmplice nos envolve. Quase não falamos nada, fora um ou outro comentário sobre a comida ou alguém que passa por nós.

    De volta a casa, a maratona recomeça. Optamos por iniciar pelas clínicas de fertilização: com a lista de contatos que nos foram passados, começamos a entrar nos sites, ler as apresentações, ver as fotos e avaliar os comentários sobre cada uma delas. Entender um pouco dos processos e fases da fertilização nos ajuda a começar a entender o que vem pela frente.

    Após um longo tempo de pesquisas pela internet, juntas, eu e a Mel, escolhemos a melhor clínica e decidimos ligar. É fim de tarde quando fazemos a ligação. Informam um número de WhatsApp para que marquemos uma consulta. Desligamos o telefone e iniciamos a conversa pelo aplicativo do celular. Minutos depois, a consulta está marcada para dali a 40 dias. Pronto, missão cumprida, demos o pontapé inicial na nossa jornada.

    Alívio!? Poderíamos estar sentindo um imenso alívio, mas, que nada, parecemos personagens de histórias em quadrinhos, em absoluto silêncio, mas com aqueles balões de pensamento acima da cabeça: Será que a clínica vai entender que somos um casal de mulheres? Aceitação ou preconceito? Seremos capazes de engravidar? Este país está pronto para conviver com a gravidez homoafetiva?

    A noite chega e depois de um dia intenso de grandes decisões é hora de dormir. Estamos agitadas e com um pensamento único na cabeça. Aquele dia marcaria o início da nossa gravidez, da nossa militância, das nossas conquistas e dos nossos sonhos.

    img24

    Agosto de 2013, decidi me inscrever em uma especialização perto de casa.

    Fiz cálculos de tempo, me perguntei se conseguiria conciliar trabalho e estudo, se daria conta de não faltar muito, se teria gente legal, se esse curso me serviria de alguma forma. E, mesmo sem nenhuma resposta, resolvo começar. No primeiro dia de aula, estava um pouco ansiosa, pois fazia tempo que não frequentava uma sala de aula. Voltar a estudar era ao mesmo tempo sedutor e assustador. Sentei-me na carteira e dei aquela olhada rápida na turma: bastante gente que me pareceu interessante. Começamos a nos apresentar e procurei gravar na memória aqueles que estudavam ou trabalhavam em áreas que me interessavam. Afinal, cada professor que passava por ali afirmava que, para além do aprendizado, o tal networking seria importante para nós. Uma garota que queria ser educadora, um garoto que já era jornalista, uma outra que trabalhava com pessoas com deficiência e outra ainda que trabalhava em uma galeria de arte. Os demais eram atores, músicos, diretores de arte, professores – não que não fossem interessantes, mas estavam mais distantes de minha área de pesquisa. Voltei para casa animada com as aulas, com a retomada dos estudos e dos debates e com os novos colegas de sala.

    No próximo dia de aula, comecei a me aproximar de algumas pessoas, ainda com certa timidez e desconfiança porque, mesmo sendo tachada de engraçada e extrovertida, a primeira aproximação para mim era sempre difícil e lenta. A garota que trabalhava em uma galeria de arte parecia meio chata e distante. Apesar de eu querer me aproximar – porque o universo dela parecia próximo ao meu –, preferi manter distância. Consegui uma aproximação mais rápida com a Paula, cientista social que queria se tornar educadora de exposições, e com a garota que trabalhava com pessoas com deficiência intelectual. Por ser artista plástica e ter uma empresa de educação e mediação cultural, achei que seria rápida a aproximação com a garota que queria trabalhar em exposições.

    As aulas seguiam e, duas semanas depois, tive a brilhante ideia de levar uma goiaba para comer na hora do intervalo. Quem leva uma goiaba para comer em local público, coletivo e fechado só pode estar querendo fazer amigos e puxar assunto, né? Antes da segunda mordida, três pessoas me olharam e disseram: Goiaba!?. Como crianças sendo alfabetizadas, elas pareciam ter aprendido a pronunciar aquela palavra ali, naquele mesmo instante: Goi-a-ba!?. A garota da galeria – a Melanie – me olhou, num sobressalto:

    – Quem está comendo goiaba? – perguntou, com uma cara de nojo e aqueles olhos que reviram.

    – Eu! – respondi com desdém.

    Ali nos aproximamos. Parei ao lado dela, dei uma mordida na goiaba, puxando papo sobre a galeria em que ela trabalhava. Eu em pé, ela sentada, começamos nossa primeira conversa. Ela me contou que vinha de Brasília, estava morando havia pouco tempo em São Paulo, era formada em arquitetura e trabalhava com produção de arte. Eu contei do meu percurso, formada em artes visuais, tinha mestrado, queria iniciar o doutorado, mas havia desistido para começar a especialização. Trabalhava com mediação cultural em museus e exposições. Parêntese: mais para a frente, descobri que ela me achou arrogante, afinal quem desistiria de um doutorado para fazer uma especialização? Soube também que essa sensação de que eu era arrogante só passaria meses depois...

    Em poucos minutos de conversa, percebemos muitas coisas em comum, muitos desejos e um passado parecido: foi também nessa conversa que fiquei sabendo que ela era lésbica, o que imediatamente mudou meu olhar sobre ela (que influenciável eu!). Comecei a achá-la bem mais bonita e interessante naquele minuto, quase que instantaneamente. A aula recomeçou e voltei para meu lugar, mas, de tempos em tempos, olhava a garota que acabara de conhecer melhor.

    Na semana seguinte, tracei uma estratégia: ficaria esperando no carro até o início da aula, assim as pessoas já teriam ocupado suas cadeiras, e eu torceria para que alguma cadeira perto dela ficasse vazia para que eu pudesse sentar mais perto, sem dar

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1