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Pedalar: Uma Experiência Educativa sobre Duas Rodas
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E-book210 páginas1 hora

Pedalar: Uma Experiência Educativa sobre Duas Rodas

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Sobre este e-book

A pretensão de Pedalar: uma experiência educativa sobre duas rodas é contar histórias singulares sobre pessoas e bicicletas para além do concreto urbanístico. Ouvi-las, descobri-las, colecioná-las, tecendo outro olhar sobre a bicicleta.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de ago. de 2020
ISBN9786555235371
Pedalar: Uma Experiência Educativa sobre Duas Rodas

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    Pré-visualização do livro

    Pedalar - Sheila Hempkemeyer

    REMISSIVO 

    APRESENTAÇÃO

    Tenho a modesta pretensão de partilhar os movimentos e fluxos de experimentações vibráteis que acumulei enquanto pesquisadora e pedalante, não necessariamente nessa ordem. Uma genuína fertilidade - ou uma potência bruxólica - que me moveu a criar com as narrativas e imagens e vidas que atravessaram meu corpo e minha existência durante esse processo. Na grafia dessas movências, teci esta coletânea de histórias e experiências e narrativas, testemunhos afetivos que tensionaram, sobretudo, meu processo formativo e minha vida.

    A aventura desta escrita desLOUcou minhas fronteiras e me fizeram experimentar uma outra forma de ser, à deriva da minha própria existência. Perdi alguns traços. Aprendi a ser outras, usar outras lentes e sentidos. Aprendi a pedalar de outro modo, em outros corpos, com outros corpos em mim, incorporar outros gestos, tatear o mundo em outros tempos. Ser rua, corpo, combate, encontro, conflito, carne, fluxo, contágio. Suspender regimes de urgência, pessimismos, catástrofes e permitir experimentar outras temporalidades. Rein(ventar) outras equações e fórmulas como um exercício do pensamento. Transgredir pelo simples ato de balburdiar outras existências possíveis na cidade, na escola, na universidade, no mundo.

    Uma escrita em viagem, em trânsito, em desLOUcamento, que versa sobre pessoas e bicicletas. Entre narrativas e imagens capturadas no/e do cotidiano as palavras se entrelaçam e o texto vira corpo, ganha o mundo. Contar outras histórias é também adiar o fim, como nos provoca Ailton Krenak, e o mundo está cheio de pequenas constelações de gente espalhada [...] que dança, canta, faz chover¹ e pedala alegremente. Frente à tamanha negatividade e pessimismo - e há inúmeros motivos para isso - é tão necessário abrir os olhos [e ouvidos] na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes². Talvez essa seja a grande intenção deste livro: arriscar um outro modo de perceber a relação entre pessoas e bicicletas; um outro modo de pensar a pesquisa e a escrita acadêmica; e acima de tudo, arriscar-se enquanto autora para o mundo.

    Quero falar daquilo que nos comove, que nos emociona, que nos une enquanto entusiastas luminescentes da bicicleta. Não se trata de romantizar o caos, nem negligenciar a barbárie. O que se pretende é escapar daquilo que é habitual, desvincular-se de uma única verdade, de um horizonte salvacionista e lançar um outro olhar para o cotidiano, valendo-se da imaginação poética como um ato político de resistência. Sem regimes hierárquicos de valores, a ficção foi acionada como uma tática de enfrentamento, um outro horizonte ético-estético-político possível para pensarmos as práticas pedagógicas e os espaços formativos, bem como o trânsito urbano.

    Traçar essas linhas foi uma experiência arriscada, um diálogo com a minha trajetória e minhas memórias, e que valeram muito a pena. Um exercício de respeito e generosidade com àquela que um dia fui e com as pessoas que contribuíram com esse traçado. A experiência sobrevive quando a narramos novamente. Anuncia insurgências mínimas, invisibilizadas pelos excessos e a pressa. Os combates que traçamos não se valem tanto pelos resultados, mas principalmente por aquilo que se produz durante o processo. As imagens e narrativas que foram aqui criadas têm a pretensão de mobilizar e disparar outros modos de existir, outros regimes de subjetivação. Lançar ideias e histórias luminescentes que possam proliferar outras maneiras de habitar, pensar, sentir, viver a cidade, os espaços educativos, a vida.

    Se não conseguirmos criar as possibilidades de extrapolar a vida, que possamos então permitir que a criação aconteça e a vida se expanda. Deixar ir além e romper com o campo do possível, onde possamos imaginar futuros possíveis, um lugar onde a vida [possa] ser diferente³.

    O narrar de um trajeto:

    costurando as primeiras pedaladas

    Narrar a si, narrar a sós.

    Narrar sobre mim, narrar sobre nós.

    Narrar aqui, narrar ali.

    Narrar faz nascer/existir

    um outro ser que habita em mim.

    Narrar um fato, um ato.

    Narrar uma história (minha história!),

    uma experiência.

    Narrar de dia ou à noite.

    Narrar o novo, de novo.

    Narro a partir do mundo que me habita,

    e este mundo está atravessado em meu corpo.

    Ao narrar leva-se em conta a leveza da narrativa,

    a estética possível do mundo que me habita.

    O eu exteriorizado podendo pertencer aos outros,

    a todos nós.

    Um eu que não é só meu,

    mas que existe somente no nós,

    e se faz possível entre nós.

    Narrar para ti, para mim, para nós!

    (Ensaios, Diário de Campo – 9 nov. 2014)

    Cheiros, aromas, texturas, sons e imagens (físicas ou mentais) ativam memórias, até as mais profundas. Lembro-me de fragrâncias inebriantes de minha infância. Uma delas me causa suspiros e alegrias: o cheiro dos tecidos na sala de costura de minha avó. Todo aquele colorido vibrante, em diversos pedaços e tamanhos, amontoados e espalhados por todos os cantos e meios. Panos, máquinas de costura, agulhas e linhas desde sempre serviram de molde para cerzir minha história. A sala de costura era local onde as brincadeiras aconteciam, inventava mundos. Tornou-se herança de família. Está carimbada em meu corpo e é ainda presente em minha morada. Um espaço criativo onde perco tempos e componho inventos. Foi lá, na sala de costura, que se escondeu minha primeira bicicleta sem rodinhas.

    Todo este emaranhado têxtil constitui pequenos fuxicos⁴ que juntos formam esta peça literária. Escolhi propositadamente estes recortes afetivos para iniciar a tessitura desta história. Acessando as memórias mais ativas que possam mostrar tanto para mim quanto para quem se aventurar a ler (ou pedalar comigo nesta escrita) o percurso que me fez chegar até aqui. Pegue sua bicicleta ou suba na minha garupa. Acomode-se e sinta o vento cortando seu corpo. Não se afugente com as ladeiras. Sinta a explosão de seus músculos em atividade e lhe afirmo que as descidas compensarão qualquer esforço.

    Antes de tudo, e desde já, tenho como proposta brincar com narrativas, tanto as minhas como de pedalantes nesta obra. Conforme Galindo, Martins e Rodrigues (2014, p. 297)

    o ato de contar histórias atualiza e produz dispositivos de inscrição para a memória. […] As narrativas nos ajudam a redigir a partir de múltiplas fontes, auxiliando-nos a entendê-las e organizá-las de maneira que possam ser compartilhadas com quem as lê.

    Todo croqui − a ideia de uma peça − é rascunhado no papel, depois transformado em molde, retalhos, remendos e a tão idealizada vestimenta. Meu(s) croqui(s), ou minhas narrativas, foram sendo esboçados num diário, desde o início da trajetória na pós-graduação, como forma de praticar o desenho e/ou a escrita. Tentava não deixar escapar experiências do cotidiano, acadêmico e/ou fora dele, que me atravessaram naquele período.

    A arte de escrever à mão foi encorajada desde as primeiras trocas com meu orientador, professor Leandro Belinaso Guimarães. Uma escrita despretensiosa, insignificante, inútil, mas que fosse escrita. Assim se fez o encontro potente entre papel, às vezes caneta, às vezes lápis, e o pedalar dos dedos, dançando, freando, curvando-se, subindo e descendo as linhas do caderno, exteriorizando ideias, sensações, devaneios e pensamentos.

    De acordo com Galindo, Martins e Rodrigues (2014), este processo é um renarrar o que já foi narrado um dia, e essa experiência em palavras nos permite liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferentes do que vimos sendo (LARROSA, 2014, p. 5). Vasculhando minhas lembranças, (re)começo a contar meu trajeto, arquivos de uma travessia.

    Nasci na região do Vale do Itajaí, em Blumenau, Santa Catarina (SC). Uma cidade erguida à beira do rio Itajaí-Açu, nome tupi que significa grande rio de pedras. Rios foram − e ainda são em determinadas regiões − nossas primeiras vias (hidrovias) de condução, guiando-nos pela exuberante e abundante diversidade ambiental. Água é sinônimo de vida e, desse modo, é comum estabelecermos território fixo no seu entorno. Apesar de sua imensa importância para manutenção vital do planeta, os rios vêm sofrendo os efeitos devastadores da nossa existência e da nossa ganância. Em Blumenau não seria diferente. Tem sua história marcada por grandes enchentes e enxurradas. E foram esses os motivos que me impulsionaram a usar a bicicleta e, consequentemente, pesquisar e alargar o entendimento sobre esta temática.

    Pedalando, pude olhar para o grande rio de pedras e enxergar suas cicatrizes e belezas. Escutar seus ruídos e sua fúria. Perceber seu fluxo e curvas. Sua visibilidade tornou-se presença quando subi na magrela e aceitei o convite para ouvir a polifonia da cidade, descobrir o colorido que me rodeava. Entre inundações e encantos, o rio foi inspiração, curiosidade, admiração e acima de tudo respeito. Serviu de passagem para que imigrantes europeus se instalassem e edificarem suas colônias na região. Antes deles viviam aqui povos indígenas conhecidos como Botocudos, que foram caçados e exterminados por políticas higienistas e genocidas de incentivo à migração.

    Com o estabelecimento e a expansão das colônias o espalhamento do rio tornou-se um problema. Em um desses encontros pedalantes com o Itajaí-Açu ouvimos, eu e minha bicicleta, seus lamentos:

    Meus transbordamentos foram mal interpretados. Gerei medo e descaso. Por medo, ergueram-se barreiras (barragens) para minha contenção. Por descaso, aos poucos, podaram as raízes que me davam sustentação. Com o crescimento cada vez mais acelerado, depositaram em mim seus dejetos mais putrefatos. Fui morrendo aos poucos. Vez ou outra eu vos lembrava de que estava aqui bem antes deles e de que não precisavam temer. Respeito é o que eu queria. Infelizmente meu alerta não foi acolhido. Meus transbordamentos não eram mais de alegria. E sim de dor, tristeza, cólera e melancolia. De tempos em tempos, apesar do papel coadjuvante que me colocam, faço questão de mostrar meu protagonismo. Lamentável que tenha que ser assim, ser lembrado em tempos ruins. Minhas águas barrentas, por trechos corrompidos, merecem atenção e zelo. Meu destino é o encontro com as águas salinas. Amiga que recebe, conserva e esconde em suas profundezas os rastros e marcas de tudo que choro. E como choro. Não é à toa que lágrimas são salgadas. Apesar de tudo, me mantenho em movimento, seguindo o encontro na imensidão do mar. Calado para uns/umas, cantando para outros/outras. A vida, mesmo que por trechos sinuosos e barrentos, com fúrias e medos, é um espetáculo. Que possamos, na contemplação, não só em dias impiedosos, aproveitar estes momentos em curso. Transbordar de alegrias e contentamentos (Desabafo de um rio a uma bicicleta amiga. Ensaios, Diário de Campo – 20 jul. 2015).

    Blumenau, bem como a região do Vale do Itajaí, desenvolveu-se em torno da indústria têxtil, tornando-se referência em todo o país. Criou-se nesse território a cultura têxtil, trazida pelos imigrantes europeus e que alavancou o estabelecimento de grandes empresas do ramo na cidade (Hering, Dudalina, Teka, Artex, Altenburg etc.). Esse fato histórico e cultural, que ainda permanece, fez-se por aspectos econômicos na localidade, onde os imigrantes perceberam a oportunidade para construir essa história. Hall

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