Vale do Zambeze: histórias e lendas
De José Pita
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Sobre este e-book
Isto significa que a oralidade ocupou durante séculos, e continua a ocupar, um lugar de relevo na vida social da comunidade moçambicana. Pode-se considerar assim, que o seu poder coloca o homem em condições de ser homem, permitindo-lhe olhar para a frente e para trás e apreender o mecanismo do universo que o rodeia. A oralidade não só nos permite falar de tudo, mas também achar a explicação de tudo.
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Vale do Zambeze - José Pita
Brasil
APRESENTAÇÃO
Motivado pelo reconhecimento de que a tradição moral se encontra ameaçada por diversos fatores, busco um resgate cultural das tradições que foram abandonadas e perdidas nos momentos de crise ou em contato com as áreas urbanas, o que considero ser fundamental para o desenvolvimento e a preservação do patrimônio cultural.
As histórias aqui narradas reportam a vida dos povos que ocupam, nos dias de hoje, o Vale do Zambeze, descrevendo os seus hábitos, usos, costumes, tabus, medos e outras ansiedades. Medo dos fenômenos sobrenaturais, dos feitiços, dos contos e lendas fantasmagóricas, pânico e insegurança criados pelos estranhos invasores das suas terras.
O inconformismo e o desassossego despontam o espírito de heroicidade para vencer esses temores, e, para tal, urge a necessidade de romper as amarras tradicionais e estabelecer a união na família, na tribo, na aldeia, nas terras do Vale do Zambeze, à procura da liberdade e da tranquilidade.
As histórias e lendas das terras do Vale do Zambeze falam de feitiços hediondos e muita mitologia, contam histórias repugnantes e assustadoras daquele vale.
Os fatos aqui contados são verossímeis, porém pode haver ocorrências que se assemelhem a uma certa realidade. Caso isso aconteça, é uma mera casualidade.
José Manuel Alberto Pita
A GATA GENEROSA
A esposa do Rei Leão
Antigamente, animais de diferentes espécies tinham um excelente entendimento. Era assim que, naquela densa floresta africana, vivia o rei da selva, o temeroso Leão e sua belíssima esposa, a Dona Gata. Viviam muito felizes, sem contratempos e nem perturbação alguma. Tinham um lustroso e confortável palácio.
I
Quatro adolescentes perdidos na floresta
Tudo mudou quando, certo dia, a Dona Gata assentiu acolher, em sua casa, três moças e um rapaz de idades compreendidas entre 10 e 14 anos, que andavam perdidos pela cerrada mata fazia muito tempo. Este grupo de adolescentes andava à procura de lenha, quando se desorientou e começou a deslocar-se no sentido oposto ao da aldeia. Depois de muitos dias de marcha, acabou desembocando em um majestoso palácio, no centro da densa floresta.
Logo correram ao encontro da entrada do palácio e tocaram a campainha. Surpreendentemente, quem lhes veio atender foi uma bela e delicada Gata. Depois de ter tomado conhecimento do que se tinha passado com aquele grupo de jovens, a simpática Gata tratou logo de lhes alimentar e acomodar por alguns dias, até estarem recuperados da fadiga do extravio.
A Dona Gata não só era formosa, como também de bom coração, e amavelmente cuidou de contar-lhes com quem estava casada, de quem era aquele lindo palácio.
— O dominador da selva, o Rei Leão, é meu marido e dono deste suntuoso palácio.
— Rei Leão!!! — espantaram-se os jovens perdidos. Estavam desolados.
— Não tenham medo, eu irei assegurar que nada de mal lhes aconteça. De fato, se o poderoso Leão souber que aqui estão hospedados humanos, não lhes perdoará, ele guarda muitas mágoas dos humanos.
Os jovens, ao ouvirem esta declaração, ficaram ainda mais assustados, quase morrendo de medo. Mas a Dona Gata reanimou-os dizendo que a casa possuía um porão grande, com quartos bem confortáveis, que só ela tinha as chaves, onde eles iriam abrigar-se quando o marido estivesse de volta do trabalho e enquanto estivesse em casa. Eles estariam seguros naquele lugar, e quando ele fosse ao serviço, eles poderiam sair e brincar à vontade pelos cantos da casa. Só depois dessa explicação é que ficaram mais sossegados. Os adolescentes apreciaram o porão, que lhes agradou.
II
A advertência do Leão
Quando eram dezoito horas, o Rei Leão, ainda de longe, fez-se anunciar. O seu rugido deixava toda a floresta silenciosa. Os adolescentes correram para o porão, trancaram-se e ficaram à escuta. A Dona Gata, ao segundo rugir, escancarou a grande porta para que o Rei Leão entrasse com muita caçada: búfalos, changos, gazelas, cudos, impalas, palancas e muitas outras presas.
A primeira coisa que o Rei Leão disse, quando assomou à porta, foi Uuuh! Sinto o cheiro da carne humana aqui dentro
. Quando os jovens ouviram a afirmação do Rei Leão, se borraram todos, ficaram apossados de medo. A Dona Gata rapidamente foi ao encontro do marido, beijando-o com carinho, e apressou-se a contrapor.
— Nada disso, marido, deve ser a mistura de cheiros de tanta presa que trouxeste hoje.
— Uuuh! Pode ser — concordou o Rei Leão.
Os jovens preferiram, naquela primeira noite, dormir todos no mesmo quarto, não demoraram a pegar no sono. O garoto de 10 anos foi o primeiro a acordar. Já eram seis horas. O rugir matinal e de despedida para o labor diário do Rei Leão despertou Joãozinho, que logo fez questão de se abeirar à porta para espionar. O Rei Leão despediu-se da sua linda esposa e, antes de partir, acautelou:
— Esposa, continuo sentindo cheiro e presença humana nas imediações, atenção, eles são maus.
— Marido, não te alarmes, e vai confiante — redarguiu Dona Gata.
O Rei Leão partiu para a sua labuta.
III
Quem eram os meninos perdidos na floresta
Joãozinho, passados uns instantes, devagar, abriu a porta e saiu do porão. Encontrou Dona Gata na cozinha preparando um opulento café da manhã, saudou e ajudou-a nos afazeres da cozinha, e ficaram a conversar, até que as três meninas apareceram, mais tarde.
Os quatro jovens hóspedes da Dona Gata eram: Julieta e Rosa, primas de 14 anos de idade; Carla, irmã de Julieta, de 12 anos de idade, e Joãozinho, de 10 anos de idade e irmão de Rosa.
Rosa e sua prima Carla eram duas meninas muito irrequietas e más. Mesmo antes de partirem à procura de lenha, brigaram seriamente com Joãozinho, não queriam que ele fosse com elas por, alegadamente, ser menino e pequeno. Graças à pronta intervenção de sua prima Julieta, que defendeu a sua presença na comitiva à busca de lenha, ele se juntou ao grupo.
IV
A maldade de Rosa e de Carla
Rosa e Carla foram as últimas a entrar na sala, onde já se encontravam, sentados à mesa, todos os outros, aguardando por elas para tomarem o repleto café da manhã, com muita carne, ovos, leite, suco, bolos, tudo do melhor que se come em um verdadeiro palácio como aquele.
Rosa e Carla, tão logo chegaram à mesa, a primeira coisa que fizeram foi discriminar a Dona Gata:
— O que esta Gata está fazendo aqui na mesa? — começou por reivindicar Rosa.
— Rua da mesa, coma aí no chão!