Seis Ensaios sobre a Cegueira
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Seis Ensaios sobre a Cegueira - Denise Schittine
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA
A Arion, a base que impulsiona toda a minha força criativa.
PREFÁCIO
Travessias para ler escutando
Antes destes Seis ensaios sobre a cegueira virem à luz, já havia sido lançado o desafio de ler e escrever no escuro, minha primeira experiência com a escrita de Denise Schittine; experiência de leitura e escuta. Antes do convite para este prefácio, houve também uma feliz troca de mensagens entre uma autora e um leitor. Dois professores que dialogavam sobre a literatura através da cegueira — e também da miopia, da presbiopia, do astigmatismo...—, sobre a sonoridade/musicalidade da escrita e da leitura, sobre o terceiro ouvido
de Nietzsche — e outros possíveis ouvidos de músicos leitores; variações literárias e musicais.
Desde então, a essa polifonia composta por muitas vozes — as nossas e as do livro — juntaram-se outras tantas vozes de um dos recantos da Universidade Federal Fluminense, rendendo, assim, palestras, minicursos e parcerias de estudo, pesquisa e extensão. Buscas por experiências
, no sentido cantado por Foucault. Experiência limite de Blanchot, experiência interior de Bataille; algo do qual sempre saímos transformados
. Transformação que nos leva a pensar de maneira diferente do que pensávamos, que nos conduz a outra relação com o que sabíamos e que nos arranca de nós mesmos em uma ação de dessubjetivação; um fazer-morrer
que é sobretudo renascimento.
No caso dos livros impressos e para quem os ama, é possível que a transformação já comece pelo contato físico. Pelo cheiro, pelo tato — textura da capa, das folhas — pela diagramação e por uma percepção multissensorial, além das palavras — visuais e sonoras. No entanto, talvez seja no diálogo com o texto — entre nossa voz interior e todas as vozes que compõem a escrita — que essa transformação se intensifique. Ressonância do verbo, do logos: (re)começo. Em seu momento, seu tempo e sua singular relação com a leitura, cada leitor saberá ou sentirá quais livros despertam e quais não valem o esforço da travessia. Travessia que também é transformação; transvectio, transverto.
É claro que mesmo um livro de travessias como o destes Seis ensaios, que incorpora transversalmente o problema da experiência limite — da transformação interior através dos livros —, não pode garantir que o outro se transforme. Todavia, é possível que seu convite apaixonado para o encontro com esses autores, também tão apaixonados por livros, desperte o desejo de ler até mesmo naqueles menos inclinados à leitura. Afinal, o que torna nossa a travessia do escritor? O que torna a sua travessia-experiência da escrita nossa travessia-experiência da leitura? O que provoca esse desejo de travessia?
Em que consistem essas travessias tão nossas? Travessias literárias, travessia para a maturidade, travessia de um passado (que não volta) a um futuro (desconhecido); do íntimo ao êxtimo, esse outro tão íntimo e por isso escondido e talvez também desconhecido. O que torna uma travessia prazerosa ou até mesmo obsessiva? Principalmente as mais árduas, intensas e trabalhosas.
Aos escritores-guias do livro juntamos os nossos. Aberturas a leituras outras: leituras silenciosas, leituras em voz baixa; da interioridade à exterioridade. Às nossas vozes interiores, juntam-se outras vozes, conhecidas e desconhecidas, existentes e inexistentes. Não ouvimos apenas as vozes
de Denise, de Borges, de Guimarães Rosa, de Clarice. Ouvimos também as de Dante, de Miguilim, de Dito, de Balicci, e de Catarina, Ana e Sofia em suas relações com o outro — esse estranho outro tão nosso. Retratos oratórios inventados e por isso tão reais, tão viscerais, tão transformadores.
É quando a escrita do outro se torna um pouco nossa. Quando nossa voz interior não é mais uma, mas muitas. Quando essa pluralidade de sons estranhos passa a nos constituir ou a nos revelar. Quando os desejos alheios se tornam nossos desejos. Travessia para o outro lado
, da sombra, do desconhecido. Travessia do sonho: comunicação, conversa com a morte. Morte do outro que talvez diga tanto de nós, de nossas feridas, nossas queimaduras
(nossas culpas?).
Travessia do visível ao audível, tanto por necessidade, inevitável, como também por um gesto ou exercício voluntário de sensibilização da escuta, essa audição atenta, sonora, que abre a outros entendimentos sobre o que se lê, se vê, se ouve, se toca. Escuta háptica, multissensorial. Toque com os ouvidos, com os olhos que também ouvem-entendem. Simbiose entre ouvir e escutar. Entre um ouvir mais próximo ao entendimento — como na ambiguidade francesa de entendre
—, ao conceito, à ideia (e, por isso, à visão – dos olhos do espírito
), e um escutar sonoro, timbrístico, ressonante e musical.
Sim! Seis ensaios sobre a cegueira é, para mim, um livro musical, para cantar ou ler em voz alta, a plenos pulmões, declamando — mas cuidando para não saturar o texto. Uma leitura-escrita-experiência de travessias transformadoras. Um livro de quem ama livros, não apenas indicado, endereçado a quem ama livros, mas também dedicado a despertar o amor por uma leitura-escuta apaixonada.
Pablo de Vargas Guimarães
Professor doutor da Universidade Federal Fluminense
Sumário
Introdução 13
1
Uma miopia moral: A análise sensível do sertão de Miguilim 19
1.1 Sensibilidade agreste 19
1.2 De fantasia e de histórias 21
1.3 Entre cores e sensações 25
1.4 O olhar turvo adulto 29
1.5 A miopia moral 32
1.6 Referências bibliográficas 36
2
Nós, os videntes, e nosso guia cego 37
2.1 Um novo olhar 37
2.2 A difícil escolha 39
2.3 Do voto de confiança à travessia 43
2.4 A outra margem 46
2.5 Referências bibliográficas 47
3
Para ver com outros olhos: estrabismo, miopia e óculos nos textos de Clarice Lispector 49
3.1 O que falta no outro e o que sobra em nós 49
3.2 O encontro 51
3.3 O estranhamento e a náusea 54
3.4 O poder do olhar 60
3.5 A transformação: nada é como antes 62
3.6 Referências bibliográficas 65
4
Dois Tirésias: um estudo crítico sobre Il mondo di carta
, de Pirandello, e a experiência vital de Jorge Luis Borges 67
4.1 Aproximações 67
4.2 Para entender a angústia do professor Balicci 68
4.3 Borges, o bibliófilo 71
4.4 A interdição e o confronto com a voz alheia 75
4.5 Por uma defesa da palavra 80
4.6 Referências bibliográficas 82
5
Borges e Dante: demiurgos e clarividentes 83
5.1 O par literário 83
5.2 Sobre a cegueira e a fé 84
5.3 Guias amorosos através dos mundos 90
5.4 Da memória e do esquecimento 95
5.5 Quais objetivos? 99
5.6 Referências bibliográficas 100
6
Anatomia da cegueira: uma leitura sobre as deficiências visuais em O nome da rosa 101
6.1 Pelas lentes da investigação 101
6.2 Do uso da lupa 102
6.3 Huis Clos: enxergar através das paredes 108
6.4 Labirinto: onde o instinto é o guia 112
6.5 O assassino cego: o monge que temia o riso 115
6.6 Referências bibliográficas 120
Índice remissivo 121
Introdução
Durante quatro intensos anos de pesquisa sobre grandes leitores e sua cegueira aprendi uma série de coisas. Talvez a principal delas é que, como leitora e vidente, eu ainda precisava dar muitos passos no escuro, caminhar por textos e lugares desconhecidos, arriscar atalhos perigosos. Pouco a pouco, fui entendendo que cada um dos escritores bibliófilos que estudei era um guia especial pelos bosques da ficção. Eu não estava no meio da minha vida, como acreditava Dante Alighieri, também não precisava purgar nenhum pecado cometido, como pensava John Milton, e estava longe de ser uma iniciada nos desígnios da fantasia ou da ficção, como o mestre Jorge Luis Borges.
Tudo o que tive que fazer foi aceitar a minha miopia, que parecia crescer na medida inversa em que esses autores me desvendavam o mundo. Os meus olhos precisavam se acostumar ao escuro para, só então, mais adiante, serem capazes de vislumbrar um novo ponto de vista. O medo era enorme, e quanto mais eu percebia a coragem desses cegos, sua inteligência e sua clarividência, mais eu me aproximava de uma saída possível. Os livros, as narrativas, as bibliotecas, esses espaços de conforto e prazer que alentam o leitor eram o fio de Ariadne capaz de fazer com que esses cegos se encontrassem no longo labirinto de palavras. O tempo de leitura e o tempo de escrita, ambos roubados às obrigações da vida, ambos pertencentes ao infinito tempo do amor.
Nas minhas horas roubadas e na companhia desses autores, aprendi a desenvolver outras formas de visão, a ver com os olhos interiores. E, principalmente, a ter confiança em novos guias, guias com deficiências visuais capazes de lançar novos olhares ao mundo. Esses ensaios aqui recolhidos mostram que não apenas escritores que sofreram a cegueira na pele são capazes de pensar o olhar. Em várias épocas e de formas distintas, grandes escritores se voltaram para o tema da visão, do ponto de vista, do ver e do prever, ou da capacidade de ver além. Talvez porque acreditassem que nas diferenças e nas deficiências encontrariam a chave de uma visão límpida do mundo.
Vou aqui me debruçar sobre o olhar do outro. Aquele olhar que desconcerta, que assombra, que interfere, porque mostra para nós um espelho distorcido e manchado. Somos o segredo dos nossos olhos, mas somos também o mistério escondido no olhar que os outros apontam para nós. Quem não acha verdadeiramente assustadores os cegos de Baudelaire? Não pelo fato da condição física, mas porque não nos encaram e buscam com os olhos doentes uma luz que viria do Céu? Se mudarmos nosso ponto de vista, podemos entender que da contemplação do que nos é estranho vem a admiração e, quem sabe, o milagre.
De mirus (espantoso, estranho, maravilhoso) vem mirari (espantar-se, mirar com espanto, mirar, olhar) e admirari (mirar com espanto respeitoso, com veneração). Aqui, paralisado pelo espanto, o olhar vê milagre, miraculum, e maravilhas prodigiosas, mirabilia. Por seu próprio nome, o milagre pertence ao campo do olhar e está destinado à visão. Não o disse Leonardo? (CHAUI, 2006, p. 36).
Leonardo da Vinci o disse, mas Clarice Lispector reitera, quando do fundo de suas estranhas personagens aparecem novas interrogações capazes de operar pequenos milagres no cotidiano. Um cego que cruza a rua no momento em que o bonde passa e muda a vida de uma dona de casa para sempre. Um professor míope que, ao tirar os óculos, faz com que uma menina nunca mais se veja como a mesma. Filha e mãe se tocam, e o olhar irônico e estrábico da filha obriga as duas a reverem essa relação de perto. De onde vem essa provocação de Clarice? De uma filha de imigrantes, estrangeira, mulher de diplomata, obrigada a mudar de país e de espaços, e que encontra o apoio no banal e no familiar como forma de não perder-se.
O que significam esses olhares? Qual a grandeza e o terror que estão contidos neles? Uma trajetória mitológica enfatiza o poder e a força do olhar. Desde a paralisia causada pela repulsa da visão da Medusa, morta ao encarar sua terrível imagem no escudo de Perseu, passando pelo apego aos bens terrenos, quando na destruição Sodoma, Ló e sua família foram instruídos a deixar a cidade sem olhar para trás e a mulher e filhas de Ló, contrariando os desígnios, acabaram se transformando em estátuas de sal. Ou observando o enamorado Orfeu, que enterneceu Plutão com o poder de sua lira e resgatou Eurídice de Hades, mas foi traído pelo olhar e perdeu o seu grande amor pela segunda vez. Um terror