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E-book390 páginas5 horas

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Sobre este e-book

Um dia, Giovanna Gassion, psiquiatra e psicóloga, acorda desesperada. Banhada em sangue, ela constata que a cicatriz de um corte sofrido no dedo há 15 anos reabriu de forma inexplicável. Ao mesmo tempo, um sacerdote descobre, sob a neve da pequena localidade italiana de São Judas, corpos de adultos e crianças mortos de maneira que desafia a lógica e que vão colocar em teste a fé do pároco. A relação entre o sangramento tardio e a série de assassinatos (seriam mesmo assassinatos?) vai ligar a vida desses dois personagens para sempre.
Determinado a desvendar o mistério, o sacerdote procura esclarecimentos científicos e racionais na figura da psiquiatra. O que ele ainda não sabe é que a médica está longe de sua sanidade habitual e talvez não tenha muito a contribuir para a solução do caso. Ou seria ela a chave para resolver todo o mistério?
Em XY, Veronesi alterna as vozes dos personagens, contrapondo a visão científica da mulher (X), representada pela médica; e as questões da fé deste homem (Y), representado pelo sacerdote. Como compreender a origem do Mal? Seria este um acontecimento sobrenatural? A busca por uma explicação vai levar a dupla a rever seus conceitos, em meio a uma trama que aborda questões como delírio, impotência, medo e angústia.
XY é o mais novo romance do escritor italiano Sandro Veronesi, ganhador do prêmio Strega por Caos calmo – adaptado para o cinema por Antonello Grimaldi e Nanni Moretti.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de out. de 2011
ISBN9788581221472
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    XY - Sandro Veronesi

    12-6514                     CDD–853                     CDU–821.131.1-3

    A Nina, neste mundo,

    e à minha mãe, no outro.

    PRIMEIRA PARTE

    Um fato não pode voltar como volta uma conta, porque

    nós não conhecemos todos os fatores necessários, mas só poucos

    elementos, predominantemente secundários. E o que é casual,

    incalculável, incomensurável tem um papel muito grande.

    Friedrich Dürrenmatt

    O destino não é invisível

    OBurgo São Judas não era nem uma cidade pequena, era um vilarejo. Setenta e quatro casas, mais da metade das quais abandonada, um bar, uma mercearia e a igreja com o presbitério – desproporcionais, em comparação com o restante. Fim. Sem jornaleiro, sem barbeiro, sem pronto-socorro, sem escola: para tudo isso, e para os outros frutos da civilização, era preciso ir a Serpentina, depois do bosque, ou então a Doloroso, Massanera, Gobba Barzagli, Fondo, Dogana Nuova, ou então subir para Cles. Mas havia um ferreiro, por assim dizer, Wilfred, que fazia os pregos à mão e parecia o vilão do Pinóquio, e um cemitério com mais de trezentos túmulos. Viver ali não tinha sentido, mas éramos 43 – ou melhor, 42, desde quando morreu o velho Reze’. Era um lugar que quase não existia, e ninguém nunca vai conseguir entender por que aconteceu aquilo justamente ali, onde não acontecia nada.

    Só acontecia uma coisa em São Judas, no inverno: a chegada do trenó de Beppe Formento. Os Formento eram uma das quatro famílias de São Judas – a mais poderosa, poderia dizer-se se não soasse engraçado. Seu irmão e sua irmã eram os donos do bar e da mercearia, e os filhos eram os únicos jovens que viviam ali. Uma, Perla, a filha de Rina, tinha feito parte da Nacional de biathlon e tinha ganhado também uma medalha no revezamento; o outro, Zeno, filho de Sauro, fora uma promessa no salto ornamental, mas depois largara. Beppe Formento amava os cavalos e tinha um centro hípico, próximo a Serpentina; no verão havia um bocado de turistas que iam alugar os cavalos para passear, e no inverno Beppe conseguia laçar uma dúzia deles por dia, e os levava para uma volta no trenó puxado a cavalo: velhos, mães e crianças ao longo das semanas brancas, que encontravam o flyer nos hotéis da região e decidiam experimentar uma excursão estilo século XIX. O itinerário era sempre o mesmo: do centro hípico subindo em direção ao trampolim abandonado, dali pelo bosque até a árvore congelada (ele mesmo congelava, todos os anos, com o canhão de neve, para trazer mais emoção aos seus clientes), depois para São Judas e voltar. Às dez em ponto, Beppe Formento parava o trenó na praça do vilarejo, descia, anunciava uma pausa de vinte minutos, e os turistas com frio se refugiavam no bar de seu irmão para tomar café e cappuccino. Era ele que levava a verdura fresca e a carne, todas as manhãs, e a água mineral, o leite, o café, a massa, o queijo, o vinho e as bebidas à mercearia de seus irmãos, em um carrinho com lâminas de esqui preso no trenó. Enquanto os turistas descansavam, ele descarregava as mercadorias e depois, antes de partir, aconselhava uma visita à igreja; os turistas lhe davam sempre ouvidos, e naquela hora eu entrava em jogo: recebia-os na porta, mostrava-lhes o crucifixo de madeira do século XV, o púlpito tardo-gótico com os seus baixos-relevos, a imagem de Nossa Senhora das Matas e a do nosso santo, sobre as quais eu explicava o que havia para explicar: são Judas Tadeu (todos acham sempre que é Judas Iscariotes, o traidor), apóstolo, irmão de Tiago, o Menor, e primo de Cristo, morto mártir no Oriente, protetor dos deserdados e de todos aqueles que não têm esperanças. Algumas vezes as minhas palavras eram mais inspiradas, ou talvez entre os turistas houvesse verdadeiros desesperados, e então perdíamos um pouco de tempo porque alguém decidia se ajoelhar diante da estátua recitando a oração a são Judas para pedir uma graça. Que de resto é uma oração belíssima. Depois todos subiam de volta no trenó, Beppe Formento estalava o chicote, e os dois cavalos, Zorro e Malinda, partiam no trote ágil e delicado que Beppe Formento lhes havia ensinado. Buck, seu pastor alemão, ficava mais um minuto no calor do bar, depois saltava e alcançava o trenó a galope antes de terminar a curva que leva de volta ao bosque, e assim era, de dezembro a abril, todas as manhãs, domingos inclusos. Beppe Formento não voltava nunca ao vilarejo: tinha sempre muito que fazer no centro hípico, e, desde quando alguém, anos atrás, roubara uma noite todas as selas e os arreios do estábulo, ele dormia ali, em um quartinho atrás do escritório.

    Tudo isso deve ser suficiente para dar uma ideia da confusão que caiu sobre nós naquela manhã, quando às dez o trenó chegou à praça, pontual como sempre, mas vazio. Beppe Formento não estava nele, nem Malinda, nem os turistas, nem o carrinho com as mercadorias, nem Buck o seguindo. Só o trenó puxado por Zorro, a galope, em um aterrorizante chacoalhar de sininhos que imediatamente deixou desconfiados todos nós que o ouvimos. Diz-se que o destino é invisível, mas ao menos daquela vez, para nós, não podia ser mais aparente. Foi o momento que mudou nossas vidas, todos o reconhecemos e ninguém será capaz de esquecê-lo, nunca: lembraremos para sempre o que estávamos fazendo (eu preparava geleia de laranja, por exemplo), e a urgência com que interrompemos o que fosse para sair e ver, apesar de nevar fortemente. E nenhum de nós que fomos para a praça vai esquecer os olhos daquele pobre cavalo, a sua expressão aterrorizada, e os espasmos, acreditem, humanos, que percorriam seu rosto perdido. Se algum dia um animal esteve a ponto de falar, foi Zorro naquela manhã; mas, ainda que lhe fosse dada a chance, creio que não encontraria palavras, porque as palavras para dizê-lo não existem.

    Sangue. No lençol, no travesseiro, em todos os lugares. Assassinaram-me? Entraram enquanto eu dormia e cortaram meu pescoço? O coração bate loucamente, tenho medo: tenho medo de descobrir que fui assassinada. Mas preciso olhar, preciso conferir. Estou bem, me sinto bem: o sangue pode não ser meu. E de quem é? Isso me dá ainda mais medo. Levanto-me, faz frio. Que horas são? 10:45 – ou seja, na realidade 9:45, porque nunca pus o radiorrelógio de volta ao horário normal: não dormi nada – e este sangue, na cama, no travesseiro, é meu. E contudo estou viva, estou de pé, e não sinto dor. O sangue está na minha mão, a esquerda, nos dedos – é sangue fresco. Preciso sentar-me de novo, estou para desmaiar. Sempre foi assim. Até na universidade, ver sangue me fazia desmaiar. Pronto, sentada está melhor. Preciso me olhar no espelho, eu sei, mas estou com medo de ter sangue no rosto também. Desfigurada não posso viver. Mas, então, desfigurada por quem? Alberto? Ele ainda tem a chave: enlouqueceu, veio aqui enquanto eu dormia e me... que loucura: pobre Alberto, como me ocorre uma coisa dessas? E no entanto algo aconteceu, há sangue no lençol, no travesseiro, na minha mão – vermelho, fresco. Ainda está saindo da mão: gotas de sangue, no chão. Preciso olhar de qualquer jeito, preciso averiguar, não posso desmaiar. Sou uma médica ou não? Coragem: a mão, a mão esquerda. Pronto. Os dedos. O indicador, sobretudo, na falange – ah, Deus, não. A cicatriz. O que aconteceu? Que porra que aconteceu? Mas é isso mesmo: a cicatriz reabriu. Mas não é possível que tenha aberto – depois de quanto tempo? Era o último ano em que participava das competições, eu tinha 17 anos – depois de quinze anos. E no entanto é ela mesma, aquela cicatriz. Sim, é ela. Abriu de novo, olhe aqui. Dá para ver o osso, ah, meu Deus, como quando me cortei há quinze anos – me sinto mal, vou desmaiar. Dá para ver o osso, o sangue continua saindo aos borbotões, eu me sinto mal, mas preciso pará-lo, preciso fazer alguma coisa: pegar um lenço, isso, apertá-lo em torno do dedo, assim, prendê-lo, certo – com quê? O elástico de cabelo, não, não serve; aqueles band-aids que tenho no banheiro seriam bons, mas no banheiro há o espelho, e tenho medo de me ver no espelho: e se estiver desfigurada? Mas preciso ir, e rápido, senão vou acabar morrendo pela hemorragia. Pronto, estou no banheiro. Pronto, estou me olhando no espelho. Nada, o rosto está direito, só as olheiras, e uma palidez cadavérica – é claro, estou para desmaiar, estou para morrer de hemorragia. Mas não, resisto, respiro e resisto, pego os band-aids, no armarinho, aliás não, melhor o esparadrapo, aqui, um belo pedaço, o lenço já está cheio de sangue, e agora o que faço? Respiro, volto pro quarto, me sento de novo na cama. Respiro. Ioga. Dentro. Fora. Dentro. Fora. Como é o mantra? So Ham, acho. Isso. So Ham. Olhe só, quanto sangue, parece mesmo que me degolaram. O que faço? Volto ao pronto-socorro, claro, o Crocetti está lá, ele assumiu quando saí, nos cruzamos no vestíbulo: o que ele vai pensar. Preciso me vestir, e vou sujar tudo de sangue: preciso pôr o macacão, o moletom, coisas que se lavem com facilidade – mas que me importa? Preciso evitar morrer pela hemorragia, que importa se sujo ou não as roupas? E preciso ir logo, estou para desmaiar, mas não posso desmaiar, aliás, preciso sair, mas primeiro preciso pegar as chaves, isso, e o celular, e respirar, respirar profundamente – So Ham – e depois sair, sim, com o impermeável e o gorro. Ainda neva, não posso ir a pé. Preciso arriscar com o carro. Preciso chegar o quanto antes ao Crocetti, ele vai me costurar. Droga, o Clio está quase coberto de neve, quanto será que caiu em uma hora e meia? Pelo menos 10 centímetros. Vá, Giovanna, entre no carro. Vá, gire a chave. Ligue o limpador de para-brisa. Muito bem, isso. E respire, não olhe o dedo, nem o lenço encharcado de sangue: ligue o ar, melhor, que aqui já está ficando tudo opaco. Muito bem. E agora saia do estacionamento, mas devagar, com o pé suave no acelerador, isso. A rua pelo menos está livre, os limpadores de neve estão trabalhando, e vá, isso, assim, devagarzinho, seguindo a marca dos outros carros no chão, mantendo as rodas nos trilhos limpos. Assim, isso: sem derrapagens, sem freadas, por favor – por sorte tem pouca gente na rua. A cicatriz abriu. Mas como é possível? Devo ter batido com o dedo em alguma coisa, dormindo, alguma coisa cortante, sei lá, na mesinha de cabeceira, olhe só, a curva é feita sem interrupção, redonda, assim, ou no espelho da cama, uma batida enquanto me virava dormindo, sim, contra alguma coisa cortante. Olhe o ônibus. Não o ultrapasse, pare atrás dele. Espere as pessoas descer, espere que ele ande. Não. Depois de quinze anos uma cicatriz não pode reabrir, tão profunda e precisa como – Deus, se pensar nisso desmaio. Respirar, respirar, e depois por que esse medo? Por que ainda tenho medo? De quê? So Ham. Não me machuquei dormindo, não estou desfigurada, não desmaiei e não morro mais de hemorragia, olhe o hospital, olhe a cancela do pronto-socorro. O segurança mudou, agora está aquele de cabeça raspada, que tem a irmã com leucemia, pobrezinha: me reconhece, abre a cancela, me cumprimenta, mas depois de quinze anos uma cicatriz não pode reabrir sozinha, não há nada a fazer, devo ter visto mal, me machuquei bem perto, claro, no mesmo dedo: só posso ter visto mal, culpa do medo, aquele medo que ainda não foi embora. Olhe, há uma vaga – mas devagar, olhe o tanto de neve. Melhor manobrar. Isso, entrou perfeito, assim. Pronto. Sair, agora, e tomar cuidado para não cair nessa nevasca que – caralho, não posso acreditar, não pus os sapatos. Saí de pantufas, dirigi de pantufas – as pantufas horríveis que Alberto me deu, aquelas com orelhas de Mickey. Vou chegar ao pronto-socorro com as pantufas de Mickey. Bom, agora não há nada a fazer, já entrei. Oi, Luciano, oi, Ignazio. Os enfermeiros me olham estranho, mas sigo reto, sinto que esta coisa inexplicável só posso tentar explicar uma vez, ao Crocetti, quando ele me suturar. Ali está ele, em pé diante da porta do ambulatório, não está fazendo nada, nenhuma emergência, conversa com a enfermeira bonita, como se chama?, Sofia...

    – Giovanna – diz, quando me vê.

    – Mario – respondo. – Você precisa me suturar.

    Sofia lança um olhar de esguelha ao lenço ensanguentado e zarpa. Entramos no ambulatório e há um cheiro de comida, tipo massa ao forno, a esta hora da manhã. Crocetti está com um ar alarmado, talvez por causa da minha cara, do sangue que ensopa o lenço, do fato de eu estar de pantufas.

    – Deixe ver – me diz, e se mete a desfazer o embrulho molhado de sangue. – O que aconteceu?

    E eu, então, me envergonho. É. Agora que há outra pessoa examinando a ferida, agora que a responsabilidade já não é minha, posso olhar o dedo com a atenção que antes não conseguia ter – e é exatamente aquela cicatriz que abriu. Nenhuma dúvida: é exatamente aquele corte, certeiro, profundo – segundo dedo, lado dorsal, nível médio, ou seja, precisamente na dobra. Só que de repente me envergonho: sim, de repente me envergonho de dizer que uma cicatriz de quinze anos atrás foi reaberta, de repente já não tenho nem aquele único impulso de ter de dizer, de explicar – e afinal, explicar o quê? Depois de quinze anos uma cicatriz não pode reabrir.

    – Eu me cortei fatiando pão – digo. Como disse quinze anos atrás minha mãe, por telefone, depois que me haviam suturado. Só que era verdade, antes.

    – Olhe só – diz Crocetti, movendo o dedo com delicadeza. – Dá para ver o osso. Como aconteceu isso?

    O medo passou, de qualquer forma. Olhemos também pelo lado bom: já não estou para desmaiar, não vou morrer de hemorragia, e o medo passou. Crocetti é tranquilizador, afinal: a careca, os óculos no nariz, o ar entediado de projetista, tem esse trabalho há, não sei, talvez quinze anos.

    Como aconteceu?

    – Usei a faca errada – explico –, a de presunto. O pão estava duro, a lâmina escorregou na crosta e zac... – Como expliquei à minha mãe quinze anos atrás. Só que era verdade, e tinha dezessete anos, e agora tenho trinta e um, e não fiz nada, a cicatriz reabriu sozinha enquanto eu dormia, mas isso não consigo dizer, porque ela não pode ter reaberto sozinha enquanto eu dormia.

    Crocetti balança a cabeça.

    – Giovanna, Giovanna... – faz. Sei lá o que quer dizer. Que sou uma desajeitada? Que sou imatura? Uma irresponsável? É claro, todos devem parecer irresponsáveis, aborrecido como ele é. Aquele que me suturou quinze anos atrás se parecia com Lando Buzzanca. Lembro perfeitamente.

    – Se quiser, suturo isso – diz –, mas há a possibilidade de que você tenha lesionado o tendão, e neste caso...

    Não. Lando Buzzanca pensara isso também, quinze anos atrás, naquela minúscula enfermaria de... onde era, Val Senales? Eram as finais dos campeonatos regionais: sim, era Val Senales. Mas depois se descobriu que o tendão não sofrera nada.

    – ... uma pequena intervenção de reconstrução. Senão depois você se arrisca a não dobrar mais o dedo.

    Não. Corri este risco quinze anos atrás, e deu tudo certo.

    – Não – digo –, pode suturar. O tendão está bem.

    Concordo com que não pode acontecer, mas se acontece, como parece que me aconteceu, se uma cicatriz reabre quinze anos depois, durante o sono, assim, do nada, absurdamente, não pode lesionar um tendão que não tinha sido lesionado na época do incidente. Ou não?

    – Você que sabe...

    Caralho. A lógica a gente não pode jogar fora. Se é aquela cicatriz, é aquela ferida: e aquela ferida não lesionou o tendão. Ponto.

    Mais ou menos o que eu estava dizendo outro dia ao Alberto, enquanto nós nos separávamos – a citação de Descartes: tudo bem a irracionalidade, o desconhecido, tudo bem, está tudo certo, mas a hera não pode crescer mais alto que o muro que a sustenta.

    Éramos três: o irmão de Beppe, Sauro Formento, seu filho Zeno e eu. Pegamos as motoneves. A nevasca havia engrossado, flocos grandes e pesados, tenazes, que ao contato com a pele não derretiam. Eu guiava uma motoneve, e Zeno, a outra: Sauro, o progenitor, o pai, o irmão mais velho, o patriarca e comandante de tudo, em São Judas, não podia guiar, por causa daquele braço. Dois infartos, havia tido, e um íctus que lhe paralisara o braço esquerdo. Não podia mesmo guiar a motoneve, e para dizer a verdade não era bom que fizesse nada sozinho, mesmo que ainda tivesse força: por isso seu filho Zeno estava sempre ao seu lado, obscuro e taciturno – e estranho, como todos diziam, desde o momento em que havia deixado a Nacional de salto com esqui, dezoito anos antes, e se fechara em São Judas. Tomamos a estrada em direção ao bosque, em um branco que cegava, com a neve chicoteando o rosto. Caindo muito, já havia apagado os traços do trenó: por isso andávamos bem devagar, e de quando em quando Zeno parava mesmo, para conferir se ainda estava na estrada ou, digamos, no campo dos gêmeos Antonaz – porque com aquela neblina e aquela nevasca era possível perder-se mesmo em casa, mesmo percorrendo a única estrada que havia. Por outro lado, para onde estávamos indo? Não nos dissemos nada, tínhamos partido e pronto. Nenhum de nós três havia expressado os temores que todos imediatamente experimentamos ao ver o trenó vazio e aquele pobre cavalo alucinado, e havia algo de falso na nossa expedição, como uma reticência, como uma negação: o sentido com que Zeno a governava dava a entender que sabíamos o que estávamos fazendo, que estávamos andando na direção certa, usando a prudência adequada, produtivos, operativos: havia enfim uma ilusão de concretude, no nosso modo de agir, que agora parece ridícula enquanto na hora devia ser até mesmo natural, dada a situação. De resto é muito difícil, para mim, agora, lembrar o que sentia nesse momento: o que aconteceu logo depois transborda na memória e afeta até o começo. Certamente estava preocupado, mas não consigo lembrar a entidade real daquela preocupação, e me esforço para admitir que havia até, como com certeza havia, um pouco de esperança – a ingênua convicção de que, o que quer que houvesse ocorrido, nós poderíamos encarar. O fato é que o tempo corre em só uma direção, mas só se consegue compreender seu sentido indo de trás para frente: por isso, agora, na lembrança, revejo nós três, indo direto para a boca do diabo, mas na realidade não era isso, não sabíamos para onde estávamos indo, não tínhamos a mínima ideia do que nos esperava.

    Pronto. O dedo foi suturado – quatro pontos, obviamente, como antes: os lençóis estão na máquina de lavar, tudo está limpo, já não há sangue em lugar nenhum. Não deu muito trabalho, afinal de contas. E, quando me cortei em Val Senales, o quarto da pensão onde eu morava ficou sujo de sangue por dias: por causa do corte o treinador – se chamava Amerigo – proibiu minha participação nas corridas, voltei desesperada para casa e fiquei lá; as minhas companheiras de quarto, duas babacas praticantes de slalom chamadas Irene Norsa e Maria Adele Passarelli, disseram que não cabia a elas limpar meu sangue e pediram para trocar de quarto; o pessoal da pensão fez uma confusão gigantesca, dizendo que limpar aquele sangue era perigoso, tipo suponhamos que a garota tem Aids, e se recusaram a fazê-lo. Três dias depois do meu retorno a casa, o presidente do clube de esqui telefonou sugerindo que eu voltasse para limpar o quarto – em Val Senales, a três horas e meia de ônibus –, dado que não havia praticamente ninguém em todo o vale que estivesse disposto a fazê-lo, e o pessoal da pensão ameaçava entrar na Justiça. Meu pai o mandou tomar no cu, e imagine se eu conseguia fazer faxina enquanto as outras disputavam a minha corrida – o Super G; e foi minha mãe, naquela hora, que resolveu a questão à sua maneira: sem dizer nada pegou sua R5, foi até aquela pensão e em poucas horas limpou tudo. Mas quando voltou estava perturbada – não, é claro, pelo trabalho, mas pelo estado em que encontrara a casa: parecia, disse, que tinham me degolado. Isso porque quando me cortei estava sozinha: havia slalom naquela manhã, as duas babacas tinham saído bem cedo para o reconhecimento, e eu tinha posto na cabeça fazer um café da manhã ao modo americano. Tínhamos comprado um pouco de comida, que acabara de chegar, no minimercado, para comer em casa, visto que o clube de esqui só dava uma refeição por dia, e naquela manhã eu tinha acordado com fome. Estava com vontade de comer dois ovos fritos com bacon. Estava em perfeita forma, me sentia forte como um tigre, nos treinos dos dias anteriores tinha dado um segundo e meio a todas: estava sem dúvida convencida de que ia vencer o Super G, o que teria significado ir às finais nacionais no fim do mês com outro ânimo, não por uma colocação, mas para disputar o título, finalmente, com as três ou quatro de sempre, que sempre me batiam – a Tramor, a Menzio, a Caponegro – e que eu tinha acabado de pôr na linha naquela mágica corrida de Campiglio, quando Karen Putzer apertou minha mão. Sim, estava em estado de graça, ou ao menos achava que estava, e a grande fome daquela manhã era também um sintoma. A favorita número 1 precisa abastecer seu corpo formidável. Faço um belo café forte. Fervo o leite e o deixo esfriar um pouco. Abro a garrafa de suco de laranja, encho um copo e tomo metade. Ponho o bacon e o ovo para fritar, e em toda essa sequência de gestos me sinto grande, livre, feliz – a mulher eficiente e inabalável em que quero me transformar, que trabalha o dia inteiro e volta para casa cansada, de noite, mas não fica choramingando porque o marido não a ajuda na cozinha, e prepara correndo um jantar simples e bom, e fecha a geladeira com a bunda enquanto prepara a maionese com a mão contando para ele em voz alta uma coisa estranha que viu durante o dia. Mas quando os ovos estão quase prontos me dou conta de que não cortei o pão. É uma pedra, tem dois dias, de pão preto com casca. Procuro a faca de pão, não é que não a tenha procurado – porque a usamos ontem à noite –, mas não a encontro, nem na gaveta nem na pia nem sobre a mesa. Desapareceu. Os ovos e o bacon já estão prontos, e na pressa pego a faca de queijo, aquela comprida e superafiada. Seguro o pão com a mão esquerda e o ataco com aquela faca errada na mão direita – e no primeiro, brevíssimo instante, no primeiro contato da lâmina com a casca, me dou conta de que isso não está certo, de que a mulher que eu era não faria isso: lembro perfeitamente porque lembro perfeitamente da decisão no instante posterior de não parar, de não apagar o fogo da frigideira e de não procurar a faca certa com calma, sem cortar aquele pão até que a encontrasse, no limite deixando os ovos esfriar, ou melhor, jogando-os fora e refazendo tudo com o pão já cortado... Lembro perfeitamente que pensei tudo isso, mas foi um segundo, um tempo curto demais para produzir a decisão certa, desconsiderada por um fulminante, mas invencível, Ah, foda-se. Agora sei como se chama esse modo de agir, agora sei tudo sobre os impulsos autodestrutivos e os atos falhos, mas na época era uma cretina de dezessete anos que fez a coisa errada. Portanto, faço força sobre a faca e a lâmina, delicada e flexível como é, e em vez de penetrar na casca escorrega de lado e corta o indicador da mão esquerda, bem sobre a junta – vejo-a afundar na carne. Não sinto dor, é mais um horror: vejo o rosa do dedo tornar-se vermelho, vejo o brilho da carne viva agitar-se na garganta do corte, ao fundo do qual vejo algo branco – o osso –, e sinto que vou desmaiar. Tenho presença de espírito para desligar o fogo da frigideira e me arrastar, com as pernas moles, perdendo litros de sangue, em direção à porta, onde há um interfone para falar com a recepção. Mas estou desmaiando, não há nada que fazer, e quando a recepcionista atende só consigo sussurrar Socorro!, e caio no chão, deixando um rastro na parede com os dedos sujos de sangue ao tentar me apoiar.

    É extraordinário o quanto essa lembrança está viva agora. O que geralmente se diz de forma metafórica, o reabrir das feridas, o reaflorar das dores passadas, está acontecendo de verdade, tanto que sinto a forte tentação de acreditar eu mesma na versão que contei ao Crocetti. Preciso fazer um esforço, mesmo, para voltar à verdade: esse incidente de cortar pão foi há quinze anos, a cicatriz reabriu sozinha enquanto eu dormia – e, até onde sei, isso não é possível. Não tenho muitos livros aqui, deixei quase todos na casa de Alberto – e não tenho nenhuma intenção de ligar para ele agora. Há um, aqui, o Bricot, Reprogramação postural global, mas que trata de vícios de postura e dos traumas psicológicos para os portadores de cicatrizes, e não me serve de nada.

    Internet. Não tenho escolha.

    Disse aos carabinieri, disse ao procurador, disse a todos os que me perguntaram o que o senhor viu?: a árvore, nós vimos, a árvore congelada. Foi a primeira coisa que vimos assim que entramos no bosque – e mesmo depois, quando vimos o resto, foi a única coisa inteira que vimos. A árvore. Estava ali, no seu lugar, na entrada do bosque, cristalizada como sempre no seu sobretudo de gelo, cuja transparência era ofuscada pela neve fresca – mas estava vermelha. Estava vermelha, sim, como se Beppe Formento, no ato de congelá-la, tivesse posto xarope de cereja no canhão. Naquele branco mortal, era a única coisa que mantinha uma forma, e parecia – não exagero – acesa, pulsante com aquela íntima luz da aurora com que ainda hoje me encontro sonhando. Sonho com aquela transparência vermelha, sim, ainda hoje, e sonho sem a árvore, agora, sem sequer a forma da árvore: sonho com aquela cor e mais nada. Um pôr do sol aprisionado em um céu de gelatina, uma cortina de quartzo vermelho que cala sobre o meu sono, uma imensa bala Charms que o mundo come, continuo sonhando com aquela transparência vermelha, porque é o que vimos quando chegamos ao bosque. O que vocês viram? Vimos a árvore congelada encharcada de sangue.

    Tenho vergonha de dizer, mas à primeira vista, quando a distingui na nuvem de leite que nos envolvia, por um momento admirei sua beleza; e com o último pensamento ingênuo da minha vida, com o último pensamento fútil, e pueril, e superficial, e cândido e inocente da minha vida, por um momento me iludi com o fato de que aquilo fosse a única coisa que tinha acontecido. Eu me iludi pensando que Beppe Formento, naquela manhã, para acabar com a monotonia dos nossos dias, tivesse colorido de vermelho a árvore congelada e tivesse mandado o trenó vazio para São Judas, para nos atrair até ali, e tivesse se escondido junto com os passageiros atrás das árvores, para rir com eles da nossa maravilha. Eu me iludi imaginando que, enquanto descíamos estupefatos das motoneves e dávamos os primeiros passos em direção àquele totem, todos eles estivessem a ponto de sair correndo do esconderijo, alegres, gritando sem parar para nos assustar. Tenho vergonha de dizer isso, mas no momento em que admirei a beleza sobrenatural daquela árvore e pensei em uma brincadeira espetacular de Beppe Formento, lamentei que os outros também não tivessem vindo: pensei em Rina, que ficara na loja, pensei em Perla e em seu filho, pensei em Ignazio, em Winfred, em Florian na cadeira de rodas, em Enrico e Manrico Antonaz, na mulher de Reze’, Urania, que enviuvou há pouco, em Argenia, Adua, Regina, Heidi, Genise, nos gêmeos Lechner, em Polverone, em Terenzio, Nives, na Fernanda, Maria, Armin e Lorenzetto; tive tempo para pensar, e me envergonho do quanto tinha sido bobo em não perceber logo, quando Zorro chegou à praça, que se tratava de um convite de Beppe Formento para que fôssemos todos ao bosque, todo o vilarejo, a pé, sob a nevasca, para nos impressionarmos todos juntos com a árvore congelada que ele havia pintado de vermelho. Este foi, como repito, o último pensamento ingênuo de toda a minha vida, e, apesar de haver durado um segundo, me lembrarei dele para sempre.

    Com as

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