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Ivanhoe
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E-book644 páginas9 horas

Ivanhoe

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Sobre este e-book

Uma das obras-primas de Walter Scott e considerado o primeiro romance histórico do Romantismo, "Ivanhoe" (1820) narra a luta entre saxões e normandos e as intrigas de João sem Terra para destronar Ricardo Coração de Leão.
IdiomaPortuguês
EditoraMimética
Data de lançamento19 de abr. de 2024
ISBN9789895620319
Ivanhoe
Autor

Sir Walter Scott

Sir Walter Scott (1771-1832) was a Scottish novelist, poet, playwright, and historian who also worked as a judge and legal administrator. Scott’s extensive knowledge of history and his exemplary literary technique earned him a role as a prominent author of the romantic movement and innovator of the historical fiction genre. After rising to fame as a poet, Scott started to venture into prose fiction as well, which solidified his place as a popular and widely-read literary figure, especially in the 19th century. Scott left behind a legacy of innovation, and is praised for his contributions to Scottish culture.

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    Ivanhoe - Sir Walter Scott

    Capítulo 1

    Naquele agradável distrito da velha Inglaterra banhada pelo Rio Don, estendera-se em tempos idos uma grande floresta, cobrindo a maior parte das belas colinas e vales situados entre Sheffield e a encantadora cidade de Doncaster. Os vestígios desse extenso bosque podem ainda ver-se nos domínios de Wentworth, Warncliffe Park e nos arredores de Rotherham. Aí, reinara outrora o fabuloso Dragão de Wantley; foi aí que se travaram muitas das mais desesperadas batalhas durante a Guerra Civil das Rosas! E também aí floresceram nesses tempos antigos, grupos de galantes bandidos, cujos feitos tão popularizados foram pela canção inglesa.

    Este é o nosso principal cenário e a nossa história data do período final do reinado de Ricardo I, na época em que o seu regresso do longo cativeiro se tornara acontecimento mais desejado do que acreditado pelos seus desesperados súbditos, que entretanto estavam sujeitos a toda a espécie de opressões dominadoras: os nobres, cujo poder se tornara exorbitante durante o reinado de Stephen e a quem a prudência de Henrique II dificilmente obrigara a um certo grau de sujeição à coroa, haviam recuperado a sua antiga arrogância, levada agora aos extremos. Desprezando a fraca interferência do Conselho de Estado inglês, fortificavam castelos, aumentando o número dos seus súbditos reduzindo tudo o que os rodeava ao estado de vassalagem, e lutando por todos os meios ao seu alcance para se colocarem à frente de tão poderosas forças que pudessem influir nas perturbações nacionais que pareciam avizinhar-se.

    A situação da pequena nobreza — ou Franklins, como eram chamados — que, por lei e pelo espírito da constituição inglesa tinha direito a manter-se independente da tirania feudal, tomava-se agora muitíssimo precária. Caso, como geralmente acontecia, se colocassem sob a proteção de qualquer dos pequenos reis das vizinhanças, aceitassem qualquer cargo feudal em suas casas, ou se comprometessem, por meio de tratados mútuos de aliança e proteção, a ajudá-lo nas suas empresas, poderiam, é certo, gozar de tranquilidade temporária; mas conseguiam-no com o sacrifício dessa independência que tão querida era em cada peito inglês, e com o risco de se verem envolvidos em qualquer árdua expedição que a ambição do seu protetor levasse a empreender.

    Por outro lado, tantos e tantos eram os meios de vexame e opressão de que dispunham os grandes barões, que raramente recorriam a pretextos, e nunca os desejavam, para humilhar e perseguir, chegando ao limite da destruição sobre quaisquer dos seus vizinhos menos poderosos que tentassem afastar-se da sua autoridade. Confiavam, para sua proteção numa época tão cheia de perigos, na conduta inofensiva e nas leis do país.

    Uma circunstância que muito contribuiu para aumentar a tirania da nobreza e os sofrimentos das classes inferiores surgiu em consequência da conquista levada a cabo pelo duque Guilherme, da Normandia. Quatro gerações não haviam sido suficientes para fundir o hostil sangue dos normandos e o dos anglo-saxões, ou para unir, por meio de uma língua comum e interesses mútuos, duas raças inimigas, uma das quais ainda sentia o gozo da vitória, enquanto a outra se lamentava sob o peso das consequências da derrota.

    O poder fora totalmente posto nas mãos da nobreza normanda, depois da batalha de Hastings, e fora exercido como nos afirma a nossa História, de forma imoderada. Toda a linhagem dos príncipes e nobres saxões havia sido espoliada ou deserdada, com raras ou nenhumas exceções, como também não eram muitos os que possuíam terras no país dos seus antepassados, como proprietários de segunda ou ainda de classe inferior.

    A política real há muito se destinava a enfraquecer, por todos os meios, legais ou ilegais, a força de uma parte da população, a qual era muito justamente conhecida por alimentar a mais inveterada antipatia pelo vencedor. Todos os monarcas da raça normanda haviam mostrado a mais marcada predileção pelos seus súbditos normandos; as leis da caça, e muitas outras, igualmente desconhecidas na constituição anglo-saxónica, de espírito mais suave e mais livre, tinham sido impostas aos habitantes subjugados, para dar mais peso, se necessário fosse, às cadeias feudais a que estavam agrilhoados. Na corte e nos castelos dos grandes senhores onde se imitava a pompa e a magnificência de uma corte, a única língua utilizada era a franco-normanda. Nos Tribunais de Justiça, as sentenças e os julgamentos eram pronunciados no mesmo idioma.

    Em resumo, o francês era a língua de honra, da cavalaria e mesmo da justiça, enquanto o muito mais viril e expressivo anglo-saxão era abandonado ao uso da plebe e dos camponeses, que não conheciam outro. No entanto, a necessária compreensão entre os senhores da terra e os oprimidos seres inferiores, ocasionou a gradual formação de um dialeto, composto pelo francês e o anglo-saxão, e no qual se tornavam mutuamente inteligíveis; e, desta necessidade, nasceu gradualmente a estrutura da atual língua inglesa, na qual a fala dos vencedores e dos vencidos se fundiu tão harmoniosamente, e que tem sido desde então ricamente desenvolvida por meio de importações de línguas clássicas e dos idiomas das nações do sul da Europa.

    Este estado de coisas, que pensei ser necessário descrever para informação do leitor comum, pois pode ter tendência a esquecer que, embora não existam grandes acontecimentos históricos a marcar a existência dos anglo-saxões como povo separado após o reinado de Guilherme II — tais como guerras ou insurreições — a verdade é que as grandes distinções nacionais entre eles e os seus conquistadores, a recordação do que tinham anteriormente sido e daquilo a que estavam reduzidos, continuou até ao reinado de Eduardo III, mantendo vivas as feridas que a conquista infligira, e conservando a linha de separação entre os descendentes dos vitoriosos normandos e dos vencidos saxões.

    O Sol punha-se sobre uma das ricas e verdejantes clareiras da floresta que mencionámos no início deste capítulo. Centenas de carvalhos, com copas largas, troncos baixos e espalhados, e ramos que talvez tivessem presenciado o desfile triunfal das legiões romanas, abriam as suas copas frondosas sobre o espesso tapete da mais deliciosa e verde relva; em alguns locais confundiam-se tão estreitamente com vidoeiros, azevinhos e arbustos de várias espécies, que intercetavam totalmente os baixos raios do Sol poente; em outros, afastavam-se, formando longas alamedas, em cuja luxuriante vegetação os olhos gostam de perder-se, enquanto a imaginação os idealiza como caminhos para cenários ainda mais selvagens e solitários.

    Aqui, os raios vermelhos do Sol derramavam uma luminosidade descolorida e intermitente que pairava parcialmente sobre os espalhados arcos e os troncos das árvores cobertos de musgo, e ali iluminavam, em manchas brilhantes, as porções de verdura por onde tinham entrado. Um considerável espaço aberto no meio desta clareira, parecia ter sido dedicado antigamente aos ritos da superstição druídica, visto que, no cimo de uma pequena elevação, tão regular que parecia artificial, ainda permanecia uma parte de um círculo formado por rudes e não talhadas pedras de grandes dimensões. Sete mantinham-se eretas; o resto, tinha sido deslocado dos seus lugares, provavelmente devido ao zelo de qualquer convertido ao cristianismo, e jaziam, algumas prostradas perto do seu local inicial, e outras na vertente da colina.

    Apenas uma grande pedra encontrara o caminho para o fundo e, ao interromper o curso de um pequeno riacho, que deslizava suavemente em redor do sopé da elevação, a sua oposição produzia um fraco murmúrio na plácida e silenciosa corrente.

    As figuras humanas que completavam esta paisagem, eram em número de duas, partilhando, na sua indumentária e aspeto, o selvagem e rústico carácter, que é característico dos bosques a ocidente de Yorkshire, naquela época. O mais velho destes homens tinha um aspeto decidido, agreste e selvagem. O seu trajo era o mais simples que se possa conceber, uma espécie de túnica com mangas, composta da pele de qualquer animal, curtida, na qual o pelo fora originalmente mantido, mas que estava tão gasta e em tantos sítios, que seria difícil distinguir, dos pedaços que restavam, a que animal a pele pertencera. Esta vestimenta primitiva cobria da garganta aos joelhos e servia simultaneamente para todos os propósitos do vestuário; tinha no pescoço uma abertura, que apenas admitia a passagem da cabeça, de onde se pode inferir que se vestia enfiando pela cabeça e pelos ombros, à maneira de uma camisa moderna, ou antigo brigão. Sandálias apertadas com correias feitas de pele de javali protegiam-lhe os pés, e um rolo de fino cabedal enrolava-se-lhe artificialmente em tomo das pernas, subindo até às barrigas das mesmas e deixando os joelhos a descoberto, à moda dos montanheses da Escócia.

    Para que a túnica se ajustasse mais ao corpo, estava apertada na cintura com uma larga correia de cabedal, presa por uma fivela de cobre, de um lado da qual pende uma espécie de bornal, e do outro um chifre de bode com um bocal próprio para soprar. No mesmo cinto estava presa uma daquelas longas e largas facas, afiadas e de dois gumes, com um cabo de chifre de bode, que são fabricadas nas proximidades, e que já nesse período tinham o nome de faca de Sheffield.

    O homem tinha a cabeça descoberta e protegida apenas pelo cabelo muito espesso, entrançado e modificado, por influência do Sol, para um tom vermelho escuro, formando contraste com a barba das faces, que era de tonalidade amarela ou cor de âmbar. Falta só descrever uma parte da sua indumentária, que é demasiado interessante para ser esquecida: um anel de cobre semelhante a uma coleira de cão sem qualquer abertura e soldada em torno do pescoço, suficientemente largo para não lhe impedir a respiração, e no entanto demasiado apertado para poder ser retirado, exceto com a ajuda de uma lima. Nesta estranha coleira estava gravada, em caracteres saxões, uma inscrição com as seguintes palavras:

    Gurth, filho de Beowulph, é de nascença escravo de Cedric de Rotherwood.

    Perto do guardador de porcos, pois essa era a ocupação de Gurth, estava sentado, sobre um dos monumentos druídicos tombados, uma pessoa que aparentava menos cerca de dez anos, e cujo trajo, embora semelhante ao do companheiro na forma, era de melhores materiais e de aspeto mais fantástico: a sua túnica havia sido curtida numa tonalidade de púrpura clara, sobre a qual haviam tentado pintar grotescos ornamentos em cores diferentes. A túnica, juntou um curto manto, que mal lhe chegava a meio da coxa; era de um tecido carmesim, embora bastante sujo, debruado a amarelo vivo; e como podia passá-lo de um ombro para o outro ou, se lhe apetecesse, enrolá-lo todo em volta do seu corpo, a largura do manto, em contraste com o comprimento, constituía uma indumentária singular. Usava estreitas pulseiras de prata nos braços e no pescoço um colar do mesmo metal, contendo a inscrição:

    Wamba, filho de Witless, é servo de Cedric de Rotherwood.

    Calçava sandálias do mesmo tipo das do companheiro, mas em vez de um entrançado com correias de cabedal, as pernas estavam envolvidas numa espécie de polainas, das quais uma vermelha e a outra amarela. Tinha também um barrete com vários sinos em redor, com o tamanho próximo daqueles que se prendem aos falcões, é que tilintava sempre que virava a cabeça de um lado para o outro; e como raramente passava mais de um minuto na mesma posição, o som podia ser considerado incessante. Em torno da orla do barrete, prendia-se uma correia de cabedal, rija e cortada no topo, semelhante a uma corneta, ao passo que do seu interior saía uma espécie de saco pendente, caindo sobre um dos ombros como um antiquado barrete de dormir, como um saco de geleia ou ainda como o toucado de um hussardo moderno. Era a esta parte do barrete que estavam presos os guizos, o que, bem como a forma do chapéu e a sua própria expressão meio tonta meio maliciosa, era o suficiente para indicar a sua filiação na raça dos bobos domésticos, mantidos pelas casas ricas, para dissipar o tédio daquelas horas melancólicas que eram obrigados a passar dentro de portas. Tal como o companheiro, trazia um saco preso ao cinto, mas não possuía nem chifre nem faca, por ser provavelmente considerado como pertencendo a uma classe à qual é perigoso confiar instrumentos contundentes. Em lugar destes, estava equipado com uma espada de madeira, semelhante àquelas com que os arlequins realizavam as suas maravilhas num palco moderno.

    A aparência exterior destes dois homens formava um contraste tão forte quanto as suas expressões. A do servo, era triste e melancólica; estava curvado para o chão com um ar de profundo desespero, que podia também confundir-se com apatia, se não fosse o fulgor que ocasionalmente lhe brilhava nos olhos avermelhados, indicando que dormitava, sob um ar de profundo desânimo, um sentimento de opressão. Por sua vez, o olhar de Wamba indicava, como é vulgar na sua classe, uma espécie de curiosidade vazia e de rígida impaciência em qualquer posição, juntamente com uma grande satisfação pessoal no que respeita à sua situação e à sua indumentária. O diálogo travava-se em anglo-saxão que, como dissemos antes, era geralmente falado pelas classes inferiores, exceto pelos soldados normandos e pelo pessoal imediatamente dependente dos grandes nobres feudais. Mas transcrever a sua conversa no original seria de pouca utilidade para o leitor moderno, para bem do qual oferecemos a seguinte tradução:

    — Por S. Withold, malditos sejam estes porcos! — disse o pastor, depois de soprar vigorosamente na trompa para juntar a vara espalhada, a qual, respondendo ao seu apelo com notas igualmente melodiosas, não se apressou contudo a afastar-se do lauto banquete de bolotas e castanhas com que engordava, ou a abandonar as pantanosas margens do ribeiro, onde vários deles, mergulhados na lama, se espojavam à vontade, sem se importarem com a voz do pastor:

    — Malditos sejam eles e eu — volveu Gurth — se o lobo de duas pernas não levar alguns antes do cair da noite, não sou um verdadeiro homem. Aqui, «Fangs»! «Fangs»! — gritou em altos brados para um peludo cão com aspeto de lobo, uma espécie de cão de caça, meio mastim e meio galgo que corria, manco, de um lado para o outro, como se pretendesse ajudar o dono na tarefa de reunir os recalcitrantes animais; no entanto, quer por má compreensão dos sinais do pastor, quer por ignorância do seu dever, ou quer ainda por malícia, só conseguia afastá-los para mais longe, aumentando a confusão que deveria remediar.

    — Que o diabo lhe leve os dentes todos — insistiu Gurth — e que a mãe do mal confunda o guarda florestal que corta as unhas dos nossos cães e os faz impróprios para o serviço! Wamba, levanta-te e ajuda-me, se és homem. Dá uma volta por trás da colina para lhes cortares o caminho; e quando estiveres a favor do vento, podes empurrá-los para aqui como se fossem cordeirinhos.

    — O quê? — respondeu Wamba, sem se mexer do lugar. — Consultei as minhas pernas a esse respeito e elas são da opinião de que carregar com os meus alegres ornamentos por meio desses lameiros, seria um ato pouco amistoso para com a minha digna pessoa e para com o meu guarda-roupa real; por isso, Gurth, aconselho-te a chamar «Fangs» e deixares a vara entregue ao seu destino, o qual, quer os porcos se encontrem com bandos de soldados viajantes, com foras-da-lei, ou ainda com errantes peregrinos, não podem deixar de ser convertidos em normandos antes da manhã para tua felicidade e descanso.

    — Os porcos transformados em normandos para minha felicidade! — exclamou Gurth. — Explica-te, Wamba, porque a minha cabeça é demasiado dura e a minha inteligência demasiado fechada para perceber enigmas.

    — Então, como chamas a esses brutos grunhidores que correm sobre quatro patas? — perguntou Wamba.

    — ‘Swine’, meu parvo, ‘swine’ — disse o pastor. — Qualquer pessoa o sabe.

    — E ‘swine’ é em bom saxónico — consentiu o bobo. — Mas como chamas à porca depois de morta e esquartejada e pendurada pelas pernas, como um traidor?

    — ‘Pork’ — respondeu o guardador de porcos.

    — Alegra-me que qualquer maluco o saiba — disse Wamba. — ‘Pork’, creio eu, é bom franco-normando; assim, quando o animal está vivo e entregue aos cuidados de um escravo saxão, dá pelo nome saxão; mas toma-se normando e chama-se-lhe ‘pork’, quando é levado para o salão do castelo, a fim de ser festejado entre os nobres; o que pensas disto, amigo Gurth, hem?

    — É bem certo o que dizes, embora saia da boca de um bobo.

    — E não é tudo — acrescentou Wamba, no mesmo tom. — Há ainda o velho boi Alderman, a quem chamamos ‘Ox’ em bom saxónico, enquanto está a cargo dos servos e dos escravos como tu, mas passa a ser chamado ‘Beef’, em galante francês, quando chega às sagradas mandíbulas que o vão consumir. A senhora vitela, a quem chamamos ‘calf’, transforma-se em senhor ‘veau’ da mesma maneira; é saxão quando requer cuidados, e toma um nome normando quando se transforma em objeto de prazer.

    — Por S. Dunstan — respondeu Gurth. — Tristes verdades disseste; pouco fica para nós além do ar que respiramos, e mesmo esse parece que nos foi reservado depois de muita hesitação, apenas com o propósito de dar-nos a possibilidade de suportar as tarefas que atiram sobre os nossos ombros. O melhor e o mais gordo é para as suas mesas; o mais belo para as suas camas; os melhores e os mais bravos servem os seus senhores estrangeiros como soldados, e em terras distantes deixam os seus ossos, ficando poucos aqui, sem vontade nem poder para proteger os infelizes saxões. Abençoado seja o nosso amo Cedric; tem sido um verdadeiro homem, enquanto resiste; mas Reginald Front-de-Boeuf está a caminho deste país, em pessoa, e em breve veremos como o incomoda pouco a resistência de Cedric. Aqui, aqui — exclamou novamente, levantando a voz. — Oh! Oh! Belo trabalho, «Fangs»! Trá-los todos à tua frente, e condu-los muito bem.

    — Gurth — interrompeu o bobo — sei que pensas que sou louco, ou então não falarias de modo tão bruto comigo. Uma palavra a Reginald Front-de-Boeuf ou a Philip de Malvoisin, e tomas-te um traidor contra os normandos — e afinal não passas de um pobre guardador de porcos — acabando a baloiçar ao vento, pendurado numa destas árvores, para terror de todos os que se atrevam a falar mal contra os senhores.

    — Cão! Trair-me-ias! — bradou Gurth — depois de me levares a falar tão à vontade?

    — Trair-te! — respondeu o bobo. — Não, assim faria um homem ajuizado; um louco não seria capaz de dar um passo tão bom para si próprio... mas, baixinho, quem temos nós aqui? — disse, prestando atenção aos passos de vários cavalos, que começavam a ouvir-se.

    — Não interessa — respondeu Gurth, que conseguira agora reunir a vara e, com a ajuda de «Fangs», a ia conduzindo ao longo de um dos sombrios atalhos que descrevemos.

    — Não, mas tenho de ver os cavaleiros — respondeu Wamba. — Talvez venham de Fairyland, com uma mensagem do Rei Oberon.

    — Vai para o diabo — retorquiu o pastor. — Falas tu dessas coisas, quando paira no ar uma terrível tempestade de trovões e relâmpagos, a poucas milhas daqui? Ouves como o trovão ribomba? E quanto à chuva, nunca vi no Verão gotas tão gradas caírem das nuvens; os carvalhos, apesar do tempo calmo, também soluçam e estalam os seus grandes ramos, como que a anunciar uma tempestade. Melhor farias se tivesses juízo. Acredita em mim, e vamos para casa antes que a tempestade se abata sobre nós, pois a noite vai ser terrível.

    Wamba pareceu sentir a força deste apelo e seguiu o companheiro, que se pôs a caminho depois de ter apanhado um longo pau que estava no chão, a seu lado. Como Emaús, avançou rapidamente pela floresta, empurrando à sua frente, com a ajuda de «Fangs», toda a vara que tinha a seu cargo.

    Capítulo 2

    Não obstante os ocasionais conselhos e as advertências do companheiro, como o tropear dos cavalos continuava a aproximar-se, Wamba não podia deixar de atrasar-se pelo caminho, sob qualquer pretexto; agora, para apanhar avelãs meio-maduras num tronco carregado, a seguir voltando a cabeça para espiar uma moça do campo que cruzou o seu caminho. E os cavaleiros em breve os alcançaram.

    Eram em número de dez, todos homens, dos quais os dois que cavalgavam à frente pareciam ser pessoas de considerável importância, e os outros seus servidores. Não era difícil imaginar a condição e a linhagem de um deles. Tratava-se, obviamente, de um eclesiástico de alta posição; o hábito era o de um monge cisterciense, mas composto por roupas muito mais finas do que a ordem admitia. O manto e capa eram do melhor tecido da Flandres, e caíam em amplas e graciosas pregas, em tomo da sua figura elegante, sem bem que um tanto corpulenta. O seu aspeto denunciava tantos sinais de desprezo por si próprio, como o trajo pelos esplendores mundanos. As feições podiam ser chamadas boas, se não brilhasse nos olhos aquele fulgor epicurista e malicioso que dá a conhecer o voluptuoso dissimulado. Por outro, lado, a sua profissão e situação tinham-lhe ensinado um rápido autodomínio, que transformava a sua expressão de indulgência mundana e bem-humorada em aspeto solene. Desafiando as regras convencionais, e os éditos dos papas e dos concílios, as mangas deste dignitário eram debruadas e forradas de ricas peles, o manto preso na garganta com um fecho de ouro e toda a indumentária própria da ordem, tão refinada e ornamentada como a de uma beldade quaker dos nossos dias que, trajando com garbo o fato da sua seita, continua a dar à sua simplicidade, pela escolha dos tecidos e pelo modo de os dispor, um certo ar de vaidosa atração, saboreando demasiadamente as vaidades do mundo.

    O mundano clérigo montava uma esplêndida mula, ricamente ajaezada, cujas rédeas, de acordo com a moda da época, estavam ornamentadas com guizos de prata. Sobre a sela, não revelava a imperícia própria dos conventos, antes ostentava o à-vontade e a graça habituais num cavaleiro experiente. Na verdade, dir-se-ia que um animal tão humilde como a mula, por mais ricamente ajaezada que estivesse, era apenas usada pelo elegante monge para viajar pela estrada. Um irmão leigo, dos que seguiam no seu séquito, trazia, para seu uso noutras ocasiões, um dos mais belos ginetes espanhóis que a Andaluzia vira nascer, daqueles que os mercadores costumavam importar nesses tempos, com grandes trabalhos e riscos, para usufruto das pessoas de fortuna e distinção. A sela e o xairel deste soberbo palafrém estavam cobertos por um longo pano, que quase chegava ao chão, e no qual estavam ricamente bordadas mitras, cruzes e outras insígnias eclesiásticas. Outro frade leigo conduzia uma mula carregada provavelmente com a bagagem do seu superior; e dois monges da mesma ordem, de grau inferior, cavalgavam juntos na retaguarda, rindo e conversando um com o outro, sem prestarem grande atenção aos restantes membros da comitiva.

    O companheiro do dignitário eclesiástico era um homem de mais de quarenta anos, delgado, forte, alto e musculoso; uma figura atlética, à qual grandes cansaços e constantes exercícios pareciam ter tirado tudo o que há de mais suave nas formas humanas, reduzindo o conjunto a músculos, ossos e nervos, que haviam suportado milhares de trabalhos e estavam prontos para suportar outros mil. Cobria a cabeça com um barrete escarlate, forrado de pele — daquele tipo a que os franceses chamam mortier ou obus pela sua semelhança com a forma de um obus invertido. O seu semblante era, além disso, severo, e a expressão calculada, para exercer uma impressão de terror, se não de medo, sobre os estranhos; as feições, naturalmente fortes e muito expressivas, haviam sido bronzeadas até se tornarem negras como as dos africanos, e poder-se-ia dizer, no seu estado normal, que dormitavam depois de passadas as tempestades da paixão. Mas a saliência das veias da testa, a presteza com que o lábio superior e o espesso bigode negro estremecia à mais pequena emoção, indicavam claramente que a tempestade podia ser acordada outra vez com facilidade. Os olhos, escuros, diretos e penetrantes, contavam uma história de dificuldades subjugadas, de perigos enfrentados, e pareciam desafiar qualquer oposição aos seus desejos, pelo prazer de a banir do seu caminho por meio de um ato de coragem e de vontade; uma profunda cicatriz, que lhe sulcava a testa, dava ainda mais firmeza ao seu porte e uma expressão sinistra aos seus olhos, que tinham também sido levemente atingidos na mesma ocasião e cuja visão, embora perfeita, era ligeira e parcialmente distorcida.

    O manto deste personagem assemelhava-se ao do companheiro na forma, por ser um longo manto monástico; mas a cor, vermelha, mostrava que ele não pertencia a nenhuma das quatro ordens regulares de monges. No ombro direito do manto fora gravada, em tecido branco, uma cruz de forma especial. Este manto escondia o que à primeira vista parecia uma peça de forma inconsistente, uma cota de malha; com mangas e luvas do mesmo material, curiosamente entrançadas e trabalhadas, tão maleável junto do corpo como as que agora se tecem nos teares de meias, com materiais menos resistentes. A parte da frente dos calções, tanto quanto as dobras do manto permitiam que se visse, também estavam cobertas de malhas de aço; os joelhos e os pés eram protegidos por teclas, ou finas lâminas de aço, habilidosamente entrançadas umas nas outras; e umas meias de malha, que iam do tornozelo ao joelho, protegiam eficazmente as pernas e completavam a armadura defensiva do cavaleiro; preso ao cinto, um longo punhal de dois gumes, que era a única arma ofensiva que ostentava.

    Cavalgava não uma mula, como o companheiro, mas uma forte égua própria de estrada, para poupar o elegante cavalo de combate que um criado conduzia, completamente aparelhado para a batalha, com uma testeira de grande esporão aguçado, projetado na testa. Num dos lados da sela estava pendurado um curto machado de guerra ricamente trabalhado, e no outro, o capacete emplumado do cavaleiro e o montante de malha, com uma longa espada de dois gumes, usada pela cavalaria da época. Um segundo escudeiro levava a lança do seu amo, na extremidade da qual flutuava uma pequena bandeirola, ou flâmula, com uma cruz da mesma forma da que fora bordada no manto. Levava também o pequeno escudo triangular, suficientemente largo em cima para proteger o peito, diminuindo daí para baixo até acabar em ponta. Estava coberto com um pano escarlate, o qual impedia que fosse visto.

    Estes dois escudeiros eram seguidos por dois ajudantes, cujos rostos escuros e turbantes brancos, além da forma oriental do seu vestuário, os denunciava como nativos de qualquer distante país oriental. O aspeto do guerreiro e do seu séquito era feroz e estranho; mas a indumentária dos seus escudeiros era muito bela, e os ajudantes orientais usavam colares de prata em torno do pescoço e pulseiras do mesmo metal nos magros braços nus até ao cotovelo, e nas pernas, também nuas do joelho até ao tornozelo. Sedas e bordados distinguiam os seus trajos e indicavam a riqueza e importância do seu senhor, formando ao mesmo tempo um contraste nítido com a simplicidade marcial da indumentária deste. Vinham armados com sabres curvos de punho e bainha de ouro, além de punhais turcos de trabalho ainda mais rico. Cada um deles trazia preso à sela um punhado de dardos e de flechas, com cerca de quatro pés de comprimento, de pontas de acerado aço, arma muito usada pelos sarracenos e cuja memória é ainda preservada no exercício marcial chamado El Jerrid, ainda praticado nos países orientais.

    Os corcéis destes ajudantes tinham um aspeto tão invulgar como os seus cavaleiros. Eram de origem sarracena e, consequentemente, de ascendência árabe; e os seus membros finos, pequenos cascos, delgada crina e grande mobilidade de movimentos, formavam um marcante contraste com os pesados e largos cavalos cuja raça era criada na Flandres e na Normandia para montadas dos homens de armas, numa época em que toda a panóplia era de aço e malha — os quais, colocados ao lado destes corcéis orientais, poderiam passar pela personificação da substância e da sombra.

    O estranho aspeto desta cavalgada não só despertou a curiosidade de Wamba, como excitou a do seu menos volúvel companheiro. Reconheceu imediatamente o monge como o prior da abadia de Jorvaulx, conhecido milhas em redor como um amante de caça, de banquetes e, se a fama não era errada, de outros prazeres mundanos ainda menos de acordo com os seus votos monásticos.

    No entanto, as ideias do tempo eram tão livres no que respeita à conduta do clero, quer secular quer regular, que o prior Aymer mantinha boa reputação nas vizinhanças da sua abadia. O seu temperamento livre e jovial, e a prontidão com que dava a absolvição de todas as delinquências vulgares, fizeram dele o favorito da nobreza e da principal fidalguia, à grande parte da qual estava ligado por nascimento, visto pertencer a uma distinta família normanda. As senhoras, especialmente, não estavam muito interessadas em discutir a moral de um homem que se confessava grande admirador do seu sexo e que possuía diversos meios para banir o tédio que muitas vezes Se apoderava dos salões de festas nos antigos castelos feudais.

    O prior participava nos desportos ao ar livre com enorme entusiasmo e tinha os falcões mais bem treinados e os mais rápidos galgos de North Riding, circunstâncias que muito o recomendavam junto da jovem fidalguia. Com os velhos, tinha outro papel a desempenhar que, quando necessário, podia manter com grande decoro. O seu conhecimento dos livros, embora superficial, era suficiente para impor-se, com o seu suposto saber, à ignorância daqueles, e a gravidade do seu comportamento e linguagem, juntamente com o tom superior que utilizava para vincar a autoridade da igreja e do clero, não o faziam menos respeitado no que respeita à sua santidade. Até o povo, o mais severo crítico da conduta dos seus superiores, era indulgente para com as loucuras do prior Aymer.

    Este, era generoso. Ora, a caridade, como todos sabemos, cobre uma quantidade de pecados, noutro sentido que não o falado na Bíblia. Os rendimentos do mosteiro, dos quais grande parte estava à sua disposição, além de lhe proporcionarem os meios de cobrir as suas grandes despesas, permitiam também as franquezas que ostentava junto dos camponeses, e com as quais muitas vezes aliviava as preocupações dos oprimidos. Se o prior Aymer cavalgasse dias inteiros na caça, ou ficasse demasiado tempo à mesa do banquete; se o prior Aymer fosse visto, às primeiras horas da madrugada, a entrar por uma porta esconsa do convento, de regresso de qualquer encontro que lhe ocupara a noite — os homens limitavam-se a encolher os ombros e aceitavam as suas irregularidades, lembrando-se que as mesmas eram praticadas por muitos dos seus irmãos destituídos das qualidades redentoras que as atenuavam. Por isso, o prior Aymer e o seu carácter eram muito conhecidos dos nossos dois servos saxões, que o saudaram respeitosamente, recebendo em troca o seu benedicite, mes filz.

    Mas a esquisita aparência do seu companheiro e dos servidores deste excitou-lhes a atenção e o espanto a ponto de quase não conseguirem responder ao prior de Jorvaulx, quando este lhes perguntou se sabiam de qualquer sítio nas vizinhanças onde se pudessem abrigar, tanto estavam admirados com o aspeto meio monástico e meio militar do vigoroso estrangeiro e com a indumentária dos seus servidores orientais. E provável, também, que a linguagem na qual foi conferida a bênção e feita a pergunta soasse mal, embora não totalmente ininteligível, aos ouvidos dos criados saxões.

    — Perguntei-lhes, meus filhos — insistiu o prior, levantando a voz e empregando a língua franca, ou língua misturada, com a qual conversavam entre si as raças normandas e saxónicas — se existe nos arredores algum bom homem que, por amor de Deus e devoção à santa madre igreja, quisesse conceder a dois dos seus humildes servidores, e seu séquito, uma noite de hospitalidade e qualquer refresco!

    Disse isto num tom de importância consciente que formava um forte contraste com os termos modestos que achou conveniente empregar.

    — Dois dos mais humildes servidores da santa madre igreja! — repetia para consigo Wamba. Mas, louco como era, tendo o cuidado de não tornar audível tal observação, acrescentou: — Gostaria de ver os seus senescais, os seus mordomos principais e os seus outros servidores domésticos!

    Depois deste comentário íntimo sobre o discurso do prior, levantou os olhos e replicou à pergunta que tinha sido feita.

    — Se os reverendos padres — disse — gostassem de divertimentos e boas acomodações, uma cavalgada de poucas milhas levá-los-ia ao priorado de Brinxworth, onde a sua posição lhes asseguraria a mais honrosa receção; ou se preferissem passar uma noite de penitência, poderiam voltar por aquela alameda abaixo, que os levaria à ermida de Copmanhurst, onde um piedoso anacoreta os acolheria sob o seu teto e os faria beneficiar das suas orações.

    O prior abanou a cabeça a ambas as propostas.

    — Meu honesto amigo — disse — se o tilintar dos teus guizos não te privasse da compreensão, saberias que Clericus Clericum non decimat; isto é: que nós, homens de Igreja, não utilizamos a hospitalidade uns dos outros, mas preferimos a dos leigos, dando-lhes assim uma oportunidade de servir a Deus honrando e aliviando os seus ungidos servos.

    — É verdade — replicou Wamba — que eu, sendo idiota, tenho no entanto a honra de usar os guizos com tanto direito como a mula de vossa reverência. Não obstante, julgava que a caridade da santa madre igreja e dos seus servidores tal como a de todos, podia ser considerada como começando em casa.

    — Basta de insolências, vilão — disse o cavaleiro armado, entrando na querela com uma voz forte e dura — e diz-nos, se puderes, qual o caminho para... Como se chama o seu Franklin, prior Aymer?

    — Cedric — respondeu o prior — Cedric, o Saxão. Diz-me, bom homem, estamos perto da sua mansão, e podes mostrar-nos o caminho para lá?

    — A estrada não é fácil de encontrar — respondeu Gurth, falando pela primeira vez — e a família de Cedric retira-se cedo para descansar.

    — Cala-te, não me dirijas a palavra, homem — cortou o cavaleiro militar. — Ser-lhes-á fácil levantarem-se e prover às necessidades de viajantes como nós, que não paramos para suplicar a hospitalidade que temos o direito de exigir.

    — Não sei — disse Gurth, sombriamente — se devo mostrar o caminho para casa do meu amo àqueles que exigem como um direito o abrigo que muitos se contentam em pedir como um favor.

    — Discutes comigo, escravo! — exclamou o soldado. E dando esporas ao cavalo, fê-lo dar uma meia-volta no caminho, erguendo ao mesmo tempo o chicote que segurava na mão com o propósito de castigar aquilo que considerava uma insolência do camponês.

    Gurth dirigiu-lhe um olhar selvagem e vingativo, e com um movimento feroz, mas ao mesmo tempo hesitante, pôs a mão no punho da sua faca; mas a interferência do prior Aymer, colocando a sua mula entre o companheiro e o guardador de porcos, evitou a violência premeditada.

    — Não, irmão Brian. Pela Virgem Santa, não pense que está na Palestina, dominando turcos pagãos e sarracenos infiéis; nós, ilhéus, não gostamos de pancadas, exceto aquelas com que a santa igreja fustiga aqueles a quem ama.

    — Indica-me, bom homem — continuou, olhando Wamba e secundando as palavras com uma pequena moeda de prata — o caminho para casa de Cedric, o Saxão; não podes deixar de o saber e é teu dever dirigir o caminhante, mesmo quando o seu carácter é menos santificado do que o nosso.

    — Na verdade, venerável padre — respondeu o bobo — a cara de sarraceno do vosso reverendo companheiro da direita assustou-me muito no caminho para casa — e não sei se eu próprio conseguirei lá chegar hoje.

    — Que ideia! — disse o abade. — Se quiseres poderás indicar-nos o caminho. Este reverendo irmão tem dedicado toda a sua vida à luta contra os sarracenos para reaver o Santo Sepulcro; é da ordem dos Templários, de quem já deves ter ouvido falar; é monge-soldado.

    — Apesar de meio-monge — respondeu o bobo — não devia ser tão pouco razoável com aqueles que encontra no caminho, mesmo que estes não se mostrem apressados em responder a perguntas que não são da sua competência.

    — Perdoo-te a observação — replicou o abade — com a condição de me mostrares o caminho para a mansão de Cedric.

    — Bem, então — respondeu Wamba — vossas reverências terão de continuar por este caminho até chegarem a uma cruz prostrada, da qual só se vê no chão pouco mais do que um cúbito. Então, tomem o caminho da esquerda, pois há quatro que se encontram na cruz caída, e penso que vossas reverências obterão abrigo antes que caia a tempestade.

    O abade agradeceu o conselho; e o grupo, dando de esporas aos cavalos, partiu célere, como homens que desejam chegar a bom abrigo antes que sobre eles caia a tempestade noturna. Quando morreu ao longe o ruído dos cascos dos cavalos, Gurth disse para o companheiro:

    — Se seguirem as tuas sábias diretivas, os reverendos padres terão muita dificuldade em chegar a Rotherwood esta noite.

    — É certo — consentiu o bobo, sorrindo — mas poderão alcança! Sheffield, se tiverem sorte, que é um bom lugar para eles. Não sou tão mau conhecedor da floresta a ponto de mostrar ao cão onde se acoita o veado, quando não quero que lhe dê caça.

    — Tens razão — reconheceu Gurth — era perigoso que Aymer visse Lady Rowena; e seria ainda pior, se possível, que Cedric se zangasse, como provavelmente faria, com o tal monge-militar. Mas, como bons servidores, vejamos e ouçamos, e não digamos nada.

    Voltemos agora aos cavaleiros, que rapidamente se distanciaram dos servos, e que mantinham a seguinte conversa em franco-normando, usualmente empregado pelas classes superiores, com exceção daqueles que ainda se orgulhavam da sua ascendência saxónia.

    — Que queriam aqueles indivíduos com a sua insolência caprichosa — perguntou o templário ao cisterciense — e porque me impediu de castigá-los?

    — Ora, irmão Brian — replicou o prior. — No que respeita a um deles, é difícil dar razão a um louco quando fala de acordo com a sua loucura; e o outro rústico pertence àquela raça selvagem, orgulhosa e intratável, da qual se encontram ainda alguns espécimes, segundo me disseram, entre os descendentes dos vencidos saxões, e cujo supremo prazer é dar a conhecer, por todos os meios ao seu alcance, a aversão que sentem pelos conquistadores.

    — Obrigava-o num instante a ser cortês — observou Brian. — Estou acostumado a tratar com tais tipos: os nossos cativos turcos são tão ferozes e intratáveis como o próprio Ódin; no entanto, dois meses a meu cuidado, sob a direção do meu mestre de escravos, torna-os humildes, submissos, serviçais e observadores da nossa vontade. Cuidado, sir, acautele-se contra o veneno e a adaga, pois usam-nos, tanto a um como ao outro, com o maior prazer quando se lhes dá a mais pequena oportunidade.

    — Sim — respondeu o prior Aymer — mas cada país tem os seus próprios costumes e modos. E, além disso, bater naquele indivíduo não nos traria qualquer informação acerca do caminho para a casa de Cedric, e só serviria para arranjar uma disputa entre si e este, caso encontrássemos o nosso caminho até ele. Lembre-se do que lhe disse: este rico Franklin é orgulhoso, feroz, ciumento e irritável. Um antagonista da nobreza, e até dos seus vizinhos Reginald Front-de-Boeuf e Philip Malvoisin, que não são quaisquer crianças com quem lidar. Defende tão ferozmente os privilégios da sua raça e tem tanto orgulho na sua ascendência direta de Hereward, um notável campeão da Heptarquia, que é conhecido em toda a parte por Cedric, o Saxão, e gaba-se de pertencer a um povo do qual muitos tentam esconder a ascendência, para não terem de suportar o vae victis, ou multas impostas aos vencidos.

    — Prior Aymer, é um homem galante — disse o templário, sabedor no estudo da beleza, e perito trovador em todos os campos referentes às setas do amor; mas espero muita beleza da famosa Rowena, para contrabalançar a abnegação e a indulgência que terei de mostrar, se tiver de conseguir as graças de tal vilão, Cedric que me descreveu como pai dela.

    — Cedric não é o pai — replicou o prior. — É apenas um parente afastado. Ela descende de sangue ainda mais ilustre do que o seu, e está ligada à família de Cedric por distantes laços de nascimento. Ele é, no entanto, o seu guardião, e a si próprio impôs essa tarefa, segundo creio; mas a pupila é-lhe tão querida como se fosse sua própria filha. Da sua beleza será juiz em breve. E se a pureza da sua compleição e a majestosa — porém suave — expressão dos ternos olhos azuis não expulsarem da sua memória as moças de tranças negras da Palestina ou as huris do paraíso do velho Maomé, serei um infiel, e não um verdadeiro filho da Igreja.

    — Se a sua gabada beleza — disse o templário — fosse pesada na balança e tivesse peso a menos, quanto daria pela aposta?

    — O meu colar de ouro — respondeu o prior — contra dez pipas de vinho de Chio... que vão ser minhas, tão certo como estarem nas caves do convento, fechadas pelo velho Dennis, o despenseiro.

    — E eu serei o juiz — volveu o templário — e apenas terei de admitir que não vi outra moça mais bela desde o Pentecostes do ano passado. Não é assim? Padre, o seu colar corre perigo; usá-lo-ei por cima do meu fato nos torneios de Ashby-de-la-Zouche.

    — Ganhe-o justamente — disse o prior — e use-o a seu gosto. Confio em que dará uma resposta honesta, pela sua palavra de cavaleiro e de clérigo. Todavia, irmão, acate o meu conselho, habitue a língua a um pouco mais de cortesia do que aquela a que está habituado pelo seu poder sobre cativos infiéis e servos orientais. Cedric, o Saxão, se ofendido — e não é difícil ofendê-lo — é homem, sem respeito pelo seu grau de cavaleiro, pelo meu alto posto ou pela santidade de qualquer deles, para nos expulsar de sua casa e mandar-nos dormir com as cotovias, mesmo que seja meia-noite. E acautele-se com a maneira como olha para Rowena, a quem ele quer com o mais cioso zelo. Se tem o mais pequeno alarme nesse campo, estamos perdidos. Diz-se que baniu o seu filho único por ter erguido os olhos afetuosamente para tal beleza, que pode ser adorada à distância, ao que parece, mas de quem ninguém se pode aproximar com pensamentos diferentes daqueles que nos levam até junto do santuário da Virgem Maria.

    — Bem, já disse o suficiente — respondeu o templário. — Por uma noite, dominar-me-ei como convém, e portar-me-ei tal uma débil donzela. Mas quanto ao temor de que ele nos expulse pela violência, eu e os meus escudeiros, com Hamlet e Abdalla, damos-lhe garantias contra tal desgraça. Não tenha dúvidas de que seremos suficientemente fortes para honrar os nossos postos de combate.

    — Não devemos deixar as coisas chegarem a esse ponto — atalhou o prior. — Mas, eis a cruz tombada, e a noite está tão escura, que mal se vê qual das estradas teremos de tomar. Ele disse-nos que voltássemos, creio, à esquerda.

    — À direita — emendou Brian — se a minha memória não me engana.

    — Para a esquerda. Tenho a certeza de que era para a esquerda. Lembro-me de ter apontado com a sua espada de madeira.

    — Sim, mas tinha-a na mão esquerda, e por isso apontou passando-a sobre o corpo — disse o templário.

    Ambos mantinham a sua opinião com suficiente teimosia como é costume nestes casos. Os criados foram também consultados, mas não estavam suficientemente perto para perceber em que direção Wamba apontara. Por fim, Brian notou o que a princípio lhe tinha escapado no lusco-fusco:

    — Está ali alguém ou a dormir ou morto junto da cruz. Hugo, toca-lhe com a ponta da lança.

    Mal o gesto fora executado, surgiu um rosto, exclamando em bom francês:

    — Quem quer que seja, é indelicado perturbar-me nos meus pensamentos.

    — Só queríamos perguntar-lhe — disse o prior — qual é a estrada para Rotherwood, o domínio de Cedric, o Saxão.

    — Também eu sou de lá — replicou o desconhecido. — Se tivesse um cavalo, seria vosso guia, porque o caminho é um tanto complicado, embora perfeitamente conhecido, para mim.

    — Serás agradecido e recompensado, amigo — prometeu o prior — se nos levares em segurança até à casa de Cedric.

    E ordenou a um dos seus servidores que montasse o seu próprio cavalo, e desse aquele em que vinha montado ao desconhecido, que ia servir de guia.

    O guia seguiu por uma estrada oposta à que fora recomendada por Wamba, com o propósito de os enganar. O caminho em breve os conduziu bosque adentro, cruzando vários riachos, cuja aproximação era perigosa devido aos pântanos entre os quais corriam; mas o desconhecido parecia conhecer, como que instintivamente, o melhor solo e os mais seguros pontos de passagem. Cautelosa e atentamente, levou o grupo até a uma álea mais larga do que qualquer outra vista anteriormente. Apontando então para um grande e irregular edifício na extremidade da dita álea, disse ao prior:

    — Ali é Rotherwood, a morada de Cedric, o Saxão.

    Esta foi uma afirmação agradável para Aymer, cujos nervos não eram dos mais fortes, além do que sofrera bastante inquietação e alarme ao atravessar os perigosos lodaçais, a ponto de ainda não ter feito uma única pergunta ao guia. Sentindo-se agora à vontade e perto de guarida, a sua curiosidade começou a despertar, e perguntou ao guia quem era e o que fazia.

    — Um peregrino, recentemente regressado da Terra Santa — foi a resposta.

    — Melhor faria em lá ficar, para lutar pela recuperação do Santo Sepulcro — disse o templário.

    — É verdade, reverendo cavaleiro — respondeu o peregrino, para quem o aspeto do templário parecia perfeitamente familiar. — Mas, quando aqueles que prestaram juramento para recuperar a cidade santa se encontram a viajar a uma tal distância do teatro dos seus deveres, poderá surpreender que um pacífico camponês como eu, depois de uma longa ausência, abandone tudo pelo trabalho que aqui tem?

    O templário teria dado uma resposta furiosa, se não fosse: interrompido pelo prior que, mais uma vez, expressou o seu espanto por o guia, depois de uma tão longa ausência, conhecer tão perfeitamente as passagens através da floresta.

    — Nasci aqui — respondeu o peregrino. E, ao fazer esta observação, encontravam-se mesmo em frente da mansão de Cedric — um edifício baixo e irregular, com diversos pátios ocupando considerável espaço e que, embora o seu tamanho indicasse que o habitante era uma pessoa de bens, diferia dos altos edifícios, cheios de torres e ameias, nos quais residia a nobreza normanda, e que se tinham tornado o estilo comum de arquitetura por toda a Inglaterra.

    No entanto, Rotherwood não deixava de possuir as suas defesas; nenhuma habitação, nestes tempos conturbados, poderia deixar de tê-las, sem correr o risco de ser pilhada e queimada antes da manhã seguinte. Um fundo fosso havia sido escavado em redor de todo o edifício e fora cheio com a água de uma nascente vizinha. Uma dupla paliçada composta por estacas aceradas, que a floresta adjacente fornecera, defendia a parte exterior e interior da trincheira. Havia uma entrada no lado ocidental, através da paliçada exterior, que comunicava através de uma ponte levadiça com uma abertura similar nas defesas interiores. Tinham sido tomadas algumas precauções ao colocar estas entradas sob a proteção dos ângulos de projeção, através dos quais podiam ser defendidas, em caso de necessidade, por archeiros e besteiros.

    Em frente desta entrada, o templário tocou uma trompa pois a chuva, que há muito ameaçava, começava agora a cair com violência.

    Capítulo 3

    Numa sala, cuja altura era muito desproporcionada em relação ao seu extremo comprimento e largura, erguia-se uma longa mesa de carvalho, formada por pranchas rústicas, cortadas da floresta, e preparada para a ceia de Cedric, o Saxão. O teto, composto por vigas e barrotes, era separado do céu apenas por tábuas e colmo; havia uma enorme lareira em cada extremidade da sala, mas as chaminés estavam construídas de uma forma bastante tosca, pois era tanto o fumo que entrava na sala como o que saía pela abertura. O constante vapor assim proporcionado, polira as vigas e os barrotes da sala, que era muito baixa, incrustando neles uma capa negra de fuligem. Nas paredes laterais do compartimento, estavam pendurados apetrechos de guerra e de caça, e a cada canto havia portas duplas que davam acesso ao interior do grande edifício.

    Os outros ornamentos da mansão partilhavam a rude simplicidade do período saxónico, que Cedric lutava por manter. O soalho era composto de terra misturada com cal, formando uma substância dura como a que é normalmente usada nos modernos celeiros. Em cerca de um quarto do comprimento da sala, o chão elevava-se à altura de um degrau, e este espaço, chamado estrado, era ocupado apenas pelos principais membros da família e visitantes distintos. Com esse fim, fora colocada ao comprido sobre a plataforma uma mesa ricamente coberta de tecido escarlate, do meio da qual saía a mesa mais longa e baixa, onde se alimentavam os servos e as pessoas de inferior condição, e que ia até ao fundo da sala. O conjunto assemelhava-se a um «T», ou a algumas daquelas mesas de jantar antigas, que, arranjadas segundo os mesmos princípios, se podem ainda hoje ver nos antigos colégios de Oxford ou de Cambridge.

    Cadeiras maciças e poltronas de carvalho escavado haviam sido colocadas no estrado, e sobre estes assentos, assim como sobre a parte mais elevada da mesa, estava preso um dossel de

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