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A Lagarta e a Borboleta
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A Lagarta e a Borboleta
E-book332 páginas4 horas

A Lagarta e a Borboleta

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Sobre este e-book

Descrição do Livro

“Quem está lá fora não nota. O ritmo da vida deles é absorvido com seus próprios problemas, não com os nossos. O trabalho, a família e o resto. Um ritmo frenético, uma corrida de tirar o fôlego, sem um instante sequer para respirar. Para eles, falta tempo, para nós sobra... tudo muda do lado de lá destes muros. Aqui, ao contrário, tudo permanece igual, cristalizado. Somos as lagartas que jamais serão borboletas”.

Neste mundo, são sempre os mais frágeis a pagar o preço mais alto. São os que não podem voar que são pegos todas as vezes como bode expiatório. E não voam, não porque não querem, mas porque algo, ou alguém mais poderoso lhe partiu as asas.

Guido se vê menino com uma mãe para procurar e um pai para vingar. Alguns anos depois, pouco mais que um adolescente, decide acertar contas com um passado cujo peso se fez sentir, com o decorrer do tempo, insuportável. Uma decisão que o fará descobrir muitos lados obscuros de sua família e que marcará para sempre o resto da sua vida.

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento11 de nov. de 2020
ISBN9781071574331
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    Pré-visualização do livro

    A Lagarta e a Borboleta - Diego Repetto

    Esta história foi inspirada em fatos que realmente aconteceram.

    No livro foram alterados os nomes das pessoas mencionadas e as descrições de alguns lugares.

    Não percebeis que somos vermes

    nascidos para formar a borboleta angelical,

    que voa para a justiça sem couraças?

    Dante

    Purgatório, X, 124-126

    À Luciano

    Outubro de 1943

    Ele vai ficar bem, não se preocupe. O menino não corre risco de vida. Se fosse um adulto correria algum risco, mas com a idade dele, é praticamente impossível que não consiga se recuperar. Claro que a recuperação será longa. A poliomielite só se cura com repouso, quanto mais os músculos trabalham mais a doença avança. No momento não podemos excluir os danos permanentes. É possível que não haja uma plena cura da perna doente, mas ainda é muito cedo para saber. Eu recomendo repouso. Esta criança deve ficar na cama pelo menos dois meses para evitar o risco de uma recaída.

    O médico não conseguiu tranquilizá-lo. As linhas contraídas de seu rosto transpareciam uma profunda preocupação. Quando ficou sozinho no quarto, se inclinou e me acariciou o rosto. E sorriu.

    Papai, não vai embora, fica aqui comigo.

    Papai não vai embora, não tenha medo. Prometo.

    Para os pais, a vida dos filhos começa no nascimento. Mas para os filhos, suas vidas começam com as primeiras lembranças. Em minha memória, nasci num quarto da clínica Bertani quando tinha cinco anos.

    Apesar da promessa – que estupidez prometer o que já se sabe que não poderá cumprir – meu pai foi embora logo. Era um dirigente partidário e não tinha tempo para cuidar de mim, a Resistência o absorvia por completo. Depois da minha cirurgia, ele me confiou à mãe de sua atual mulher. Pensou que naquela casa, na periferia de Gênova, eu ficaria seguro. Seguro, talvez sim, mas feliz, não, mesmo que nunca tenha lhe confessado isto. Sabia como iria reagir, me diria para não me comportar como um menino mimado e que aquilo era para o meu bem.

    Desde o primeiro dia, o relacionamento com a minha nova tutora foi tenso, e muito rapidamente, comecei a odiá-la profundamente. Tinha cinquenta e cinco anos que carregava com discrição, mas aos meus olhos ela parecia apenas uma velha bruxa. Me falava sempre com tom resmungão, áspero. Os seus gestos eram bruscos. Ela ficou comigo quatro anos e não consigo recordar um só gesto de afeto em relação a mim. Nem um beijo, nem um carinho, nem um sorriso sequer.

    Durante a minha convalescência o tempo passou devagar. Os dias eram longos e aborrecidos.  Ter que ficar na cama era mesmo uma verdadeira tortura. A velha entrava no quarto umas quatro ou cinco vezes ao dia. Não era seguramente para me fazer companhia, mas só para ter certeza que eu não me levantaria e não abandonaria o local a qual a doença me havia relegado. Pela manhã, ao meio dia e à tardinha me trazia algo para comer. Ao fim de cada refeição me levava ao banheiro. Quando me trazia de volta para o quarto e antes de fechar a porta, movia compulsivamente para cima e para baixo o indicador da mão direita e me intimava, com ameaças, para que eu permanecesse imóvel até que voltasse.

    A situação piorou quando, uma vez curado, comecei a ir para a escola. O fato de ser canhoto era para ela algo inaceitável. As lições da tarde então se transformaram em um verdadeiro suplício. Amarrava minha mão esquerda às costas da cadeira, sentava na poltrona em frente e vigiava, impassível, o esforço que eu fazia para escrever com a direita. Aos meus lamentos respondia secamente que era para o meu bem – na verdade, eu deveria me considerar um menino de sorte, com tantas pessoas que se preocupavam com o meu bem-estar – e proferia que uma pessoa respeitável tinha que saber escrever com a mão direita.

    Passei os dois primeiros anos sem ver meu pai. O revi num dia chuvoso no final de abril de 1945. Me disse que a guerra tinha acabado e que a partir de então iríamos nos ver com mais frequência. Vinha aos fins-de-semana, mas nunca vinha para ficar e dormir. Eram encontros rápidos, mas intensos. Ele conseguia, com palavras simples, me transmitir um pouco da meiguice que toda criança precisa e que para mim fazia muita falta, limitado como eu estava às tiranias de minha tutora. Às vezes passava para me pegar e me levar para a montanha, nos Apeninos da Ligúria, para passar pelos locais da Resistência. As histórias das lutas partidárias me pareciam fábulas maravilhosas. De um lado, os bons, os partidários. Do outro, os maus, os alemães e os fascistas. Histórias de generosidade, lealdade e coragem. Histórias de represálias e crueldades. Meu pai era sem dúvida um bom orador. Quando começava a falar, eu fixava os olhos em seus lábios, atento para não perder sequer uma palavra, completamente dominado e fascinado pela história. Cada dia íamos à uma cidadezinha diferente, se podemos chamar de ‘cidade’ aquelas que com frequência não passavam de quatro casas de pedras meio derrocadas. Mas mesmo que se trocasse a cidade, sempre estava lá presente uma bela e jovem mulher com quem meu pai passava boa parte do tempo. Muitos anos depois vim saber que era uma antiga companheira de partido e a amante de meu pai. Na cidadezinha da vez eu ficava alguns dias e quando tinha que voltar para casa eu chorava desesperado por horas.

    Infelizmente tenho uma boa memória. Há momentos trágicos da minha vida que eu preferiria poder esquecer, eu adoraria jogá-los para sempre no limbo. Mas, entretanto, me lembro de tudo, nitidamente. Às vezes, se fecho os olhos, as imagens estão de tal forma nítidas que tenho a sensação de provar novamente as mesmas emoções, de sentir novamente a mesma dor, de ser capturado novamente por aquele sentimento de perda e inexorabilidade do destino que quase sempre me acompanharam ao longo do meu tortuoso caminho de vida.

    Apesar das frequentes visitas do meu pai, aqueles anos foram igualmente difíceis. Não havia um único dia em que eu não brigasse com a velha. As discussões eram violentas e muitas vezes eu saía correndo para o quarto para fugir da vassoura. Me trancava à chave e me jogava na cama, de costas, fixando o teto, e tentando segurar as lágrimas. A capacidade que eu tinha de me distanciar daquilo tudo era extraordinária. Conseguia não ouvir o barulho dos golpes violentos na porta e os gritos da bruxa que dava ordem para que eu a abrisse, caso contrário, gritava ela, eu iria ter os mais dolorosos castigos. Quando eu voltava a ficar sozinho, deitado na cama, havia uma brincadeira que eu gostava de fazer. Fechava os olhos e os apertava com força até sentir a córnea doer, como se tivessem sido sugados pela órbita, depois rapidamente os reabria e via uma enxurrada de pontinhos brilhantes. O teto do quarto se transformava no céu em uma noite estrelada. E lembrava das noites passadas na montanha com meu pai, quando a noite caia por sobre a cidadezinha e no céu as estrelas iam pouco a pouco se acendendo para brilharem em seguida intensamente. E eu dizia ao meu pai que aquelas estrelas eram mais belas e mais brilhantes do que as da cidade grande. E eu perguntava a ele como podia ser que naquele céu houvesse muito mais estrelas do que no da cidade grande. E eu não acreditava quando ele me explicava que eram as mesmas estrelas, que essas não eram mais brilhantes, que era a escuridão que as circundava que as fazia parecer mais brilhantes. Era o contraste das cores, me dizia com ternura, quando você come o espaguete e te espirra o molho de tomate em cima, a mancha se vê muito mais numa camiseta branca que numa vermelha. Mesmo que a pasta me parecesse não ter nada a ver com as estrelas, achava que tinha entendido.

    Quando pensava em meu pai, era invadido pela saudade. E ainda mais depois das fugas para o quarto. Mesmo tendo convivido com ele pouco tempo, me parecia uma lembrança viva e associava a sua imagem aos poucos momentos belos da minha vida.

    Maio de 1947

    Foi um quatro em matemática que mudou completamente a minha infância. O ano escolar estava quase acabando, era o momento da avaliação final do ano letivo e uma nota ruim seria dificilmente remediável. O que eu gostava de estudar italiano e literatura, era o quão pouco me entusiasmava a matemática. Na altura me pareciam apenas conceitos abstratos e inúteis e levei muitos anos para entender que uma mente científica e uma certa familiaridade com os números e operações podem abrir muitas portas e tornar a vida mais fácil. Bastava que eu lesse uma vez uma poesia e a decorava de memória. Pascoli, Leopardi, Carducci, gostava muito deles. Com os números, por sua vez, não havia o que fazer. Muitas vezes, à noite, quando eu não conseguia dormir, ao invés de contar as ovelhas, recitava as poesias em voz alta, obtendo, porém, um efeito contrário. Na companhia de ermas colinas e pôneis malhados podia ficar acordado horas à fio.

    Retornando para casa, e ao longo do caminho, imaginei com apreensão a reação da velha bruxa quando soubesse da nota baixa que tive na última prova escrita de matemática. Quando cheguei em casa, a pergunta fatídica não se fez esperar.

    Como foi na escola? Como foi na prova de matemática?

    Queria mentir, mas sabia que seria inútil pois seria descoberto mais cedo ou mais tarde e com consequências bem piores.

    Mal. Quatro. Foram as únicas duas palavras que saíram da minha boca.

    Sempre o mesmo desgraçado! , gritou, ao mesmo tempo que levantava as mãos. Você é um grandessíssimo de um cão danado! Eis o que é! Estes são os resultados da sua teimosia, com todos os sacrifícios que minha filha faz por você!

    A companheira do meu pai ia ver a mãe uma vez por semana. Comigo não se demorava mais que dez minutos os quais me fazia sempre as mesmas perguntas, como eu estava, como estava na escola, como estava com a "avó’, recebendo em troca as mentiras de sempre, tudo andava sempre às mil maravilhas.

    Sacrifícios? Que sacrifícios? , perguntei, perplexo.

    A resposta veio afiada, reabrindo uma ferida que nunca fora completamente sarada.

    Pelo menos ela não te abandonou, como fez tua mãe.

    Me jogar na cara aquilo que para mim era uma dolorosa e insuportável verdade foi a gota d’água que fez transbordar o copo já cheio. Não passaria sequer mais um dia naquela casa.

    Fui ao banheiro e tirei a chave da fechadura, me sentei no sofá e comecei distraidamente a folhear um livro à espera do momento propício. Quando a vi se dirigindo para o banheiro, apertei a chave entre os dedos. Esperei que fechasse a porta, me levantei de repente do sofá e um segundo depois já a tinha trancado lá dentro. Não me importando com os gritos que vinham lá de dentro, corri até a porta de entrada e no instante seguinte já estava correndo pela estrada, feliz, a caminho de uma liberdade que estava sonhando por quatro longos anos. Enquanto corria – uma corrida engraçada, forçando mais a perna esquerda do que a direita, me lembro inevitavelmente da doença – mas pensava no momento em que iria abraçar de novo meu pai. Tinha a certeza que iria entender e aceitaria que eu voltasse a viver com ele. Já se passavam três meses desde a última vez que fui a casa dele. A última vez que nos reunidos todos juntos foi no dia do seu aniversário. Naquela ocasião pude rever também Elisa, a filha que ele teve com sua nova companheira. Tinha dois anos a menos que eu e vivia com os avós paternos. A encontrava raramente, quase sempre nas ocasiões festivas, e todas vezes me espantava por quanto havia crescido durante os meses em que não nos víamos. Era como a cada vez que a encontrasse, ver uma nova pessoa.

    Papai, não quero mais viver com aquela bruxa velha, não aguento mais, é como viver um inferno! .

    Não respondeu. Me olhou muito sério, me reprovando. Não estava de acordo com a minha fuga. Eram anos duros anos do eminente pós-guerra, anos de vinganças entre vencidos e vencedores, quando o número de mortos era ainda a ordem do dia e parecia que a guerra não iria nunca acabar. Meu pai era conhecido por seus ideais comunistas e recebia continuamente ameaças de morte. Não confiava em me deixar viver com ele debaixo do mesmo teto. Ficou em silêncio a me olhar por um tempo que me pareceu infinito, depois fez um gesto para que eu me aproximasse, pôs o braço por detrás das costas e com a mão, começou a acariciar docemente minha cabeça.

    Está bem. Mas não vai pensando que aqui será o paraíso. Vai continuar indo para a escola e terá que aprender a se cuidar sozinho. Sou muito ocupado, você sabe, e não poderei estar muito tempo contigo. Não será nada fácil. É isso que quer? .

    Concordei com um sorriso. Mas na realidade não sabia muito bem o que me aguardava.

    O período mais difícil de superar foi quando terminei o ano escolar. Passara-se apenas um mês desde que tinha ido viver com meu pai. Terminada a escola, os meus dias corriam lenta e monotonamente. Meu pai saía sempre cedo pela manhã e voltava à noite bem tarde. Nunca se esquecia de, antes de sair, deixar duas fatias de pão com marmelada já preparadas. Eu levantava tarde, gostava de ficar na cama a fantasiar, imaginando batalhas entre super-heróis misteriosos e monstros terrivelmente feios e maus. Às vezes quando os monstros eram particularmente cruéis e sádicos, me vinha em pensamento a velha bruxa e eu sentia arrepios só de pensar que em algum momento no futuro a poderia rever. Depois do café da manhã, começava a andar pela casa, uma peregrinação sem meta em que os vários cômodos eram visitados sem ordem específica. A porta de entrada dava para um amplo vão que fazia a casa parecer maior do que realmente era. Em cada um dos quatro cantos deste vão havia portas que davam respectivamente acesso à cozinha, ao banheiro e aos dois quartos.

    Quando tinha fome, geralmente muito cedo, saía para comprar alguma coisa com as poucas centenas de liras que meu pai deixava para mim a cada dois ou três dias em cima da mesa. Pão, leite, milho, arroz e massa não faltavam quase nunca. Uma vez por semana podia me permitir comprar um pouco de fruta e verdura, já o peixe era a cada quinze dias, e a carne nunca mais de uma vez ao mês e somente se o preço estivesse inferior à quinhentas liras por quilo. Os negócios desoladamente vazios não era um belo espetáculo, mas eu era muito pequeno para parar e refletir sobre as dramáticas consequências da guerra. Eu gostava de fazer as compras, daquilo que se conseguia encontrar, e me entretinha sempre mais do que era necessário. Era o único momento do dia em que podia trocar algumas palavras com alguém. Alberto, o padeiro. Maria, da mercearia, Mario, o açougueiro e Trieste, a peixeira, que nasceu dois dias depois do fim da primeira guerra mundial. Eles eram a minha família.

    Olá Guido, como vai? .

    Bem, e o senhor, Sr. Alberto? .

    Ah, as dores de sempre. É a dura lei da velhice, meu filho. Sabe, dizem que a gente tem os anos que sente, mas não é verdade. Eu de espírito me sinto como se tivesse vinte anos, iria dançar todas as noites, mas vai dizer isto à minha coluna... a ela não importa nada acerca do meu espírito, sabe muito bem que daqui a três semanas em cima do bolo haverá sessenta e cinco velinhas! Desde que tinha doze anos trabalho com isto e levanto todos os dias às três da manhã, quando o resto do mundo ainda está sonhando. Adoraria parar, mas não posso, com a aposentadoria que iria ganhar morreria de fome .

    Não pare por favor. Só o senhor faz um pão assim tão bom, ninguém sabe fazer um igual supliquei com sinceridade.

    Apesar da solidão, nunca me arrependi de ter voltado a viver com meu pai. Mas ainda hoje me vem de vez em quando o arrependimento de ter abdicado, após a escolha que fiz, à uma infância privada de responsabilidade. Uma infância normal que não pude viver por ter sido forçado, pelas circunstâncias, a crescer rápido demais.

    Em setembro comecei novamente a ir para a escola. Naquele ano frequentava a quinta elementar. Na noite anterior ao primeiro dia de escola, meu pai entrou no meu quarto, se sentou na cama, perto de mim, e me olhando sério dentro dos meus olhos me disse lentamente e analisando as palavras, como sempre fazia quando precisava me dizer algo que não podia entrar por um ouvido e sair pelo outro.

    É importante que você vá para escola. Deve se sentir um felizardo por poder fazer isto. O mundo está cheio de pessoas más, que se aproveitam dos mais fracos. E os ignorantes são fracos, na vida estão sempre perdendo. Deve estudar. Deve adquirir saber para poder julgar. Para ter sua própria opinião e não fazer da sua a opinião dos outros, daqueles que são mais persuasivos. Mas acima de tudo, deve estudar para não ser indiferente. A indiferença é a inércia, parasitismo, é covardia, não é vida. É a morte da história.

    Era mesmo um partidário convicto. 

    Setembro de 1948

    Então, está pronto? Vamos porque quero passar na barbearia antes de ir no alfaiate.

    Abotoou o último botão da camisa, pegou uma gravata da gaveta e fez o nó se olhando no espelho. Com a palma de uma das mãos arrumou um tufo de cabelos rebeldes. Deu uma última arrumada na gravata e ficou alguns segundos a olhar a sua imagem refletida. Depois virou-se para mim.

    Deixa eu te ver

    Me aproximei e me posicionei ereto à sua frente, as mãos caídas ao longo dos quadris, o queixo ligeiramente erguido. Apesar de ser sábado, ele me fez vestir a roupa de domingo: a calça curta bege, a camisa branca e o colete marrom escuro.

    Já se tinham passado cinco anos do armistício. Nesse meio tempo a Itália tinha se tornado uma República e, na primavera, o partido Democrata Cristão tinha vencido as primeiras eleições. O dia da assinatura de paz com a Inglaterra e os Estados Unidos foi particularmente significativo para meu pai e como em todos os anos, desde o fim da guerra, ele estava indo se reunir com seus amigos mais queridos. Queria mostrar uma boa aparência. Não queria mostrar que estávamos atravessando um momento difícil do ponto de vista econômico. Não queria compaixão, não queria que lhe viessem oferecer dinheiro. Nunca tinha pedido empréstimo e se orgulhava disso.

    Escove os dentes e vamos

    Fui ao banheiro para executar o que não era um convite, mas sim, uma ordem. Quando saí do banheiro ele estava usando um casaco. Não fazia frio, mas o bolso interno era um bom lugar para esconder a arma. Eu sabia que meu pai andava armado. Um dia o surpreendi pondo a arma entre as camisas numa gaveta. Isto você não deve tocar, nunca, por nenhuma razão, me disse seriamente, frustrando a minha natural curiosidade.

    Saí contente, acompanhado pela recordação do ano anterior em que o dia era transcorrido entre as lembranças e as piadas dos companheiros do meu pai. Me divertia ouvindo o chamarem pelo nome de guerra: Cesar. Não perdia nem mesmo uma palavra das conversas deles, movendo a cabeça de um lado para o outro como se estivesse assistindo à final de um torneio de Wimbledon.

    Fomos ao bar, onde seu irmão estava a nossa espera. Não se pareciam em nada. A pergunta que mais faziam a eles na brincadeira era se tinham certeza de serem ambos filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Meu tio geralmente era muito afetuoso, generoso em dar tapinhas e carinhos nas bochechas e na cabeça. Naquele dia, entretanto, quando entramos no bar, não me dirigiu nem mesmo um olhar. Estava visivelmente nervoso, parecia estar com pressa, como se tivesse um compromisso com alguém. Pediram um café. Meu pai começou a folhear um jornal.

    Então, você vai à barbearia antes de passar na casa do Lollo?

    Sim, mas primeiro preciso passar no alfaiate, este casaco realmente não aguenta mais. Por que? .

    Não, nada. Acho que vou com vocês, assim estou com Guido .

    Ah, então sabe que existo, pensei aliviado.

    Não é necessário, mas se quiser... disse meu pai distraidamente, continuando a ler.

    Não! Prenderam Ninetto! , exclamou de repente. Tem ideia da situação de merda que isso causou? Que nojo... antes éramos os heróis, os salvadores da pátria, agora nos tratam como subversivos. Dizem que colocamos em perigo a democracia que acabou de nascer. E a imprensa dá crédito a qualquer boato, é inacreditável. Um sargento da polícia qualquer, um que não sonha sequer o que é lutar pela democracia... eu não suporto as pessoas assim, daqueles que aceitam qualquer coisa. Há o fascismo? Ótimo. O fascismo foi derrotado? Tudo bem na mesma. Há monarquia? Tudo bem também. A Itália vira uma República? É igual. Mas como pode essa merda de estar tudo bem sempre para eles? Será que não sabem como devem ser as coisas, uma opinião sobre o que é justo ou não?.... Bah, um desses acorda uma manhã e diz que o sujeito é subversivo e a notícia sai nos jornais. E quando sai nos jornais... tac... fica colada na testa dele a etiqueta e tirá-la depois é praticamente impossível.  Enquanto falava a palavra ‘etiqueta’ batia com a palma da mão na testa. E continuou: Ah, e não sabe da última! Estão dizendo que querem prender a mim também, porque acham que sou o responsável pelo atentado ao quartel Pegli. Antes de me fazerem passar dias na prisão como inocente faço com que me matem.  E, instintivamente apoiou a mão no casaco, na altura do bolso interno.

    Deveria ao invés disso evitar de responder às injustiças com a violência, censurou o irmão, Isto não vale a pena, e depois, se você é inocente...

    Se você é inocente fique tranquilo, o interrompe meu pai com sarcasmo, e acrescenta, no caso de não ter sido compreendida a ironia de suas palavras: Não importa nada a eles se você é inocente ou culpado.

    Eu estava já ficando entediado. Não entendia a conversa que estavam tendo. E depois, no bar, o ar estava irrespirável, era uma nuvem de fumaça tão pesada que deveriam colocar um cartaz – se levantar da cadeira e não enxergar o balcão, caminhe com prudência.

    Assim, fiquei feliz quando meu pai dobrou o jornal, o colocou na mesa e se levantou. Disparei da cadeira e me antecipei a ele para a saída.

    A mulher do alfaiate nos convidou para entrar. Ofereceu a meu pai e ao meu tio um café que educadamente recusaram.

    Obrigada, mas acabamos de beber um no bar

    O atelier foi montado num dos quartos do apartamento. Sobre uma mesa grossa de madeira sobressaía a máquina de costura. Havia pedaços de pano por todo lado, camisas e calças amontoadas sobre as cadeiras e sobre um sofá. Me perguntei como ele fazia para encontrar as coisas em meio àquela desordem. O alfaiate era um tipinho baixo e magro que não perdia a oportunidade de lembrar ao mundo inteiro o quanto fosse bom na sua profissão.

    Venha, então, tire este casaco desconjuntado que vou lhe fazer um sob medida, um que você nunca viu igual, tão bonito e elegante que nas ruas as pessoas vão se virar para admirá-lo .

    Ajudou meu pai a tirar o casaco velho e o jogou sobre uma montanha de roupas. De uma gaveta retirou uma fita métrica e começou a medir o braço, o tórax, a cintura e as pernas do meu pai. Repetia em voz alta os números e os anotava

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