O Construtor de Cidades
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Sobre este e-book
O Construtor de Cidades descreve em primeira pessoa o quotidiano de um professor de Biologia a trabalhar numa escola pública. As dificuldades, as desilusões e a desmotivação que advêm da sua relação com os alunos e com os colegas, tão ou mais desmotivados do que ele próprio, as alterações constantes à legislação educativa e aos programas de ensino que sucessivos governos vão impondo a um ritmo impossível de assimilar e de pôr em prática com sucesso, levam-no a um estado de prostração e de desânimo. É esse estado que permitirá à personagem refletir no seu papel numa sociedade em crise que se desmorona diante dos seus olhos. O único refúgio possível é o passado, tempo mítico de amores, de ilusões e de felicidade.
José Leon Machado
José Leon Machado nasceu em Braga no dia 25 de Novembro de 1965. Estudou na Escola Secundária Sá de Miranda e licenciou-se em Humanidades pela Faculdade de Filosofia de Braga. Frequentou o mestrado na Universidade do Minho, tendo-o concluído com uma dissertação sobre literatura comparada. Actualmente, é Professor Auxiliar do Departamento de Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde se doutorou em Linguística Portuguesa. Tem colaborado em vários jornais e revistas com crónicas, contos e artigos de crítica literária. A par do seu trabalho de investigação e ensino, tem-se dedicado à escrita literária, especialmente à ficção. Influenciado pelos autores clássicos greco-latinos e pelos autores anglo-saxónicos, a sua escrita é simples e concisa, afastando-se em larga medida da escrita de grande parte dos autores portugueses actuais, que considera, segundo uma entrevista recente, «na sua maioria ou barrocamente ilegíveis com um público constituído por meia dúzia de iluminados, ou bacocamente amorfos com um público mal formado por um analfabetismo de séculos.»
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O Construtor de Cidades - José Leon Machado
O Construtor de Cidades
Romance
––––––––
José Leon Machado
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Edições Vercial
Índice
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
XXI
XXII
XXIII
XXIV
XXV
XXVI
XXVII
XXVIII
XXIX
XXX
XXXI
XXXII
XXXIII
XXXIV
XXXV
XXXVI
XXXVII
XXXVIII
XXXIX
XL
XLI
XLII
XLIII
XLIV
XLV
XLVI
XLVII
XLVIII
XLIX
L
LI
LII
LIII
LIV
LV
LVI
LVII
LVIII
LIX
LX
LXI
LXII
LXIII
LXIV
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LXVI
LXVII
LXVII
LXIX
LXX
LXXI
LXXII
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LXXVI
LXXVII
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CLX
CLXI
CLXII
CLXIII
CLXIV
CLXV
CLXVI
CLXVII
CLXVIII
CLXIX
CLXX
CLXXI
ÚLTIMA MEIA FOLHA
As noites comem-me os dias.
Guy de Maupassant, O Horlá
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Deixei-me depois escorregar para o meu passado, esse museu deserto, esse morto envernizado como um sarcófago que me chama com ternura tão sedutora.
Michel Tournier, Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico
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A cura do mal – deste mal da incomunicabilidade – passa por sermos capazes de reciclar em nós o vivido de maneira a conferirmos dignidade mítica às nossas melhores recordações.
Júlio Conrado, Maldito entre as Mulheres
I
Quando cheguei, já o colóquio sobre flora marinha tinha começado. Sentei-me entre o público, numa cadeira de napa esverdeada e rota. Ao meu lado esquerdo estava uma senhora de cinquenta anos, o cabelo pintado de amarelo e demasiado maquilhada, que se mostrou muito simpática em sorrisos de porcelana e comentários ao tema tratado na mesa. A dada altura, senti-lhe a perna na minha e pus-me a olhar o teto iluminado e com uma estranha cúpula pentagonal onde havia uma harpia atrás de um rapazinho nu por entre árvores e flores. Senti-lhe o vapor de água na minha orelha:
– Isto está aborrecidíssimo. E se fôssemos até minha casa? Oferecia-lhe um chá com biscoitos caseiros feitos pela minha empregada, uma ótima doceira.
O colóquio estava a dar em nada. Um engravatado, numa comunicação de vinte páginas compactas, dissertava sobre os espongiários marinhos. Vi-me então na casa da senhora como que por artes de magia, sentado à volta de uma mesinha com chá de pés de cereja a fumegar de um bule de porcelana, chá este que, segundo especialistas da ervanária, fortalecem a próstata, e biscoitos caseiros amanteigados, tudo servido pela empregada, uma rapariga branca de pele e de lábios grossos, que me sorriu e reconheci não sei donde. Ela saiu e, antes de desaparecer pela porta que certamente dava acesso à cozinha, voltou-se para trás e ao longe ofereceu-me os lábios num beijo gordo.
Fiquei perturbado, pois não é todos os dias que me oferecem coisas, e, para disfarçar, meti um biscoito na boca. Estava eu com a boca cheia, aproxima a senhora os seus joelhos dos meus e vai puxando a saia travada para cima a descobrir as coxas em estrias de pele acastanhada às pintas. Poisa a chávena e, num gesto lento e preciso, aperta-me os testículos e o resto contra as calças, a sopesar, a medir. Eu, assustadíssimo, despejei-lhe a boca em cima e procurei escapar-me atirando ao chão tudo o que se interpunha entre mim e a rua.
Ao atingir a porta das traseiras, depois de ter passado pelo fogão da cozinha onde uma panela de pressão apitava, tropecei na empregada que subia umas escadinhas com um raminho de salsa na mão e caímos aos rebolões numa pequena horta de cenouras e outros vegetais. Na confusão, eu vi-lhe as calcinhas pretas rendadas e o aveludado das coxas. Agarrou-se a mim como fazem os caranguejos a uma mosca de água e humedeceu os lábios nos meus. Senti uma doce dor de rins e berrei como a quem se lhe corta um dedo. A senhora, à porta, observou tudo enquanto limpava a um guardanapo a cara do biscoito de manteiga com pó de arroz à mistura.
Acordei em sobressalto e a Cláudia, como um anjo, dormia a meu lado.
II
No dia dos meus anos, a Cláudia ofereceu-me o Livro do Desassossego de um tal Bernardo Soares. Embora eu não seja de muitas leituras, prometi lê-lo, depois de ela insistir que talvez me fizesse bem. Isto do fazer-me bem tem a ver com uma depressão nervosa que eu sofri no último ano, causada pela pressão do trabalho escolar. Os alunos são cada vez mais mal-educados e dar uma aula é como ir para a guerra. Alguém a aconselhou que me desse o livro como remédio, em vez dos Valium.
A história do guarda-livros de um escritório lisboeta não me interessou em absoluto. Tudo aquilo me pareceu idiota, tão idiota como a minha própria vida. E posso dizer que a leitura não surtiu qualquer efeito. Continuava deprimido, embora com a leve satisfação de não estar sozinho. À hora de deitar, pegava no livro e lia uma página enquanto a Cláudia vestia e não vestia a camisa de noite. Irritava-me às vezes com os ditos do guarda-livros: «Tudo me cansa, mesmo o que me não cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.»
– Começo a estar farto deste homenzinho medíocre – disse eu uma noite à Cláudia.
Ela quis saber porquê.
– Não terá mais nada para contar? Isto é um diário doentio. Está sempre no mesmo.
Peguei num preservativo, marquei a página e guardei o livro na primeira gaveta da mesinha de cabeceira. Então a Cláudia disse:
– Ó Eurico, por que não escreves tu um diário?
– Eu? Mas se tu sabes que tenho horror à escrita, que detesto quando tenho de elaborar as atas das reuniões na escola, que suo para escrevinhar uma frase legível.
– Quem sabe não te faça bem? Escreves o que te apetecer. Sem a preocupação ortográfica, sem a pressão da escola.
Eu pensei: porque não? Mas surgiu-me outra dúvida: E onde vou eu escrever? Em folhas soltas, num caderno, no computador? No dia seguinte, a Cláudia apareceu-me com um caderno de capa azul aos quadrados.
– Aí tens – disse. – É só teu. Estou proibida de ler o que aí escreveres. A não ser que insistas para que eu leia. Mas prometo mantê-lo longe da vista.
Ela prometeu e eu agora não me preocupo em fechá-lo a sete chaves. Guardo-o na mesinha de cabeceira, junto com os lenços e a caixinha dos preservativos.
III
Estava numa cidade de província onde, por entre as ruas de sobe e desce, se erguia uma torre de granito. Era estranha, a torre. O seu peso brutal assentava num metro, se tanto, de chão. Quer dizer, o pé era mais fino do que o corpo, que subia como um cone ao contrário. Além disso, era uma torre repleta de rendilhados rococó, com anjos de túnica comprida a segurarem varandins de traça complicada. Eu olhei-a abismado e decidi visitá-la por dentro. Encontrava-se num recinto vedado com taipais de obras. Entrei no portão aberto e atravessei uma espécie de estaleiro repleto de tábuas, montes de areia, pedra, tijolos, maquinaria vária e operários a trabalhar. Descobri uma porta para um edifício anexo. Entrei com cautela. Ao longo do corredor havia gabinetes envidraçados onde se viam arquitetos a redesenhar projetos com figuras decorativas diferentes. Continuei a andar e fui dar a umas escadas que me levaram a uma sala com um andaime e um balde de tinta em cima. Parece que os pintores andavam a retocar o teto, mas fizeram um intervalo para o almoço. Subi ao andaime e verifiquei as imperfeições do teto que, em vez de liso, se mostrava enrugado. Desci do andaime, peguei no balde de tinta e levei-o comigo. No fundo das escadas, descortinei um balde vazio e despejei metade da tinta, pois o primeiro era bastante pesado. Mas um tipo qualquer que parecia o meu pai apareceu de martelo na mão e obrigou-me a pôr tudo como estava ou chamava o encarregado da obra. Daí a pouco vi-me fora do edifício a procurar a porta da torre que não havia meio de encontrar. Um dos anjos petrificados, a vinte metros de altura, ruiu-se e eu acordei deitado dentro da torre que era a cama.
IV
A Cláudia, apesar do que prometera, deitou uma olhadela espiona a isto e comentou que o que eu estava a escrever não era nenhum diário. E eu perguntei-lhe porquê. Ela disse-me que um diário tinha de ter a referência do dia, do mês, do ano e até da hora em que eu escrevia.
– Tretas – disse-lhe eu ajeitando o travesseiro por detrás das costas. – Em primeiro lugar porque eu escrevo o que quero e como me apetece. E em segundo lugar porque o diário do tal Bernardo Soares nem sempre, ou quase nunca, traz referências temporais.
Mas a Cláudia, aqui ao meu lado na cama, insistiu comigo que um diário deveria ter essas referências. Que lera uma vez um dos diários de um transmontano que era dado como um génio da diarística nacional e que em todas as entradas estava a data e o lugar.
– O lugar também? – perguntei. – Que coisa ridícula. Então se eu escrevo quase sempre em casa e aqui na cama, antes de deitar, para que raio vou gastar tinta e papel a pôr o lugar onde escrevo?
– É para te lembrares mais tarde – disse a Cláudia.
– Para me lembrar mais tarde?
– Sim. Imagina que tu daqui a uns anos vais ler o que escreveste. Se não pões referências da data e do local, não te lembrarás do contexto em que o escreveste.
– Que disparate. Para que diabo haveria eu daqui a uns anos de vir ler isto?
– Pela mesma razão que vês os álbuns de fotografias.
– Vais-me desculpar, mas é diferente.
– Não é nada.
– É. Estou-te a dizer que é. Eu não tirei as fotografias para curar nenhuma depressão. E não escrevo o diário para mais tarde recordar.
Ela não quis prolongar a disputa, pois estava cansada e queria dormir. Encerrou a conversa insistindo na primeira questão: para isto ser um diário autêntico, deveria ter a data e o local. Se eu não quisesse pôr, tinha toda a liberdade para o fazer.
Deu-me um beijo, virou-me as costas e pediu que eu terminasse quanto antes a prosa e apagasse a luz. Faço-o agora, hesitando todavia se no cabeçalho da página deva ou não escrever: 11 de julho, vinte e três horas e trinta e sete minutos, cama de casal, quarto das traseiras.
V
Li as páginas que estavam para trás e constatei que tenho omitido informações. Quando vamos ao psicólogo ou ao psiquiatra, ele começa por fazer-nos perguntas do género quem somos, que fazemos, se somos casados, quantos filhos temos, se sofremos de alguma doença congénita.
Sou casado com a Cláudia, como atrás já ficou dito, não tenho filhos, pelo menos por enquanto, não sofro de nenhuma doença em especial e não tenho qualquer fobia, mania ou vício. Não fumo, não bebo – ou melhor, bebo com moderação –, não tomo café e não sou sexualmente pervertido. Sou bastante sensível à dor dos outros, homens ou animais, talvez devido ao curso que tirei, Biologia, de que sou professor numa das escolas da cidade.
Bastará isto para me descrever? Encosto-me à cabeceira da cama com a Cláudia ao lado a ler uma revista antes de o sono vir. Mordo a caneta na ponta e procuro algo mais que me defina em relação aos outros. Porque é sempre em relação aos outros que nós nos definimos. Não sei quem dizia que era conhecendo os outros que se conhecia a si mesmo. Mas também alguém dizia que, quanto mais conhecia os outros, mais gostava do seu cão. E eu gosto do meu cão. Daria a minha vida por ele. Quanto a dar a vida pelos outros, isso já é outra história. Depende de que outros sejam. Não me repugnaria dar a vida, ou pelo menos alguns minutos dela, aos familiares e aos vizinhos mais próximos – e mesmo assim seria necessária alguma seleção, pois nem todos os familiares, especialmente cunhados, primos e tios, e nem todos os vizinhos, especialmente os que arrastam a mobília durante a noite, merecerão tanto altruísmo.
Talvez isto clareie o esboço que de mim próprio aqui tento fazer. Altruísta, sim senhor, mas como toda a gente, ou talvez mais um bocadinho, não muito.
VI
A minha infância foi preenchida por peripécias, umas banais, outras curiosas, mas todas importantes para o meu desenvolvimento. É de pequenino que se torce o pepino e eu torci-o bem torcido, ou torceram-mo. Na altura, não achava explicação para determinados acontecimentos. Porque é que, por exemplo, os adultos faziam isto ou aquilo, nos batiam ou ralhavam quando fazíamos chichi na cama? Agora, que esse período passou e restam apenas recordações, deito o olhar para trás e procuro compreender.
Não narrarei aqui os primeiros meses de vida, porque sobre eles há o vazio da memória. Começarei por contar os primeiros requebros da consciência, os primeiros contactos com a luz do pensamento ainda rudimentar, iniciadores do processo do desenvolvimento mental.
A primeira coisa de que me recordo foi deveras desagradável. Talvez por ter sido desagradável tenha contribuído tão definitivamente para a abertura do meu cérebro à luz. Eu deveria ter dois anos de idade. A minha consciência acordou no meio de uma discussão entre a minha mãe e uma cunhada. Eu vestia uma camisa verde-escuro e estava de olhos muito abertos a apreciar a cena. Houve gritos, insultos, palavrões e a intervenção da minha avó materna.
Só mais tarde é que percebi a razão do escarcéu: o meu pai estava na guerra em Angola. A minha mãe, um dia, tendo perdido o transporte público e estando a chover, voltou para casa de táxi. A cunhada viu o carro a parar no largo e foi contar ao marido, irmão da minha mãe. Este, que andava com dor de cotovelo por estarmos a viver em casa dos meus avós, escreveu para Angola a contar ao meu pai que a mulher passava a vida a andar de táxi e lhe punha os cornos. O meu pai não gostou nada da notícia e enviou uma carta ameaçando a esposa com um tiro. Ora, a minha mãe era uma mulher séria e tinha todo o direito de se defender das calúnias dos parentes. Exigiu explicações. Estas descambaram numa discussão que terminou com a cunhada no hospital de cabeça rachada.
Invejas, rancores, tudo concorreu para os desentendimentos entre familiares. E os meus primeiros anos de vida foram embrulhados neles. As crianças quase sempre são as vítimas da estupidez dos adultos. Não culpo, porém, a minha mãe, na altura grávida do meu irmão mais novo. Foi também uma vítima. Casara-se para se ver livre dos pais e, por ironia do destino, continuou dependente deles. Ao marido, chamaram-no para a guerra ultramarina, a defender o que não lhe pertencia, causando na esposa uma contínua tensão nervosa com o receio de que ele morresse. Depois era a miséria em que a maior parte do povo português vivia: trabalho, miséria, ignorância e repressão. Finalmente as malquerenças familiares: em vez de apoiarem, os parentes aumentavam mais o sofrimento da minha mãe.
O meu tio entretanto, para vingar o ferimento na esposa, deu uma tareia à minha mãe. A GNR foi chamada, entrou um processo no tribunal com uma queixa de agressão e foi necessário arranjar testemunhas. É referente às testemunhas que me surge o segundo lampejo da consciência.
No período do andamento do processo, acompanhei a mãe à mercearia da aldeia. Além do que era preciso, comprou uma dúzia de rebuçados mentolados para a tosse. No regresso a casa, a minha mãe deu-me um para chupar enquanto ia pensando em voz alta:
– São boas as testemunhas que eu arranjei. Eles hão de ver o que é doce!
Eu, no meu reduzido entendimento, pensei que estivesse a falar dos rebuçados. E achei muito estranho que ela dissesse que eram bons, se eu próprio, que os chupava, os julguei uma porcaria. A partir daí, sempre que eu a acompanhava à mercearia e ela pedia rebuçados, eu dizia logo:
– Testemunhas não quero.
Pela mesma época, nascera o meu irmão e eu senti-me rejeitado, como é natural nos miúdos quando outro irmão lhe vem tirar a atenção exclusiva da mãe. A sabedoria de educar está em saber resolver situações delicadas. Uma delas é a questão dos ciúmes que o irmão mais velho tem pelo recém-nascido. Mas como a mãe não conhecia as teorias do Freud nem do Piaget, resolvia o assunto à bofetada. Eu fazia mal ao bebé, ela batia-me; eu chorava, repetia a dose. Ora, a educação pelo pau só tem dado maus frutos. E eu sou um mau fruto; um fruto bichado a caminhar para o podre. O que eu pedia era um pouco de atenção e carinho. Os dois foram-me negados. Ou pelo menos assim o via eu como criança.
Marcou-se o batismo do mano para setembro, dois meses após o nascimento. De tudo o que sucedeu nesse dia, apenas me vem à memória uma cena passada entre mim e a minha madrinha. Nada mais me ficou. Nem a cerimónia na igreja, que não sei se tomei parte, nem o almoço, nem a festa, que grande não poderia ser, pois o meu pai estava na guerra. Pergunto-me como é que uma peripécia tão vulgar me ficou gravada e o resto, o mais importante em imagens e sons, não.
Pois a minha madrinha fora convidada para o batismo. Não seria ela a madrinha do novo rebento, mas participaria na festa como pessoa chegada à família. A meio da manhã apareceu-nos em casa e, vendo-me de dedo na boca a olhá-la desconfiado – não sabia ainda o que era uma madrinha e que relação tinha aquela comigo – tirou um embrulho que trazia no saco e disse-me:
– Leva este toucinho à tua mãe.
Eu peguei no embrulho e dirigi-me à cozinha. Preso, porém, à curiosidade de saber o que era isso do toucinho, palavra nova e exótica, abri-o e, espetando a boca no pedaço de carne de porco, senti um forte gosto a vinho, sal e pimenta. Fui chorar para o pé da minha avó, depois de lhe dar o naco de carne.
– Que tens, Eurico?
E eu, de olhos lacrimosos, apontava a língua. Ela observou-a e limpou-ma com uma ponta do avental às flores e deu-me um golo de água a beber. O sabor picante desaparecera e parei de chorar.
VII
A minha mãe comprou uma mobília de quarto usada – não havia dinheiro para melhor – e quando um vizinho a descarregou da carrinha com que fizera o favor de a ir buscar, decidiu limpá-la à porta de casa antes de a meter no quarto. Na gaveta de uma das mesinhas de cabeceira encontrou um boneco de borracha colorido que chiava ao apertar-se-lhe a barriga. A minha mãe ofereceu-mo e eu fui muito vaidoso mostrá-lo aos miúdos da vizinhança. Só eu tinha um boneco de borracha como aquele. Os miúdos seguiram-me até casa e fomos todos brincar para um monte de areia que havia no quintal. Ora, junto da areia repousavam umas folhas de plástico preto que o meu avô usava para tapar o cebolo em tempos de geada. Uma miúda de seis anos meteu-se comigo por debaixo dos plásticos e estivemos ali os dois a fazer coisas feias. Entretanto os outros, apanhando-me distraído, esconderam o boneco sob a