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Entre Luzes e Trevas - O Padroado e a Gênese da Reforma da Universidade de Coimbra
Entre Luzes e Trevas - O Padroado e a Gênese da Reforma da Universidade de Coimbra
Entre Luzes e Trevas - O Padroado e a Gênese da Reforma da Universidade de Coimbra
E-book985 páginas13 horas

Entre Luzes e Trevas - O Padroado e a Gênese da Reforma da Universidade de Coimbra

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Sobre este e-book

O livro Entre luzes e trevas: o padroado e a gênese da reforma da Universidade de Coimbra propõe um novo olhar sobre as origens da troca estatutária, ocorrida no início dos anos 1770, do então único centro de formação superior existente em todo o Império Português: a Universidade de Coimbra. Ao estruturar uma análise em torno da representação simbólica de "luzes-trevas" – de caráter ambivalente, mas também mediada por uma "zona de sombra" –, o autor convida o leitor a refletir sobre a dinâmica das relações de poder entre Estado e Igreja, tendo como elemento norteador o "direito de padroado". Visto como um regime que ensejou a interpenetração entre os âmbitos político e religioso, o padroado redundou no aumento da influência dos reis portugueses sobre seus territórios, criando condições propícias para o desenvolvimento de ambições regalistas, cujo zênite se deu nos anos 1760. Nesse sentido, a presente obra se destaca por apresentar a relação entre o padroado e a reforma da Universidade de Coimbra – enfoque até então pouco explorado, mas de grande relevância para se compreender o processo de formação da cultura luso-brasileira. Com esse fim, constrói-se um aparato teórico-metodológico adequado para se vislumbrar as "Luzes" em Portugal, comumente ensombradas por uma determinada concepção de Iluminismo – propensa à radical desvalorização do fenômeno religioso - que, por sua vez, alinha-se a um modelo de modernidade – pautado, unilateralmente, pelo princípio de que, sob os influxos da racionalização moderna, a religião estaria fadada a declinar. Sob esse enfoque, as medidas empreendidas pela Coroa, durante o terceiro quartel do século XVIII – que incluiu a expulsão dos jesuítas em 1759 –, voltar-se-iam não ao combate da religião ou do catolicismo, mas dos poderes concorrentes aos interesses do "bem comum" da monarquia portuguesa, visando a implementação de um ideal (advindo de "escolhas conscientes") de "ordem" racionalizada. Assim, decorre do processo de recrudescimento do poder régio, oportunizado pelo regime de padroado, nos anos 1400 e 1500, seguido por uma fase de intercorrências, transcorrida no século XVII, alguns dos elementos embrionários das chamadas reformas pombalinas, que culminariam na revisão do ensino universitário, entre 1771 e 1772.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de mai. de 2021
ISBN9786558207306
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    Entre Luzes e Trevas - O Padroado e a Gênese da Reforma da Universidade de Coimbra - Flávio Rey de Carvalho

    Paulo.

    INTRODUÇÃO

    A reforma estatutária da Universidade de Coimbra, empreendida entre 1771 e 1772, pode ser interpretada como um audacioso projeto, empreendido pela Coroa portuguesa, para se tentar recuperar, no contexto do século XVIII, a posição de vanguarda ocupada por Portugal, na época dos Descobrimentos (séculos XV e XVI), em relação aos demais países europeus. Intentar-se-ia, por meio de uma iniciativa oficial, promover a assimilação institucionalizada das luzes que estariam circulando em meios eruditos da Europa (na chamada República das Letras), objetivando-se dissipar as trevas da ignorância do núcleo formador da cultura letrada lusa, pois, àquela época, Coimbra – desde a suspensão das atividades da Universidade de Évora em 1559 − apresentar-se-ia como a única instituição de ensino superior existente no Império Português. Tal reestruturação teria ficado a cargo da Junta de Providência Literária, espécie de comissão constituída ad hoc para a realização dessa tarefa.

    A Junta de Providência Literária, criada por D. José I (rei de Portugal entre 1750 e 1777) em 23 de dezembro 1770, funcionaria sob a supervisão do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), então Marquês de Pombal, e teria o objetivo de identificar os problemas presentes na Universidade de Coimbra, apontar as suas causas e apresentar as respectivas soluções. Consta que ao término dessa atividade teria sido encaminhado à apreciação régia, em 28 de agosto de 1771, o Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra, espécie de relatório no qual aparece descrita a situação em que se encontraria o ensino universitário luso, tendo-se como referência, sobretudo, o período recoberto pelos séculos XVI, XVII e XVIII. Mediante as informações apresentadas, o monarca ordenaria, em 2 de setembro de 1771, que a Junta iniciasse a elaboração de novos estatutos para se reverter o então quadro de decadência em que se encontraria a Universidade de Coimbra.

    Em 28 de agosto de 1772, roborar-se-iam os novos estatutos, que, diferentemente de outras reformas estatutárias feitas anteriormente, teriam se particularizado pela profunda reestruturação nos parâmetros do ensino, ora apresentados. Consoante esse regimento até a própria estrutura universitária, consolidada ao longo dos séculos, também sofreria mudanças, pois as tradicionais Faculdades de Teologia, Leis, Cânones e Medicina passariam por reformulação geral, sendo também criadas as novas Faculdades de Filosofia e Matemática. A despeito de tanta inovação, em função de as disposições dos estatutos de 1772 tratarem somente da parte literária (isto é, dos assuntos ligados ao ensino), muitas das regras relacionadas às questões administrativas, econômicas e religiosas, teriam ficado omissas da reforma, de modo que essas lacunas teriam sido preenchidas, provisoriamente, com os pontos constantes nos estatutos anteriores (datados de 1653)², como ocorreu, por exemplo, com a manutenção da obrigatoriedade do juramento, pelos professores de Coimbra, da Profissão de fé, segundo a fórmula da Bula de Pio IV (Papa entre 1559-1565), de 1564³ − preservação que já foi interpretada com certa perplexidade, como se fosse algo paradoxal, visto que contrariaria os avanços iluministas propostos pelos estatutos introduzidos em 1772, supostamente propensos à criação de um ensino laico⁴.

    O interesse pelo estudo das origens da reforma da Universidade de Coimbra (1771-1772) decorre, sobretudo, da pesquisa publicada no livro Um Iluminismo português? A reforma da Universidade de Coimbra (1772), em 2008, ora dedicada à identificação, nos estatutos coimbrãos de 1772, de elementos que pudessem indicar a existência de um Iluminismo português⁵. Ficou à margem dessa obra, por estar deslocada de seu escopo de análise, a problematização da culpa atribuída à Companhia de Jesus, comumente associada ao processo de deperecimento de Portugal, entre os séculos XVI e XVIII, quando teria sido reduzido à situação de reino cadaveroso⁶. Tal assunto mobilizou, nos anos seguintes, um esforço de pesquisa direcionado a relativizar a ideia de causalidade diabólica⁷ jungida aos inacianos, no entanto, mediante o contado com alguns dos trabalhos produzidos pelo historiador português José Eduardo Franco, sobretudo a obra O mito dos jesuítas⁸, tal problema tendeu a ceder espaço, embora não totalmente, para algumas indagações em torno do (des)enquadramento de Portugal perante o Iluminismo e a modernidade.

    Sobre esse assunto, foi possível notar que o Setecentos português − pelo seu alinhamento ao catolicismo − costumava ficar ou ensombrado ou restrito a algumas menções marginais em grandes sínteses que versaram sobre pensamento setecentista, publicadas durante a primeira metade do século XX⁹. Desde meados dessa centúria, e sucessivamente nas décadas seguintes, surgiram algumas interpretações elaboradas por alguns intelectuais, a maioria delas proposta pelos próprios portugueses, voltadas a corrigir tal exclusão, embora fazendo o uso de terminologias diferenciadas ou adjetivações atenuadoras (que, em alguns casos, tenderam a adquirir certa conotação pejorativa) para denominar o caso luso. Daí o surgimento de expressões como: Iluminismo católico, Iluminismo eclético, Ecletismo iluminista ou, simplesmente, Ecletismo, Ilustração de compromisso e, até mesmo, Obscurantismo iluminado, Luzes mitigadas, entre outras¹⁰.

    Desde a última década do século XX, considera-se que um conjunto de produções (individuais e coletivas) elaborado por uma geração de intelectuais integrada por pesquisadores como a historiadora portuguesa Ana Cristina Araújo, o filósofo português Pedro Calafate, entre outros nomes não menos importantes, tem procurado rever a questão¹¹. Esse movimento de revisão − que, naturalmente, repercutiu no Brasil¹² − reflete algo que já vinha ocorrendo no campo da historiografia do Iluminismo desde os anos 1970, quando historiadores como o norte-americano Robert Darnton, o italiano Franco Venturi (1914-1994), o francês Pierre Chaunu (1923-2009), entre outros, começaram a rever a visão uniforme acerca do ideário setecentista que teria sido propagada com mais intensidade, considerando-se o século XX, sobretudo, desde os anos 1930 e 1940, por obras bastante influentes como A filosofia do Iluminismo (1932), do filósofo alemão Ernest Cassirer (1874-1945), e O pensamento europeu no século XVIII (1946), do historiador francês Paul Hazard (1878-1944)¹³. Desde então, aquilo que era tido como um fenômeno homogêneo, tendo como referência um modelo radical, pautado quase que exclusivamente pelas ideias de alguns expoentes do pensamento francês, tem se transformado, paulatinamente, em um movimento dinâmico, plural e aberto às singularidades − daí, em meados dos anos 1990, a historiadora norte-americana Dorinda Outram ter sugerido a existência de Iluminismos¹⁴ −, ficando cada vez mais evidente que, em termos majoritários, o Iluminismo compartilhado por muitos letrados setecentistas teria sido menos moderno (ou menos revolucionário) do que alguns pensadores do século XX o idealizaram¹⁵.

    Estudos recentes¹⁶, inclusive, tentam recuperar o papel protagonista que teria sido desempenhado pelo chamado Iluminismo católico − até então comumente associado a Portugal, por intelectuais portugueses, desde meados do século XX −, sob a alegação de que consistiria em uma tendência assaz ampla e influente que teria permeado várias regiões do mundo civilizado no Setecentos¹⁷. Ademais, nas últimas décadas, foi também divulgada a noção de Iluminismo religioso − tendência que estaria preocupada em reconciliar fé e razão, mediante a reunião de partes substanciais do pensamento iluminista para apoiar, renovar e revigorar a crença −¹⁸, bem como a tese de que se fosse possível dividir o pensamento europeu de meados do Setecentos, entre um Iluminismo radical, pautado exclusivamente pela razão natural, e um Iluminismo moderado, voltado à articulação dos princípios racionais à tradição e à fé, o alcance das ideias vinculadas ao segundo tipo teria se destacado por seus maiores índices de aceitação e prestígio¹⁹. A despeito disso, teria sido articulada ao alvorecer das Luzes do século XVIII (durante muito tempo, vistas como um movimento de ideias marcadamente irreligioso) que teria despontado a chamada modernidade, pautada, entre outras características, pela secularização²⁰ da sociedade − consoante algumas definições lato sensu que circulam, correntemente, no âmbito das Ciências Humanas²¹.

    Presume-se que boa parte da dificuldade de vislumbrar as Luzes em Portugal, bem como de situá-lo no panorama da cultura europeia setecentista, derivaria do recurso a uma lógica, bastante divulgada no século XX, baseada na premissa da ligação de ambos os processos (ou seja, do Iluminismo e da modernidade) a uma ideia específica de secularização, gerando o aparente senso comum de que uma sociedade se tornaria cada vez mais moderna, na medida em que houvesse um processo de racionalização da vida que, conjugado a uma proporcional diminuição do fenômeno religioso, resultaria no chamado desencantamento do mundo²². No sentido de se propor uma revisão, pondera-se que já existem estudos que, por um lado, consideram que seria da interpretação secularizada do passado, visando a sua modernização (isto é, tornando-o mais moderno do que de fato teria sido), que decorreria o mito e a criação da modernidade²³, mas, por outro, também chamam atenção para a existência de modernidades múltiplas, propondo que não haveria somente uma única rota – ou fórmula predefinida − para uma sociedade se modernizar, consistindo a via revolucionária, pautada pela realização de grandes revoluções responsáveis pela promoção de rupturas com o passado (fatos esses que foram bastante valorizados na elaboração de algumas versões da história ocidental), em somente um caminho, entre outros tantos possíveis, capazes de conduzir à(s) modernidade(s)²⁴ – dito de outro modo, [...] a modernidade não aparece apenas numa única versão, mas em várias²⁵. Por fim, recentemente, o sociólogo da religião norte-americano Peter L. Berger, buscando rever um antigo posicionamento emitido favoravelmente à teoria da secularização²⁶, comentou que uma das principais consequências da modernidade residiria na relativização de aspectos da vida, pluralizando-os, e, por conseguinte, abrindo a possibilidade para a realização de escolhas; com base nessa premissa, após anos de pesquisas, ele constatou que, alguns dos processos típicos da modernidade (como a industrialização, a urbanização, a migração e a educação) avançaram sem que houvesse a redução da religião em sociedades tipicamente modernas, evidenciando que muitas dessas escolhas − contrariando a teoria da secularizaçãosão religiosas.²⁷

    Em meio a esse debate, contudo, notou-se que, ao se estudar a questão do Iluminismo em Portugal, bem como da relação do país com a modernidade europeia, preponderaria certa preocupação em apontar os elementos que poderiam justificar o aparente desvio de rota, supostamente trilhado pelos portugueses, em comparação aos países europeus de além-Pireneus − tratar-se-ia de uma tendência interpretativa que, na elaboração de suas análises, teria como premissa o comprometimento de servir a um ideal de idiossincrasia nacional²⁸. Quanto aos trabalhos centrados na análise das causas da reforma estatutária da Universidade de Coimbra, realizada entre 1771 e 1772, percebeu-se que, nas últimas décadas, houve a revisão da culpabilidade atribuída aos jesuítas − ora vista como um mito político²⁹ − e o levantamento de dúvidas quanto à imagem de decadência institucional, comumente associada ao período pré-1771, visto que, em termos de demanda social, isso não seria procedente³⁰. A despeito dessas reavaliações − meritoriamente voltadas à desconstrução de atavismos historiográficos −, notou-se existir certa carência de pesquisas direcionadas a propor uma interpretação alternativa sobre os motivos político-religiosos que teriam conduzido (ou criado condições favoráveis) à reestruturação da Universidade de Coimbra, no início dos anos 1770.

    Foi durante esse processo de amadurecimento de ideias (e por meio do acatamento de um alvitre³¹) que o estudo do papel do padroado passou, paulatinamente, a ocupar cada vez mais o foco das atenções e das reflexões − em função da grande influência que teria exercido nas relações Estado-Igreja, sobretudo, desde o final da Idade Média, perpassando toda a Época Moderna (séculos XVI, XVII e XVIII) − para a melhor compreensão de aspectos ligados às origens da reforma da Universidade de Coimbra. Ademais, com o aprofundamento da pesquisa em torno desse viés, foi possível notar a existência de uma correlação entre a remota criação do ensino universitário português − bem como da definição das atribuições da figura do protetor (patrōnus) da universidade lusa (vistas, sob esse ângulo, como um privilégio régio legítimo) −, com o processo de desenvolvimento do direito de padroado em Portugal. Vislumbre que somente foi viabilizado por meio do desenvolvimento de uma compreensão ampliada acerca do sentido da expressão padroado português − ou seja, extrapolando uma definição corrente que tende a associá-la, em termos temporais, a uma série de bulas papais concedidas aos reis portugueses, entre os séculos XV e XVI³².

    O desenvolvimento dessa compreensão ampliada começou tomar forma, sobretudo, após a leitura de uma análise feita pelo historiador norte-americano Samuel Jefferson Miller (1919-1999), cujas informações, articuladas sob uma perspectiva diacrônica, chamaram atenção para a ocorrência de um processo de ressignificação de um regime que, de uma maneira distinta, já existiria em Portugal em 1179. Consoante se segue:

    O direito de apresentar um clérigo ao benefício eclesiástico[³³] existiu em Portugal desde a fundação da monarquia, mas o que deu novo significado ao patronato real foram as descobertas, explorações e conquistas dos portugueses nos séculos XV e XVI. Que posição a Igreja tinha nessas conquistas? Para os portugueses, como para os castelhanos, um pouco mais tarde, era impensável estender seu controle político e econômico sem uma extensão correspondente da Igreja. Desde meados do século XV até o final do século XVI, os monarcas portugueses acumularam doações papais, enumerando os direitos, privilégios e deveres, coletivamente referidos ao Padroado Real, da coroa como patrona das igrejas missionárias na Ásia, África e Brasil³⁴.

    Como consta indicado na maioria dos textos dedicados ao tema, um dos traços que teriam caracterizado a reforma da Universidade de Coimbra, levada a cabo pela Junta de Providência Literária, entre 1771 e 1772, seria o manifesto pendor regalista³⁵, ou seja, por meio dessa intervenção, a Coroa visaria formar mentes habilitadas a reforçar as definições legais de esferas de poder, em termos político-religiosos, que fossem convenientes aos interesses régios³⁶. Apesar de haver estudos que sinalizem − muitos deles somente en passant − a relação entre o padroado o desenvolvimento das ideias regalistas em Portugal³⁷, desconhecia-se, até o momento da conclusão desta pesquisa, a existência de qualquer outra análise que apontasse a relação entre o padroado e a reestruturação universitária idealizada ao tempo de Pombal. Assim, motivado por essa trajetória reflexiva, o trabalho que compõe este livro versa sobre o seguinte objeto: a análise de fatores político-religiosos que, desde um passado remoto, criaram condições favoráveis para que fosse realizada, no terceiro quartel do século XVIII, uma série de medidas − genericamente subsumidas na expressão reformas pombalinas − que culminaram na criação da Junta de Providência Literária (a comissão responsável pela reorganização da ordem do conhecimento na Universidade de Coimbra, entre 1771 e 1772), utilizando como parâmetro para a realização deste exame as repercussões advindas do processo de sedimentação e incremento do direito de padroado em Portugal.

    Naturalmente, a análise de tal objeto se depara com um conjunto de problemas que precisam ser − na medida do possível − equacionados. Por um lado, a dificuldade em se enquadrar o caso português diante do panorama do Iluminismo e da modernidade, buscando avaliar os seus motivos, bem como apontar eventuais alternativas para se contornar essa questão³⁸. Por outro, a viabilidade (ou não) de se encontrar meios plausíveis para se estabelecer alguma relação entre o processo de institucionalização do direito de padroado em Portugal – ocorrido em duas fases distintas, isto é, nos séculos XII-XIII (alinhado à jurisprudência canônica vigente na Europa) e nos séculos XIV-XVI (de modo sui generis, fruto de concessões papais específicas) − e a trajetória histórica da Universidade de Coimbra (nos séculos XIII-XVIII), de maneira que as circunstâncias associadas às questões em torno do padroado, na Época Moderna (séculos XVI, XVII e XVIII), pudessem servir de motivo – mesmo que veladamente − para que, em um momento oportuno, fosse realizada a reforma estatutária do ensino universitário.

    Frente a esse conjunto de problemas, aponta-se a despretensão de se realizar uma análise da reforma estatutária per se, pois, com o objetivo de se buscar os indícios que teriam criado condições favoráveis para que tal intervenção fosse projetada, sustenta-se a hipótese de que os fatores condicionantes para a reordenação do conhecimento da Universidade de Coimbra, entre 1771 e 1772, teria relação com o desenvolvimento do padroado e com o regalismo por ele favorecido, e não propriamente com a querela criada em torno da Companhia de Jesus, que teria sido utilizada, ad hoc, pela Coroa como um instrumento (ou meio) para se atingir um determinado fim. Desdobradamente, supõe-se que o tom das reformas pombalinas, comumente tido como regalista, em função da busca pela delimitação de esferas próprias de poder, não poderia ser estigmatizado como (teleologicamente) voltado à secularização ou à laicização da sociedade³⁹, pois, sem se desvincular da religião católica, particularizar-se-ia por um cariz anticurial – pautado, grosso modo, pelo alargamento da esfera jurisdicional da ação do rei e pela definição de limites à jurisdição da Igreja, visando diminuir o controle exercido pela Cúria Romana⁴⁰. Por último, de uma perspectiva mais geral, presume-se que, ao intentar, conscientemente, implementar mudanças na ordem estabelecida, apropriando-se para isso, de alguns princípios racionais em voga no século XVIII, mas, por outro lado, recapitulando-se também alguns pontos fundamentais das fontes do catolicismo, partes essenciais do ideário legitimador das reformas pombalinas apresentariam elementos de modernidade.

    Do ponto de vista teórico, a conexão entre a questão do padroado e as origens da reforma da Universidade de Coimbra − apesar de aparentemente paradoxal −, realiza-se a partir da ideia de modernidade, que, em sentido geral, conforme ponderou o historiador francês Jacques Le Goff (1924-2014), estaria associada ao [...] sentimento de ruptura com o passado⁴¹. Por se tratar de um termo que teria sido lançado no início dos anos 1860, pelo escritor francês Charles Baudelaire (1821-1867)⁴², adotou-se alguns critérios para a sua adequada aplicabilidade, com o objetivo de evitar incorrer em anacronismos⁴³, visto que o objeto desta pesquisa − por não analisar a fase posterior a 1771-1772 − precede a aparição da palavra modernidade em aproximadamente 90 anos. Em vista disso, segue a seguinte explicação feita pelo historiador dos conceitos, alemão, Reinhart Koselleck (1923-2006), na qual ele explicou a diferença entre conceitos (consistindo em palavras obrigatoriamente mencionadas nas fontes e cujo significado seria apreendido do seu uso naquele tempo) e categorias (que não necessariamente existiriam na linguagem da época das fontes, mas que podem ser criadas, a posteriori, por pesquisadores para facilitar o estudo de determinado objeto histórico):

    Quando o historiador mergulha no passado, ultrapassando suas próprias vivências e recordações, conduzido por perguntas, mas também por desejos, esperanças e inquietudes, ele se confronta primeiramente com vestígios, que se conservam até hoje, e que em maior ou menor número chegaram até nós. Ao transformar esses vestígios em fontes que dão testemunho da história que deseja apreender, o historiador sempre se movimenta em dois planos. Ou ele analisa os fatos que já foram anteriormente articulados na linguagem ou então, com a ajuda de hipóteses e métodos, reconstrói fatos que ainda não chegaram a ser articulados, mas que ele revela a partir desses vestígios. No primeiro caso, os conceitos tradicionais da linguagem das fontes servem-lhe de acesso heurístico para compreender a realidade passada. No segundo, o historiador serve-se de conceitos formados e definidos posteriormente, isto é, de categorias científicas que são empregadas sem que sua existência nas fontes possa ser provada⁴⁴.

    Por conseguinte, o termo modernidade, no presente estudo, é utilizado como categoria e não como conceito. Em virtude das múltiplas noções associadas à ideia de modernidade, o filósofo francês Bruno Latour, de certa forma complementando a ponderação feita por Le Goff, considerou: A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores ou jornalistas. Ainda assim, todas as definições apontam, de uma forma ou de outra, para a passagem do tempo⁴⁵. Com base nesses dois intelectuais, a ideia de modernidade, quer seja considerada como um conceito ou uma categoria científica, estaria ligada com uma questão temporal.

    No entanto, para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), essa aparente relação entre tempo e modernidade consistiria em uma questão discutível, pois, conforme ele manifestou: Não há acordo sobre datas nem consenso sobre o que deve ser datado⁴⁶. Isso ocorreria, pois, na visão do autor: [...] o conceito é carregado de ambiguidade, ao passo que seu referente é opaco no miolo e puído nas beiradas. De modo que é improvável que se revolva a discussão. O aspecto definidor da modernidade subjacente a essas tentativas é parte da discussão⁴⁷.

    Como uma tentativa de se delinear a modernidade, buscando uma variável que fosse subjacente ao problema da datação, Bauman sugeriu: "Podemos pensar a modernidade como um tempo em que se reflete a ordem [...]"⁴⁸. Nesse sentido: "Dentre a multiplicidade de tarefas impossíveis que a modernidade se atribuiu e que fizeram dela o que é, sobressai a da ordem (mais precisamente e de forma mais importante, a da ordem como tarefa)[...]⁴⁹. Portanto, na concepção do autor, seria a [...] ideia de construção da ordem [...]⁵⁰ o [...] ponto focal de toda a existência moderna"⁵¹.

    Sob essa perspectiva:

    Construir a ordem significa [...] manipular as probabilidades dos eventos. Se o que deve ser ordenado é um conjunto de seres humanos, a tarefa consiste em incrementar a probabilidade de certos padrões de comportamento, ao mesmo tempo que restringe, ou elimina totalmente, a probabilidade de outros tipos de conduta⁵².

    Por conseguinte: "Podemos dizer que a existência é moderna [...] na medida em que é guiada pela premência de projetar o que de outra forma não estaria lá: de projetar a si mesma"⁵³.

    Com o fito de apontar um referente temporal − a despeito considerar que [...] uma vez se inicie a sério o esforço de datação, o próprio objeto começa a desaparecer [...]⁵⁴ −, o autor delimitou aquilo que, na sua concepção, referir-se-ia, ao começo da modernidade: "[...] chamo de ‘modernidade’ um período histórico que começou na Europa ocidental no século XVII com uma série de transformações socioestruturais e intelectuais profundas e atingiu sua maturidade primeiramente como projeto cultural, com o avanço do Iluminismo [...]⁵⁵. Assim, utiliza-se a categoria modernidade/ordem", ora associada à ideia de realização de um projeto (passível de se concretizar ou não⁵⁶) voltado ao incremento da probabilidade de certos padrões de conduta em detrimento de outros. Essa categoria foi apreendida das reflexões de Bauman presentes, sobretudo, nas obras Modernidade e ambivalência⁵⁷ e Legisladores e intérpretes⁵⁸.

    Do ponto de vista contingencial, uma sociedade ingressaria na modernidade, na perspectiva de Bauman, quando ocorressem rupturas frequentes demais e não previstas ao ponto de os princípios controladores, que antes funcionavam de maneira adequada, começassem a não dar conta desses fenômenos não antecipados, forçando-a a tomar consciência de uma situação desordenada. Nesse estágio,

    [...] qualquer remédio proposto para os efeitos lamentáveis dessa ruptura devia ter a natureza de um intento consciente. [...] um legislador ou um déspota que desenhasse um projeto eram as únicas perspectivas no seio das quais o problema da ordem social podia ser encarado, uma vem [sic (leia-se: vez)] que se tornou um problema, e não uma manifestação das coisas⁵⁹.

    Sob um ângulo bastante genérico, embora mais concreto, poder-se-ia considerar que, em meados do século XVIII, em algumas partes da Europa:

    A monarquia absolutista [(leia-se: monarquia absoluta⁶⁰)] enfrentava tarefas administrativas de uma magnitude sem precedentes, que não podiam ser tratadas pelos meios tradicionais. Mudanças de direção na estrutura social tinham desvalorizado os mecanismos costumeiros de controle social e integração, e posto na agenda problemas novos, não só em tamanho, mas em qualidade.

    O poder em aparência ilimitado estava nas mãos do monarca absoluto, que tentava embarcar em experiências reformadoras do corpo social, que parecia tratável e maleável em contraste com a enormidade das ferramentas do poder. Mas isso pedia um grande plano para uma sociedade melhor; eram necessário experts, especialistas, conselheiros ‒ os que tinham conhecimento⁶¹.

    Nessa época, na ótica de Bauman: A educação tinha se tornado um constituinte irremovível do poder⁶². Segundo o autor, tal contexto teria propiciado o surgimento da seguinte noção: O poder necessita do saber; o saber empresta legitimidade e eficácia (não necessariamente desconectadas) ao poder. Possuir saber é poder⁶³. Consequentemente, um novo tipo de poder, associado à esfera do Estado, teria surgido dessa nova configuração: o poder proselitista ‒ pautado pela [...] propensão a converter os súditos de um modo de vida a outro; ele via a si mesmo como o conhecedor e praticante de uma forma superior, e seus súditos como seres incapazes de se elevarem por si mesmos a esse plano superior⁶⁴.

    Dessa maneira,

    O Estado entrou numa guerra contra todas as formas de vida que pudessem ser vistas como bolsões potenciais de resistência contra seu próprio domínio. Exigia-se nada menos que a aceitação da expertise do Estado na arte de viver; tinha-se de admitir que o Estado e os especialistas que ele nomeava e legitimava sabiam o que era bom para os súditos, e como eles deviam viver suas vidas e se guardarem de agir em prejuízo de si mesmos⁶⁵.

    Assim,

    O Estado moderno nasceu como uma força missionária, proselitista, de cruzada, empenhado em submeter as populações dominadas a um exame completo de modo a transformá-las numa sociedade ordeira, afinada com os preceitos da razão. A sociedade racionalmente planejada era a causa finalis declarada do Estado moderno. O Estado moderno era um Estado jardineiro. Sua postura era a do jardineiro. Ele deslegitimou a condição presente (selvagem, inculta) da população e desmantelou os mecanismos existentes de reprodução e autoequilíbrio. Colocou em seu lugar mecanismos construídos com a finalidade de apontar a mudança na direção do projeto racional. O projeto, supostamente ditado pela suprema e inquestionável autoridade da Razão, fornecia os critérios para avaliar a realidade do dia presente. Esses critérios dividiam a população em plantas úteis a serem estimuladas e cuidadosamente cultivadas e ervas daninhas a serem removidas e arrancadas. Satisfaziam as necessidades das plantas úteis (segundo o projeto do jardineiro) e não proviam as daquelas consideradas ervas daninhas. Consideravam as duas categorias como objetos de ação e negavam a ambas os direitos de agentes com autodeterminação⁶⁶.

    Por isso, para Bauman:

    O surgimento da modernidade foi um processo de transformação de culturas selvagens em culturas-jardins. Ou, antes, um processo no curso do qual a construção de culturas-jardins reavaliou o passado, e essas áreas que se estendiam além das recém-erguidas cercas, bem como os obstáculos encontrados pelo jardineiro dentro do seu próprio canteiro se tornaram selva. O século XVII foi a época em que o processo adquiriu ímpeto; no começo do século XIX, ele havia sido completado na extremidade ocidental da península europeia⁶⁷.

    Dessa forma, na visão do autor: O Estado moderno era um poder planejador, e planejar significava definir a diferença entre ordem e caos, separar o próprio do impróprio, legitimar um padrão às expensas de todos os outros⁶⁸. No desempenho dessa tarefa ‒ que incluiria a reavaliação do passado ‒, sobressair-se-iam duas estratégias: a exclusão de tudo o que fosse considerado estranho das fronteiras do território administrável e a assimilação⁶⁹, pautada pelo princípio de "[...] tornar a diferença semelhante; abafar as distinções culturais ou lingüísticas; proibir todas as tradições e lealdades, exceto as destinadas a alimentar a conformidade com a ordem nova e que tudo abarca; promover e reforçar uma medida, e só uma, para a conformidade⁷⁰. Por meio da via assimilatória, a modernidade, em seu estágio inicial ‒ como projeto cultural no século XVIII ‒, teria a possibilidade de absorver as tradições que pudessem ser úteis no processo de consolidação da concepção de ordem ora planejada, pois [...] a tradição vive apenas ao ser recapitulada, sendo construída como uma herança; que aparece, se aparece, apenas no fim, nunca no começo do acordo; que sua unidade retrospectiva não passa de uma função [...]"⁷¹, mediante um quadro no qual se acreditava ser possível distinguir o legítimo do ilegítimo.

    Nesse sentido, articulada à categoria modernidade/ordem, propõe-se o uso da categoria tradições recapituladas ‒ formulada a partir da supracitada frase de Bauman, extraída da obra Modernidade e ambivalência⁷² ‒ para tratar da questão da relação entre modernidade e tradição, pois

    A ideia de que a modernidade é uma ruptura com a tradição é um equívoco... Algumas pessoas podem pensar que tradição e modernidade são opostas. De modo que elas dão boas vindas à modernidade destruindo a tradição. Mas não funciona assim. Você pode ter tradição e modernidade ao mesmo tempo⁷³.

    Ao se propor o uso da categoria tradições recapituladas, leva-se em conta que o termo recapitular remete, entre outras acepções possíveis, à noção de rememorar, isto é, de relembrar, de uma maneira não idêntica (ou até imperfeita), algo do passado⁷⁴. Consequentemente, a unidade dos conteúdos de determinada tradição seria mantida por meio de uma atividade de readequação de seus significados, reavaliando-os, retrospectivamente, a partir de seus usos no passado, de modo que eles possam, mediante recapitulações, continuar a desempenhar funções ordenadoras em um contexto sociocultural presente.

    Daí a opção pelo uso da categoria tradições recapituladas em vez da consagrada noção de tradições inventadas desenvolvida pelo historiador inglês Eric Hobsbawm (1910-2012). O motivo de tal escolha deriva da maneira como o próprio Hobsbawm entendia se tratar as chamadas tradições inventadas. Conforme ele pontuou: Muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas⁷⁵.

    Na sua concepção, "[...] inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta"⁷⁶. Quanto às manifestações desses fenômenos no curso da história, ele delimitou: Durante os últimos duzentos anos[⁷⁷], tem havido transformações especialmente importantes, sendo razoável esperar que estas formalizações imediatas de novas tradições se agrupem neste período⁷⁸. Para justificar o seu ponto de vista, Hobsbawm explicou: "[...] a ideologia liberal da transformação social, no século passado [(leia-se: no século XIX)], deixou de fornecer os vínculos sociais e hierárquicos aceitos nas sociedades precedentes, gerando vácuos que puderam ser preenchidos com tradições inventadas"⁷⁹.

    Frente a essas colocações, considera-se arriscado aplicar a noção de tradições inventadas ao contexto das reformas pombalinas que culminariam na reestruturação da Universidade de Coimbra, realizada entre 1771 e 1772, por duas dificuldades: a primeira se dá no nível temporal, visto que esse conjunto de mudanças se enquadra dentro dos limites do Antigo Regime⁸⁰, época anterior ‒ e muitas vezes interpretada por meio da contraposição ‒ àquela definida pelo Hobsbawm (século XIX/ideologia liberal); a segunda decorre da suposição de inexistir uma demanda na sociedade portuguesa, tomada em sua generalidade, que estivesse em plena consonância com a oferta reformista projetada (ou prognosticada) pelo Estado luso naquele momento – daí a necessidade do recurso, por parte da Coroa, ao poder proselitista (acima mencionado), com o intento de converter os súditos de um modo de vida a outro.

    Daí a opção pelo uso da categoria tradições recapituladas, pois, além de ser mais irrestrita do ponto de vista das condições para sua ocorrência, comporta em si a ideia de que o processo de recapitulação de uma tradição tende a ser sempre variável e contingencial, pois, tradição, conforme explicou o cientista da religião, canadense, Steven Engler, [...] implica continuidade com o passado, mas a natureza dessa continuidade, juntamente com a natureza do passado e sua relação com o futuro, são assuntos de debate⁸¹. Como complemento à ideia de Engler, segue este comentário da cientista da religião, norte-americana, Susanna Morrill: Tradições são continuamente negociadas e mudadas. Elas nunca podem ser completamente compreendidas, porque indivíduos e grupos estão sempre as adaptando para se adequarem aos aspectos pessoais, históricos e às circunstâncias culturais⁸².

    Além do aspecto contingencial ligado à noção de tradição recapitulada, há de se considerar também o seu aspecto funcional, visto que uma tradição tende a ser negociada, mudada, adaptada ou adequada para exercer uma função específica no processo de elaboração de uma ordem mais conveniente. Nesse sentido, Engler ressaltou que a tradição pode desempenhar o papel de dispositivo estratégico⁸³, destacando-se sobre esse aspecto as definições dadas pelos cientistas das religião Gregory Price Grieve, norte-americano, e Titus Hjelm, finlandês. Assim, a validade de uma tradição, segundo Grieve, "[...] não é determinada pela pureza estática de sua ‘antiguidade’, mas pela forma como sua ‘antiguidade’é imaginada e usada"⁸⁴.

    Como complemento à definição dada por Grieve, segue este trecho das reflexões de Hjelm: "[...] tradição é construída ativamente e [...] sua importância para qualquer grupo é situacional: cada contexto social e cultural gera diferentes usos para a tradição como estratégia de legitimação"⁸⁵. Conforme dito antes, se para Bauman, construir a ordem significaria incrementar a probabilidade de certos padrões de comportamento e, ao mesmo tempo, restringir ou mesmo eliminar totalmente, a probabilidade de outros tipos de conduta, a tradição ‒ aliada à modernidade ‒ caso fosse usada para esse fim, tornar-se-ia em espécie de dispositivo ideológico. Seria nesse sentido que o já citado Grieve, juntamente ao cientista da religião Richard Weiss, destacaram: "[...] quando é articulada de forma consciente e expansiva, quando seus contornos e conteúdos se tornam pontos de contenção, [...] a tradição se torna ideológica"⁸⁶.

    Portanto, consideram-se as categorias modernidade/ordem e tradições recapituladas adequadas para se estudar a questão da relação entre o padroado e o contexto das reformas pombalinas que culminariam na reestruturação da Universidade de Coimbra, realizada entre 1771 e 1772, pois se presume que tal interverção, partindo do Estado, consistiria em um projeto voltado a conferir, por meio da educação, uma mudança da ordem estatutária do ensino universitário, implicando uma renovação na mentalidade dos portugueses. Para ilustrar tal ponto de vista, menciona-se, como exemplo, o caso da criação da Junta de Providência Literária, em 1771, quando a Coroa teria recorrido, formalmente, a experts (especialistas ou conselheiros) – para utilizar a expressão empregada por Bauman ‒ para diagnosticar os remédios necessários à reversão de um suposto caos associado ao ensino superior e, consequentemente, à cultura letrada lusa. Nesse intento reformista consciente, o Estado português teria desempenhado, ao menos no nível formal dos trabalhos realizados pela referida Junta, entre 1771 e 1772, a figura do Estado jardineiro: primeiramente, identificando as supostas ervas daninhas a serem removidas e arrancadas (com o auxílio do Compêndio histórico de 1771), para, em seguida, estimular as plantas úteis a serem cuidadosamente cultivadas (com a introdução dos Estatutos de 1772).

    Do ponto de vista metodológico, cumpre ressalvar que, diante da impossibilidade da consulta in loco às bibliotecas e aos arquivos portugueses, a pesquisa teve que ficar limitada aos materiais digitalizados e disponíveis nos meios virtuais, bem como à consulta a alguns títulos, quando existentes fisicamente, em bibliotecas brasileiras próximas e acessíveis; também sendo possível recorrer a algumas reproduções fac-símile de obras documentais − mormente estatutárias⁸⁷ −, vindas a lume entre os séculos XVI e XVIII, e, inclusive, coletâneas de documentos (com leis, decretos, alvarás, etc.) organizadas e editadas por eruditos. Feita essa observação, voltada a revelar algumas das limitações e dos condicionamentos impostos à realização deste estudo, esclarece-se que a sua elaboração, tomada em conjunto, baseou-se na leitura e na análise de textos acadêmicos e fontes de época, cujo processo de assimilação dos conteúdos − por se tratar de um tema já analisado por considerável material bibliográfico⁸⁸ − pautou-se, ad hoc, pela seguinte fórmula: compreender enquanto se pesquisa⁸⁹. Associado a isso − ora descendo ao nível mais prático −, adotou-se também o chamado paradigma indiciário, haurido das reflexões feitas pelo historiador italiano Carlo Ginzburg⁹⁰.

    Segundo Ginzburg, esse paradigma se referiria a um modelo epistemológico que teria emergido silenciosamente nas ciências humanas, por volta do final do século XIX⁹¹, tendo como característica essencial a [...] capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente⁹². Consistiria, por isso, em um conhecimento indireto, indiciário e conjectural⁹³, pois, consoante o autor explicou: Quando as causas não são reproduzíveis, só resta inferi-las a partir dos efeitos⁹⁴. Por isso, o paradigma indiciário de Ginzburg se atentaria para os detalhes secundários, as particularidades insignificantes, bem como outros elementos pouco notados que, na maioria das vezes, podem passar desapercebidos da observação das pessoas⁹⁵.

    Sob esse viés, o autor preconizou que, ao se pesquisar um objeto cuja "[...] realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la"⁹⁶. Nesses casos, o "[...] paradigma indiciário [...] pode se converter num instrumento para dissolver as névoas da ideologia que [...] obscurecem uma estrutura social [...]⁹⁷. A partir dessa ideia − [...] que constitui o ponto essencial do paradigma indiciário [...]⁹⁸ −, procurou-se por eventuais sinais e indícios que, por influência de modelos interpretativos cristalizados, tendem a passar desapercebidos. Ademais, o foco nos detalhes secundários, nos vestígios pouco notados, ou nas particularidades insignificantes" permitiu que alguns dos aspectos do desenvolvimento do padroado pudessem ser valorizados e relacionados com as origens da reforma da Universidade de Coimbra.

    O cuidado com o campo semântico consistiu em outro parâmetro metodológico, pois, em certos casos, as palavras registradas nas fontes, em função do desuso, inexistem no idioma atual; já em outros, apesar de ainda existirem, podem apresentar, em relação ao seu uso no passado, significados variantes, ou falsos cognatos. Nesse sentido, para a compreensão do conteúdo das fontes, procurou-se, na medida do possível, seguir algumas das recomendações feitas pelo historiador dos conceitos, alemão, Reinhart Koselleck, quanto ao cuidado que se deve ter em relação à associação acrítica de significados remetidos a determinados vocábulos – mesmo que constem em renomados dicionários da atualidade −, e a certos termos que, a despeito de graficamente similares, poderiam ter sido originalmente empregados com conotações próprias, em atendimento às particularidades de determinada circunstância pretérita. Assim, procurou-se adotar um procedimento que apenas [...] parte do princípio de traduzir significados lexicais em uso no passado para a nossa compreensão atual⁹⁹.

    Quanto ao aspecto formal da disposição das informações, optou-se pela utilização de um grande volume de notas de rodapé, cujos conteúdos − reconhecidamente extensos em muitos casos − consistem na explicitação de elementos de um subtexto que se considerou útil para uma melhor compreensão de pontos contidos no texto per se. Ponderou-se que a inclusão dessas informações no corpo dos parágrafos do texto poderia quebrar a sequência lógica destes, pois as notas de rodapé foram pensadas para funcionar como espécies de apêndices subsididiários, situados in tempore oportuno, para esclarecer o leitor sobre informações específicas relacionadas ao tema tratado (como reflexões adicionais, citações de trechos de autores ou fontes de época, indicações de referências complementares sobre o assunto, bem como a transcrição de excertos, na língua original [para cotejamento], que foram citados no texto em versão traduzida). Sob tais critérios se justifica essa opção metodológica, pois, caso fosse feita a supressão de alguns dos dados obtidos na pesquisa, com fito de se apenas priorizar a forma em detrimento do conteúdo, correr-se-ia o risco de empobrecer (ou mesmo de mutilar) o trabalho, incorrendo em um condenável processo de formatação – entendido como a [...] adaptação de um conjunto de dados a um determinado padrão [...]¹⁰⁰, ou a [...] alteração de dados [...] a fim de adaptá-los ao formato padrão da máquina¹⁰¹.

    Para padronizar a citação dos materiais consultados (utilizados in tempore oportuno para embasar os conteúdos apresentados no texto e no subtexto) constantes nas notas de rodapé, ao longo de todas as partes deste livro, adota-se o mesmo padrão já empregado nesta Introdução, ou seja, recorrendo-se às seguintes abreviaturas: id. (idem: o mesmo autor, na mesma obra e na mesma página), ibid. (ibidem: na mesma obra, porém, em página diferente) e "op. cit." (opere citato: na obra citada, ou seja, aludida previamente). Assim, a primeira e a segunda abreviaturas (id. e ibid.) aparecem nas situações em que há uma ou mais notas seguidas, remetendo à mesma obra; já terceira (op. cit.), por sua vez, aplica-se aos casos em que há a remissão a um texto já citado, porém, intercalado por uma nota relativa a outro texto ou assunto. Nas demais circunstâncias, com o fito de tornar as notas de rodapé mais concisas, a alusão aos materiais previamente citados obedece à seguinte estrutura resumida: sobrenome(s) do(s) autor(es), fragmento do título do texto (geralmente, os três primeiros termos seguidos de reticências), ano da publicação e página(s) – em alguns casos específicos pode haver a necessidade de se detalhar também a parte, a divisão, o volume, etc.

    Do ponto de vista estrutural, o livro Entre luzes e trevas, refletindo o jogo metafórico de palavras contido no título, divide-se em duas partes: (1) Desvelando as ‘sombras’ do Iluminismo, voltada a analisar alguns aspectos ligados à interpretação das Luzes do século XVIII para, sequencialmente, focar na dificuldade em se enquadrar o caso português diante do pensamento iluminista setecentista e do panorama da modernidade europeia, buscado avaliar os prováveis motivos envolvidos, bem como apontar eventuais as alternativas para se contornar essa questão; (2) O ‘lusco-fusco’ ibérico e o ‘dilúculo’ pombalino, direcionada ao exame do desenvolvimento do direito de padroado, sua institucionalização nos séculos XII e XIII, seu incremento, no caso de Portugal, no Quatrocentos e no Quinhentos, bem como os contratempos que, no século XVII, teriam favorecido o advento das ideias regalistas e criado condições favoráveis para a realização das reformas pombalinas, que culminariam na reestruturação da Universidade de Coimbra, entre 1771 e 1772. A primeira e a segunda partes integram dois capítulos cada, somando um total de quatro.

    O primeiro capítulo − denominado ‘Caleidoscópio’ do Iluminismo: unidade e diversidade nas ‘Luzes do século XVIII’ − volta-se à discussão do problema da conciliação entre as noções de unidade e diversidade que caracterizariam o Iluminismo como um movimento, pois se de um lado haveria um ponto de identidade que uniria os iluministas, por outro, também teria existido certa liberdade para eles manifestarem suas ideias, havendo, por conseguinte, uma margem de pluralidade nas Luzes do século XVIII. Já o segundo capítulo − chamado Ensombramento por ecletização: o (des)enquadramento de Portugal perante ‘o’ Iluminismo −, dando continuidade a esse viés, direciona-se à análise específica de como o Iluminismo foi interpretado, sobretudo, por alguns intelectuais lusos, na segunda metade do século XX, que teriam projetado (ou mesmo hiperbolizado) sombras, muitas delas inexistentes no contexto setecentista, sobre o contexto das Luzes em Portugal, dificultando o enquadramento desse país no cenário do Iluminismo europeu, bem como da República das Letras.

    O terceiro capítulo − intitulado Aclarando a relação entre o padroado e a Universidade: aspectos de um itinerário propedêutico às reformas pombalinas − volta-se ao exame das raízes profundas do chamado direito de padroado, relacionando-o com a criação da instituição de ensino superior que viria a se tornar a Universidade de Coimbra, bem como às condições excepcionais que, na Época Moderna (séculos XVI, XVII e XVIII), Portugal teria dele se beneficiado do ponto de vista da relação Estado-Igreja. Na esteira do exame desses benefícios auferidos em função do direito de padroado, insere-se o quarto capítulo – denominado ‘Nem’ todos os caminhos levam a Roma: os ‘meios’ e os ‘fins’ do discurso que ensejaria o início da reforma da Universidade de Coimbra −, já centrado no contexto do século XVIII, quando a Coroa portuguesa teria encontrado condições favoráveis para pensar uma estratégia de mudança na ordem estabelecida. Nesse contexto de reformas, a reordenação da Universidade de Coimbra consistiria no seu ponto de culminância, visto que a instituição, mantendo-se católica, passaria a funcionar como um instrumento a serviço dos interesses do Estado.

    PARTE I

    DESVELANDO AS SOMBRAS DO ILUMINISMO

    * * *

    Habitualmente, emprega-se a expressão Iluminismo para se referir a um período histórico também identificado como as Luzes do século XVIII ou como a Idade da Razão, entre outros denominativos. Tratar-se-ia de um neologismo que, cunhado no Oitocentos, teria se tornado corrente no século XX, e, segundo consta, consistiria na apropriação do termo italiano Illuninismo¹⁰² − que, em tese, congregaria, como espécie de conceito guarda-chuva, os termos de época luce (luz), lumi (luzes) e illuminare (iluminar), até então utilizados, do ponto de vista filosófico, no sentido metafórico de esclarecer (de tornar algo claro)¹⁰³. A despeito de sua popularidade, sobretudo no Brasil¹⁰⁴, há quem condene o uso indiscriminado e acrítico da expressão Iluminismo, visto que durante muito tempo ela teria funcionado como espécie de representação metonímica, voltada a encobrir com uma matriz unificante um movimento de ideias multifacetado que teria permeado o Setecentos, terminando por simplificá-lo¹⁰⁵.

    Sob essa perspectiva, o termo Iluminismo, além de encobrir as palavras luce, lumi e illuminare, também acabaria por eclipsar outras terminologias, em outros idiomas, que teriam sido correntes no século XVIII. Entre elas, destaca-se: o termo francês Lumière – ou Lumières (Luzes); o espanhol Illustración (Ilustração); o alemão Aufklärung (Esclarecimento), que, até os anos 1780, teria uma denotação meteorológica (ligada à ideia de iluminação), embora conste que o sentido filosófico de esclarecimento, presente no célebre texto do filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804), de 1783¹⁰⁶, tornar-se-ia mais usual, sobretudo, no século XIX. Apesar de seu deslocamento temporal em relação a esse grupo, considera-se importante mencionar a conhecida denominação Enlightenment (Esclarecimento), que surgiria na língua inglesa somente ao longo do Oitocentos¹⁰⁷.

    A despeito dessa variedade, considera-se que tais terminologias, a despeito do uso in tempore opportuno de algumas e da aparição a posteriori de outras, tenderiam, em termos essenciais, a se referir a um movimento de ideias que, pautado pelo princípio de valorização da razão humana − tida como uma faculdade universal (potencialmente idêntica em todos os indivíduos)¹⁰⁸ −, teria adquirido vulto na República das Letras¹⁰⁹, no Setecentos. Segundo o historiador francês Paul Hazard (1878-1944), os filósofos (posteriormente alcunhados de iluministas) teriam sido pioneiros ao identificarem, tempestivamente, o seu próprio tempo: "A luz, as luzes, era a divisa que inscreviam nos seus estandartes pois, pela primeira vez, uma época escolhia o seu próprio nome. Começava o século das luzes [...]¹¹⁰. Por meio dessa autoidentificação, esses letrados pretenderiam atrair para si a tarefa de iluminar os rumos que deveriam ser adotados tanto pelos governantes quanto pelas instituições, afastando-os, doravante, do torvelinho das trevas da ignorância¹¹¹, visto que, consoante frisou Hazard: Antes deles, os homens tinham errado porque viviam mergulhados na escuridão, porque tinham sido obrigados a permanecer no meio das trevas, nas névoas da ignorância, das nuvens que escondiam a estrada direita; havia tido uma venda a cobrir-lhes os olhos"¹¹².

    Segundo apontou a educadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, tal apanágio acabaria por consubstanciar uma das [...] conhecidas ‘sombras’ do Século das Luzes [...]¹¹³, pois, a despeito de considerarem a razão como uma prerrogativa universal, "[...] os iluministas não eram adeptos de uma educação que pudesse revolucionar a ordem [...]. Na verdade, eles defendiam com empenho, reformas e melhorias, mas nada que pudesse subverter uma estrutura social [...]¹¹⁴. Tal perspectiva delineada pela autora vai ao encontro de uma interpretação feita por Paul Hazard, segundo a qual o Setecentos teria sido permeado por uma atitude de crítica, abrangendo aspectos da literatura, da moral, da política, da filosofia, mas que, segundo ele ponderou, [...] não pretende uma transformação radical do nosso ser [...]¹¹⁵. Embora os iluministas, tipificados por Hazard como contestatários, visando implementar mudanças e reformas que pudessem melhorar a sua realidade, teriam se comportado, em geral, da seguinte forma: Denunciam antes um presente que os irrita mas que acreditam poderem modificar"¹¹⁶.

    Infere-se que teria sido em função dessa percepção, segundo a qual o alicerce do Iluminismo estaria ligado à atividade de crítica − bem como da contestação, da polemização e da relativização de aspectos basilares da cultura e da sociedade da época −, que o supracitado historiador francês comentou: [...] ela é alma desta idade controversa¹¹⁷. Segundo o filósofo português Pedro Calafate, tanto no Iluminismo português, quanto nos demais Iluminismos europeus, o recurso à polêmica se constituiria em um traço praticamente comum, pois teria sido recorrente, entre os iluministas, ao empregarem a luz como o símbolo de sua época e de seus princípios ditos racionais, apresentarem, contrapostamente, a imagem das trevas, relacionando-a a tudo aquilo que deveria ser modificado, substituído ou eliminado¹¹⁸. Assim − conforme aparecerá com mais detalhes adiante − considera-se que muitos dos indícios que ajudariam a entender melhor os aspectos envolvidos nessa idade controversa, consoante insinuou Hazard, derivariam das relações ambivalentes de claro versus escuro, luz versus treva¹¹⁹, entre outras variações possíveis dentro desse mesmo padrão de estruturação, pois, apesar de existir uma aparente [...] imagem super-racionalista do século XVIII [...]¹²⁰, Calafate comentou que, [...] no coração das Luzes, reside um vasto plano de sombras¹²¹.

    Para entender melhor tal colocação, recorre-se à noção de zona de sombra − apropriada da física (óptica) −, aqui utilizada para se referir, em linhas gerais, ao efeito causado pela ação de raios de luz sobre um corpo opaco, que, ao ser iluminado em um de seus lados, projetaria, no sentido oposto − ou na parte de trás −, uma faixa escura com limites de penumbra¹²². Tal fundamento, no plano da dinâmica das ideias iluministas, poderia ser adaptado da seguinte maneira: o processo de vislumbre racional sobre determinado assunto (ou objeto), à semelhança do que ocorreria na óptica, passaria pelo direcionamento das luzes da razão a um foco específico, sob um ponto de vista (ou perspectiva) também delimitado (conforme as preferências e as opções do autor), o que permitiria iluminar apenas alguns detalhes em detrimento de outros que acabariam por ficar ensombrados – ou seja, obscurecidos, eclipsados ou ofuscados, sob o véu das sombras −, por refletirem visões distintas que teriam sido produzidas sob outras angulações, então consideradas menos importantes ou até mesmo dispensáveis àquela circunstância.

    Assim, para que suas ideias pudessem resplandecer, sugere-se que, entre os iluministas, teria sido recorrente a criação de discursos voltados à produção de zonas de sombra para encobrir − lançando a uma posição desfavorável (marcada pelo descrédito) − tudo aquilo que fosse inconveniente ou contrário às variadas propostas de mudança (envolvendo reformas e melhorias) que teriam sido vislumbradas em meio às Luzes do século XVIII. Como um grande agitador cultural, crítico de sua sociedade e instigador de ideias em seu tempo¹²³, o historiador brasileiro Marcos Antônio Lopes apontou o filósofo francês François Marie Arouet (1694-1778), mais conhecido como Voltaire – alcunhado de o Príncipe das Luzes¹²⁴. Com base em Lopes, considera-se que o pensamento de Voltaire apresentaria conteúdos de mudança, reforma e melhoria na sociedade, embora sem romper (ultrapassar ou subverter) os limites da ordem política estabelecida (por se tratar de um monarquista)¹²⁵, pois seus discursos se direcionariam à valorização de comportamentos baseados em virtudes em detrimento daqueles inspirados em vícios¹²⁶.

    Por acreditar na monarquia¹²⁷, o Príncipe das Luzes teria recorrido à estratégia de produzir conteúdos voltados à orientação do bom governo¹²⁸, objetivando − à semelhança da ação exercida por um intelectual interventor (segundo qualificou Lopes)¹²⁹ − tornar as cabeças coroadas mais virtuosas. Consoante aparece explicado na seguinte passagem:

    Voltaire é o intelectual que opta conscientemente por vender seus serviços ao Estado, na crença de que, ocupando uma posição estratégica na rede central da hierarquia política, poderia, a partir dessa posição, bafejar o mundo das luzes do espírito. [...] sempre tencionou ser pedagogo de cabeças coroadas, às quais pretendia levar a filosofia, criando assim os seus príncipes iluminados. [...] Queria iluminar a cúpula do Estado para lançar fachos de luz sobre as nações. [...] a ambição era [...] criar condições propícias para a ampliação de seu próprio poder, por intermédio de sua influência intelectual [...]. [Assim] O autor tem a ambição de tornar-se conselheiro de estadistas. A sua correspondência político-literária [...] demonstra isso. Ele acredita que os monarcas, apesar da sua altivez natural, eram substância permeável ao saber¹³⁰.

    Entre os meios utilizados por Voltaire para atingir esse fim, destacar-se-ia a polemização e a contestação, conforme aludidas anteriormente, ora possíveis de serem inferidas dos seguintes comentários feitos por Lopes, em relação aos textos ficcionais atribuídos ao Príncipe das Luzes:

    Nesses textos altamente explosivos, nessas verdadeiras caixas de alfinetes, Voltaire semeou idéias importantes [...]. Sem dúvida, seus contos não se constituem em devaneios literários, mas em histórias que, muitas vezes, de fictício têm apenas algumas situações espetaculares e certos nomes próprios ou de lugares, propositalmente inventados. Entretanto, as suas cenas têm sempre alvos bem selecionados, visando a um príncipe, a um gentilhomme influente ou a outras personagens que, para o bem ou para o mal, o autor deseja atingir. Tudo é história nesta literatura de irrisão¹³¹.

    Em meio a esses conteúdos,

    [...] se encontra um extenso catálogo de virtudes no campo do poder político, traçado com a intenção de instruir príncipes. Com toda a sua modernidade, como todo o seu apuro e sofisticação intelectual, Voltaire não abandonou um tema tão antigo quanto a realeza: a instrução de soberanos. [...] Assim é que sua narrativa se assemelha a um tributo ao príncipe esclarecido, que espalha luz e progresso pelo mundo, se agir conforme a orientação de seu conselheiro¹³².

    Desse modo, com base nas ponderações expressas nesses três excertos, considera-se que, em resumo, boa parte desse ideal voltairiano de Iluminismo, apesar da intenção de espalhar luz e progresso pelo mundo (por intermédio da instrução de soberanos), estaria comprometida com uma pretensão mais imediatista, ligada à criação de condições propícias para a ampliação do poder do iluminista na sociedade, visto que caberia a esse letrado o papel de instruir os soberanos¹³³. A partir de um comentário feito pelo historiador norte-americano Robert Darnton¹³⁴, considera-se que a postura estratégica adotada por Voltaire – consubstanciada no chamado paradigma intelectual voltairiano¹³⁵ − teria exercido certa influência nas pretensões de alguns escritores mais jovens (bem como em outros eruditos estabelecidos dentro dos limites da República das Letras), no sentido da produção de ideias – de caráter intervencionista − que pudessem lhes proporcionar melhores índices de prestígio social¹³⁶. Em meio a esse jogo marcado pela articulação entre o ideal (de esclarecer) e a ambição (de poder), o recurso simbólico da contraposição entre luzes e trevas poderia ser interpretado como um traço constituinte do Iluminismo¹³⁷, pois, tomando o supracitado exemplo de Voltaire¹³⁸, a valorização de determinadas virtudes que inspirariam a iluminação, dar-se-ia, contrapostamente, por intermédio da condenação de vícios (inspirados na crítica ao comportamento de pessoas importantes da sociedade que se visaria atingir), então apresentados como traços atávicos de obscuridade que, de algum modo, estariam retardando o processo de aclaramento da razão humana¹³⁹.

    De acordo com o historiador francês Raoul Girardet (1917-2013), o recurso a determinadas combinações de imagens conformaria um dos traços elementares dos chamados discursos

    míticos − entendidos por ele como espécie de formulações que obedeceriam a uma certa forma de lógica, sendo, em geral, construídas a partir da modelagem de relações binárias e ambivalentes, mas, ao mesmo tempo, fluídas, nas quais a exaltação de um dos elementos envolvidos se daria por meio da crítica ao outro; por exemplo, a demarcação da infâmia forneceria os parâmetros para se modelar a imagem da grandeza¹⁴⁰. Desse modo, a valorização de um ponto de vista estaria condicionada à identificação e à depreciação de outras concepções que tenderiam a refutá-lo, existindo, por conseguinte, uma relação de

    dependência − marcada pela fluidez − entre a primeira visão e as demais (a despeito da aparente oposição entre os dois grupos). Sob essa lógica, as construções discursivas míticas tenderiam a girar em um círculo bastante estreito de repetição e associação de símbolos, de modo que, conforme pontuou o autor: [...] os mecanismos combinatórios da imaginação coletiva parecem não ter à sua disposição senão um número relativamente limitado de fórmulas. O poder de renovação da criatividade mítica é, de fato, muito mais restrito do que as aparências poderiam fazer crer¹⁴¹.

    Segundo essa perspectiva, a combinação de imagens obedeceria a um sistema, inscrito em uma determinada sintaxe estruturada a partir de determinadas associações permanentes¹⁴², que serviriam de elementos construtivos das narrativas, em geral, presentes nos discursos míticos¹⁴³. Nesse sentido, destacar-se-iam as ações providenciais, redentoras ou salvadoras de um chefe ou um herói que, mediante o recuo das forças más, assumiria o papel de restaurador da ordem, ou de conquistador da nova grandeza coletiva, conformando o chamado tema do salvador − sempre associado a símbolos de purificação, a imagens de luz ou a representações de verticalidade¹⁴⁴. De maneira contraposta a essa temática, projetar-se-ia, contrapostamente, uma certa simbólica da mácula − ligada à denúncia de uma conspiração maléfica (que estaria submetendo as pessoas ao domínio de agentes obscuros e perversos) −, representada pelas noções pejorativas do complô, da obscuridade, da fetidez, da imundice, do veneno, infecção etc.¹⁴⁵.

    De acordo com essa forma lógica, sob a qual os discursos míticos seriam construídos, Girardet teceu o seguinte comentário:

    É com a sombra [...] que começa o domínio do não-conhecível, do não-identificável, aquele onde as palavras familiares perderam todo o poder para designar uma realidade que se furta à sua captura. Homens da sombra, os homens do Complô escapam por definição às regras mais elementares da normalidade social. Constituem, no interior de toda comunidade consciente de sua coerência, um corpo exógeno obscuramente submetido às suas próprias leis, obedecendo apenas a seus próprios imperativos ou a seus próprios apetites. Surgidos de outra parte ou de parte alguma, os fanáticos da conspiração encarnam o Estrangeiro no sentido pleno do termo¹⁴⁶.

    Tratar-se-ia, segundo o autor, de um embate entre

    [...] os filhos da Luz contra os poderes das Trevas [...]. Projeção, encarnação de todas as forças maléficas contra o que é aceito e vivido como verdadeiro, justo ou santo, a imagem sempre renascente do Complô não pode ser compreendida senão como uma das ilustrações, a mais poderosa talvez, mas não a única, dessa concepção antitética da ordem universal¹⁴⁷.

    Nesse sentido, considera-se que essa forma lógica explicada por Girardet − segundo a qual haveria um leque limitado de combinações de imagens¹⁴⁸ − tende a ir ao encontro da proposta de se interpretar a relação entre símbolos ambivalentes como um traço constituinte que, ao menos virtualmente, teria unido as variadas configurações associadas ao Iluminismo. Esse elo virtual teria se manifestado por intermédio do uso de referentes identitários mais ou menos recorrentes, reduzindo-se a realidade a uma tensão dicotômica regida, geralmente, pela oposição de elementos que girariam em torno do simbolismo binário das luzes (cuja imagem estaria ligada à claridade, à diafaneidade, à transparência, à elucidação de problemas pela iluminação de seus aspectos) versus as trevas (associadas à incompreensão, à falta de clareza, a escuridão, a turvação do olhar, isto é, à presença de sombras)¹⁴⁹. Assim, da apropriação de uma fórmula simbólica que remontaria aos tempos bíblicos¹⁵⁰, destacar-se-ia uma estrutura formal de argumentação aparentemente comum para muitas das propostas apresentadas pelos ditos iluministas, embora, por efeito do seu uso instrumental, sobretudo, em atendimento aos interesses imediatistas de promover alterações em uma realidade específica, suas manifestações práticas não teriam sido homogêneas, refletindo níveis de luminosidade distintos, com tonalidades próprias.

    Tal variação decorreria do modo como os diferentes filtros – ligados às concepções idiossincráticas exercidas pela cultura de um país, pelos hábitos de uma região, ou, principalmente, pelos fatores de personalidade próprios de cada autor − teriam interagido com o símbolo da luz no século XVIII. Esses vislumbres, a despeito de se pautarem pela defesa da produção de conhecimentos racionais, gerariam gradientes variados de iluminação que estariam harmonicamente articulados às suas respectivas zonas de sombra − cuja intensidade (associada às faixas escuras e aos limites de penumbra) oscilaria de acordo com a natureza, bem como a extensão dos alvos, das críticas tecidas pelos iluministas (isto é, as polemizações envolveriam o que? ou a quem? e para quê?). Portanto, parte-se dessa perspectiva que leva em conta um ponto de interface entre as luzes e as trevas, no qual haveria uma correlação entre os significantes associados a esses símbolos (habitualmente tidos como ambivalentes), para, por meio de algumas reflexões, desvelar¹⁵¹ um pouco das sombras interpretativas em torno da noção de Iluminismo e do ensombramento das Luzes do século XVIII em Portugal.

    Assim, esta primeira parte − intitulada Desvelando as ‘sombras’ do Iluminismo − volta-se à análise de pontos ligados à (des)construção de um entendimento em torno do Iluminismo, bem como da zona de sombra, gerada por um modelo interpretativo das Luzes, sob a qual estariam envoltos alguns aspectos inerentes ao caso português. Nesse sentido, o primeiro capítulo − denominado ‘Caleidoscópio’ do Iluminismo: unidade e diversidade nas ‘Luzes do século XVIII’ − volta-se à discussão do problema da conciliação entre as noções de unidade e diversidade que caracterizariam Iluminismo como um movimento, pois se de um lado haveria um ponto de identidade que uniria os iluministas, por outro, também teria existido certa liberdade para eles manifestarem suas ideias, havendo, por conseguinte, uma margem de pluralidade nas Luzes do século XVIII. Já o segundo capítulo − chamado Ensombramento por ecletização: o (des)enquadramento de Portugal perante ‘o’ Iluminismo − direciona-se à analise de algumas interpretações sobre o Iluminismo divulgadas por alguns intelectuais lusos, sobretudo, na segunda metade século XX, que teriam projetado (ou até mesmo hiperbolizado) sombras (muitas delas inexistentes no contexto setecentista) sobre o contexto das Luzes em Portugal, dificultando o enquadramento desse país no cenário do Iluminismo europeu, bem como da República das Letras.

    CAPÍTULO 1

    CALEIDOSCÓPIO DO ILUMINISMO: Unidade e diversidade nas Luzes do século XVIII

    * * *

    O chamado Iluminismo, até há algumas décadas, costumava ser analisado de forma monolítica e homogeneizante, deixando de considerar com a necessária profundidade os debates, as tensões e as diferenças que teriam permeado o mundo das ideias abrangido pela República das Letras. Desde os anos 1970, esse

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