O Berloque Vermelho
De Silva Pinto
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Sobre este e-book
Em 1875, António José da Silva Pinto, o reputado crítico literário, ensaísta, dramaturgo e romancista, publicava uma coletânea de contos intitulada Contos Fantásticos, na qual incluiu um conto brevíssimo com o título discreto de “O Berloque Vermelho”.
Segundo António Fernando Cascais, Silva Pinto, com este conto, torna-se o primeiro autor português a descrever, embora sob a capa protetora do fantástico, imposta pelas circunstâncias da época, uma relação erótica e amorosa entre dois homens narrada na primeira pessoa.
Na sua apresentação magistral a “O Berloque Vermelho”, António Fernando Cascais dá-nos uma panorâmica sobre a representação da homossexualidade na literatura portuguesa, enquadrando-a com a construção do conceito de homossexualidade, e concluindo que, com Silva Pinto, talvez tenha nascido o “armário literário português”.
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O Berloque Vermelho - Silva Pinto
O Berloque Vermelho
(conto breve)
Silva Pinto
Apresentação de:
António Fernando Cascais.
Edição integral, revista e anotada.
INDEX ebooks
2021
Ficha técnica
Título: O Berloque Vermelho.
Autor: Silva Pinto.
Apresentação: António Fernando Cascais.
Edição original: O Berloque Vermelho
in: Contos Phantasticos, Porto, J. de Mattos Carvalho, 1875, p. 5-9.
Capa: adaptação de pormenor de gravura decorativa de A Book of English Ballads (1910), New York: The Macmillan, p. 105.
Revisão: João Máximo, Luís Chainho e Patrícia Relvas.
Coleção Clássicos de Literatura Gay: número 13.
Data de publicação: 7 de junho de 2021
Edição 1.01 de 7 de junho de 2021
Copyright © João Máximo e Luís Chainho, 2021
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Lisboa, Portugal
ISBN:978-1005297268 (ebook)
Apresentação
Apresentação de O berloque vermelho
, de Silva Pinto
António Fernando Cascais[*]
O brevíssimo conto "O berloque vermelho", de António José da Silva Pinto (1848-1911), constitui, tanto quanto nos é dado saber no estado atual do conhecimento, a primeira expressão, na literatura portuguesa, da relação erótica e amorosa entre dois homens que se apresenta na primeira pessoa. Incluído no volume de Contos phantasticos publicado em 1875 no Porto por José de Mattos Carvalho Editor,¹ é o facto de o narrador falar em nome próprio que em absoluto o singulariza entre as obras que já então tematizavam as relações afetivas e eróticas entre pessoas do mesmo sexo, fazendo dele um marco qualitativo na história das representações literárias, socioculturais, médicas e jurídicas daquilo que, para o bem e para o mal, se viria a entender por homossexualidade. Trata-se de interpretar O berloque vermelho
no contexto dessas representações, tomando como flexível limite temporal a data do desaparecimento do seu autor, em 1911.
O conto, ou: cada homem mata aquilo que ama
Além de O berloque vermelho
, encontramos um pequeno conjunto de doze curtas narrativas no volume de contos com o qual o autor faz a sua incursão no género do fantástico, de que, ao tempo, está longe de ser cultor único. Nenhuma das outras narrativas repete a temática deste conto, abordando de forma igualmente contundente o homicídio, o suicídio, a hipocrisia social, o crime e a miséria. As circunstâncias da época explicarão, em boa parte, a necessidade de situar no plano do fantástico uma paixão que de outro modo constituiria um ultraje a quanto a consciência social seria então capaz de tolerar. Era uma estratégia dupla e, por isso, ambígua: enquadrar as relações entre pessoas do mesmo sexo em ambientes exóticos, irreais, remotos e distantes de toda a experiência comum do leitor tanto podia servir, sobretudo na literatura que explorava o escândalo, para avivar o interesse pela bizarria, como, sobretudo na literatura mais apologética, para tranquilizar o público leitor, que nunca aceitaria que tais coisas se passassem perigosamente perto de si, com gente na qual se pudesse reconhecer e no mundo que lhe era familiar. Além disso, o limbo temporal que decorre entre a ação, genericamente – "noutros tempos – e o fatídico acontecimento central, em particular –
aquele dia" – perfaz o in illo tempore narrativo que permite o quase impercetível deslizamento para o fantástico de uma realidade demasiado atroz – demasiado real – para poder ser suportável de outra maneira. Tratando-se de uma paixão que se exacerba até ao assassínio, tudo no texto labora para verificar, com uma antecipação de quase um quarto de século, a célebre fórmula de Oscar Wilde na sua Balada do Cárcere de Reading, publicada em 1898, segundo a qual cada homem mata aquilo que ama
.²
A ambiguidade intrínseca desta fórmula, podemos encontrá-la refletida logo de entrada no sentimento de remorso que, apesar de assaltar e oprimir o perpetrador, "não é bem o remorso" por aquilo que adiante se revelará ser o homicídio, mas por algo que se sugere tanto antecedê-lo como prolongar-se para além dele e que de algum modo explicará que ele tenha sido perpetrado. Por outras palavras: se o que sente o narrador não é bem um remorso, podemos então aventar que não é tanto em relação ao facto de ter morto o homem amado que o sente, mas antes ao amor que por ele sentiu. Com efeito, o que não é bem remorso encontra-se já na ambivalência de sentimentos relativos àquele Samuel que noutros tempos foi objeto de adoração e que, nesses mesmos outros tempos, o foi igualmente de temor, antes daquele dia no qual algo terá ocorrido – que neste passo ainda não nos é oferecido saber o quê – mas que precipitou o narrador para fora do mundo onde vivem os seres humanos normais, dignos desse nome. A alternância entre o prazer vertiginoso e a angústia que dimana do terror que o narrador experiencia desde o início é algo que o acontecimento fatal não só não interrompeu como parece ter agravado. E, melhor do que alternância, somos fortemente impelidos a crer que se trata realmente de uma codependência, que o prazer e a adoração, por um lado, e a angústia e o terror, por outro, ao invés de alternarem um com o outro, sempre só puderam existir em função um do outro. Com efeito, o amante está apavorado com o que descobre sentir por Samuel, odeia-o tanto quanto o ama.
Do delírio de homem alucinado, o narrador faz-nos descer, de forma tão expedita como aquela com que para lá nos projetou, às águas calmas da simplicidade e da naturalidade daquilo que fez e da sua amizade prolongada com Samuel. Só que nada há aqui de simples e de sereno. Realmente, um sentimento que tem a violência e a profundeza do amor
extravasa decididamente a contenção homossocial da mais ardorosa amizade viril. Nada nos protocolos da mais ardorosa homossocialidade masculina convencional prevê o desvendamento de quaisquer abismos de alma, e, acima de tudo, o sentimento verdadeiramente inconfessável que põe em causa a possibilidade da própria relação homossocial: o desejo de um dos parceiros pelo outro que transforma a relação homossocial em apego homossexual. É esse o derradeiro crime inconfessável que a destrói. A desmentida impureza da relação com Samuel é, por isso, uma afirmação que se autodestrói; o caráter declaradamente apaixonado do apego que os impele um para o outro basta para a tornar suspeita e para escancarar as portas a todas as violações da masculinidade heteronormativa. Dois homens que se pretendem puros-sangue heterossexuais nunca entram por esse caminho,