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E-book338 páginas4 horas

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Sobre este e-book

Uma Inteligência artificial baseada em tecnologias revolucionárias escapa ao controle de seus criadores e se apodera de todo o conhecimento já produzido pela humanidade. Planos para criar o caos e forçar o reset global, alterando para sempre a estrutura da sociedade moderna, são descobertos. Agora, o destino da vida sobre a terra depende da ação rápida, brutal e improvável de três pessoas. Ramos está de volta! E desta vez, não está sozinho.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de jun. de 2021
ISBN9781005828226
Paralaxe
Autor

Rayel G. C. Barroso

O escritor brasileiro Ráyel G. C. Barroso busca inspiração no cotidiano,na essência dos relacionamentos humanos e nas formas diferenciadas de assumir a vida. Simpatizante do aprendizado pelo grande caminho, o Tao ( 道 ), Ráyel dialoga intimamente com o processo pelo qual cada coisa se transforma no que é. Totalmente livre de rótulos ou regras editoriais, suas obras cruzam a fronteira do meramente comercial para, mais adiante, serem incorporadas ao próprio caminho do autor.

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    Paralaxe - Rayel G. C. Barroso

    PARALAXE

    Published by

    Ráyel G. C. Barroso

    at Smashwords

    2ª Edição Smashwords

    Copyright 2021 by Ráyel G. C. Barroso

    Smashwords Edition, License Notes

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    Todos os direitos desta edição reservados à

    Ráyel G. C. Barroso

    NOTA

    Esta é uma obra de ficção

    qualquer semelhança de nome

    ou fato com a realidade será

    mera coincidência.

    Este livro é dedicado aos milhares de homens, mulheres e crianças explorados ou abusados por governos e outras organizações criminosas. Seu sofrimento silencioso e anônimo contrasta com a pujança da parcela da sociedade que dele se alimenta. E eles não serão esquecidos até que a humanidade, enfim, evolua.

    Capítulo 01

    No sudeste da China, na cidade de Quanzhou, o plantão havia exigido cada momento de atenção e perícia do Doutor Liao Chengzhi. Ele caminhava para o vestiário cabisbaixo. Sentia o peso das horas de sono perdidas e das múltiplas descargas de adrenalina a cada novo paciente com politraumatismo que deu entrada ao longo da noite. O desabamento de um Hotel na vizinhança do hospital tornou o plantão mais agitado do que de costume. Dezenas de vítimas lotaram os corredores do hospital e, infelizmente, para a maioria delas não havia muito o que fazer.

    — Liao Chengzhi.

    Ao ouvir seu nome, o médico virou para o lugar de onde a voz rude havia surgido. Dois militares em uniformes impecáveis estavam postados no corredor. Um deles deu um passo a frente. Ele segurava um tablet e um envelope. O papel lhe foi oferecido, acompanhado de um ensaio de sorriso.

    — O que é isso? Tem algo haver com o desabamento? — Perguntou o médico imaginando que o governo estivesse articulando alguma operação de encobrimento.

    — Você está sendo convocado para servir ao honroso exército de libertação popular. Estas são suas instruções. Fique atento ao local e data da apresentação — o militar finalmente soltou o envelope. — Agora olhe para a câmera. — continuou o militar colocando a câmera traseira do tablet apontada para o rosto do médico. Concluída a captura do reconhecimento facial os dois, sem mais explicações, deram meia volta e desapareceram em meio ao caos do corredor.

    O cansaço e o sono desapareceram.

    Como seria possível uma convocação para o Exército!? Pensou Liao, enquanto abria o envelope. O doutor, apesar de muito esforço para ser considerado um bom cidadão jamais obteve uma pontuação elevada no crédito social. Liao, no máximo, conseguia se manter fora da lista negra, usada pelo governo para apontar e envergonhar os cidadãos com baixa pontuação no crédito social. O jovem médico só permanecia fora da lista negra por doar sangue mais do que regularmente e fazer quatorze horas de trabalho voluntário por semana. Mesmo assim seu crédito social baixo não lhe permitia, sequer, reservar bilhetes em voos ou mesmo viajar usando os trens de alta velocidade.

    Os pais e irmãos do doutor Liao sofrem consequências ainda mais humilhantes desde que o governo chinês implementou o sistema de crédito social. Suas fotos são exibidas rotineiramente em imensos telões, na cidade onde moram, com mensagens do governo rotulando-os como escória da população. Não bastasse isso, qualquer desconhecido ao ligar para seus parentes ouvirá inicialmente uma mensagem afirmando: Cuidado! A pessoa para quem você está ligando é um devedor desonesto.

    O médico pertence a uma antiga linhagem de sábios. Seus antepassados serviram com honra à sucessivas dinastias de grande prestígio. Todo este passado se transformou em fardo maldito no último século, desde que ocorreu a ascensão do regime comunista e seu onipotente partido. Assim como milhares de outros cidadãos, que ousam discordar ou atrapalhar os planos de dominação completa e permanente do Estado sobre a população, a família de Liao Chengzhi também vem sendo perseguida e lentamente martirizada. É a famosa perseguição branca, sem prisões ou violência. Esta retaliação aos inimigos do Estado consegue ficar fora dos holofotes da mídia nos países ocidentais ou de órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos. Ela é executada de maneira sistemática, usando a burocracia estatal, os órgãos de inteligência, polícia, comércio e, mais recentemente, a tecnologia, tudo para reeducar qualquer cidadão que seja considerado uma ameaça. Pois apenas a submissão completa é aceitável para as pessoas que controlam o governo chinês.

    Somente depois de ler e reler a carta de convocação com o timbre estatal, Liao se convenceu de que não se tratava de um engano. Contra todas as probabilidades, ele havia sido chamado a servir ao mesmo exército que vem massacrando o seu povo e a muitos outros em países vizinhos. Ainda surpreso, o jovem médico retomou a caminhada para o vestiário. Pensava nas providências a serem tomadas. Seria preciso avisar à administração do hospital o quanto antes. Os plantões terão de ser cobertos por outro profissional e os pacientes redirecionados para outros médicos.

    O telefone vibrou no bolso do jaleco. Liao viu que a chamada vinha do telefone de sua mãe. Ele olhou novamente, custando a acreditar. Afinal, havia muito tempo que os telefones de seus familiares apenas serviam para receber chamadas, pois devido ao crédito social baixo não lhes era permitido realizar chamadas, mesmo que pagando pelo serviço.

    — Mãe!?

    — Sim, sou eu. Aconteceu algo incrível. Seus irmãos, seu pai e eu fomos retirados da lista negra. Nossa humilhação chegou ao fim. Foi você, nossa rocha escarlate, que fez isso por nós?

    — Fico feliz pela boa notícia, mas não sei como isso aconteceu. A senhora tem certeza?

    — Claro filho. A conta com o dinheiro dos seus avós foi desbloqueada. E o valor ainda foi corrigido como compensação aos quase oitenta anos de congelamento pelo Estado. Até as propriedades de nossos antepassados que foram confiscadas na época do Mao foram devolvidas. Seu pai está em lágrimas. Recebemos a ligação do homem do banco explicando cada detalhe.

    — São notícias incríveis. Dê um abraço em todos, por mim.

    — Darei. Mas o que foi? Você parece estar mais do que cansado, rocha escarlate. Parece muito preocupado.

    O médico sorriu. Era quase impossível esconder algo de sua mãe, mesmo através de uma chamada telefônica.

    — Também tenho algumas novidades. Contarei pessoalmente.

    — Mas está tudo bem? Bons ventos?

    — Está tudo bem, mãe. Explico depois. Agora preciso desligar.

    — Ah, sim filho. Procure dormir um pouco e não deixe de comer.

    — Claro. Pode deixar. Até breve.

    Liao Chengzhi deu mais alguns passos e ao se aproximar da porta do vestiário, sentiu o toque suave e morno da mão da doutora Zhang Rong, sua companheira de plantão médico. Apesar de alguns anos mais velha, Zhang sempre terminava o estressante período do plantão como se estivesse acabado de chegar para uma festa.

    — Boa tentativa Liao. Mas eu não vou pedir seu telefone emprestado.

    O rapaz sorriu para a companheira de trabalho, apesar de não ter entendido o comentário.

    Os dois entraram no vestiário, ainda trocando olhares e sorrindo. Ela exercia esse efeito sobre todos os homens. Os olhos grandes e arredondados, a pele aparentando ser de porcelana, os lábios carnudos e rosados, chamavam atenção por onde quer que a doutora Zhang passasse. Ela nutria um desejo incendiário pelo jovem e promissor médico Liao. No entanto ele parecia fazer de tudo para manter as coisas apenas no campo da amizade ou camaradagem profissional.

    Novamente o telefone de Liao vibrou.

    O jovem atendeu a chamada sob o olhar sarcástico da companheira de trabalho. Ela se encostou no pequeno sofá que dividia o ambiente de convívio da equipe médica daquele bloco do hospital. Com os braços cruzados e um largo sorriso no rosto Zhang aguardou pacientemente o fim, do que ela achava ser, mais uma tentativa de engana-la. Aproveitando a oportunidade para percorrer com os olhos, alguns dos detalhes que mais lhe atraíam no corpo do médico. Suas mãos e o peitoral, agora parcialmente coberto pelo jaleco, mas ainda assim volumosos. Um arrepio percorreu seu corpo e a umidade do desejo brotou. Se fosse possível ela agarraria o rapaz ali mesmo.

    — Bom dia doutor Liao Chengzhi. Conhecemos os valores pelos quais seus antepassados viveram e morreram. Precisamos de sua ajuda para restaurar a dignidade e a liberdade em uma escala global.

    A voz feminina era suave, quase aveludada, mas o discurso parecia decorado e bastante panfletário.

    — Quem está falando?

    — Precisamos de sua ajuda. Assim como restauramos os direitos fundamentais de seus parentes, precisamos de ajuda para fazer o mesmo por milhões de pessoas.

    Liao empalideceu. As pernas estavam trêmulas e ele fazia o possível para não transparecer o pavor pela chamada conspiratória para a linda mulher que o encarava sorridente. Qualquer chamada telefônica era passível de rigorosa fiscalização pelo governo chinês. Naquele exato momento a conversa devia estar sendo transcrita por sistemas avançados de monitoramento e rotulada como altamente prejudicial ao regime. Talvez fosse uma armadilha para prende-lo. A hipótese fez o coração acelerar.

    — Estou percebendo ansiedade e medo. Não se preocupe. Nossos contatos jamais serão monitorados. Você e sua família estão em segurança. Não compartilhe o conteúdo de nossa conversa com ninguém. Entraremos em contato novamente quando você chegar ao seu apartamento. Agora de atenção à doutora Zhang Rong, ela está no período fértil e sua tensão sexual está acima dos níveis aceitáveis. — revelou a voz tão misteriosa quanto indiscreta.

    Liao olhou para o telefone. Tentou buscar o número de origem da chamada, mas o aparelho não indicava o recebimento daquela última ligação. Apenas o telefonema de sua mãe havia sido registrado. O som de palmas trouxe o rapaz de volta para a outra questão. A revelação de que a mulher que por algum motivo o aplaudia estava com tesão. Aquilo parecia ser insano. Quem falaria algo assim para um estranho. Mas por alguma razão Liao estava com vergonha de olhar para a sua companheira de trabalho.

    — Parabéns. Olha, você me convenceu. Me empreste o telefone. — disse Zhang ao cessar o aplauso e se aproximar.

    Lembrando do conteúdo da chamada e da recomendação de não compartilhar com ninguém, Liao meteu, apressado, o aparelho no bolso do jaleco. Ato contínuo, ele deu um passo para o lado, saindo do alcance da mulher pela tangente.

    O movimento foi tão inusitado e desengonçado que levou a divertida Zhang às gargalhadas.

    Disfarçando o nervosismo, Liao pegou um copo com água e ofereceu para a mulher.

    — Sério! Por qual motivo você está rindo?

    — Ah tá bom! Vai me dizer que o fato de você fingir que está falando no telefone, justamente quando nenhuma rede de telefonia está funcionando, não é hilário?! Eu sei que você pensou que eu iria cair direitinho e correr para pedir para acessar meus créditos, pagar o táxi e, finalmente poder ir para casa sem precisar fazer uma longa caminhada.

    — Não é nada disso. Eu falei com a minha mãe.

    — Olha, você mente mal mesmo! Sua mãe te ligando?

    — Isso.

    — Te peguei fácil na mentira. Esqueceu que você me contou que seus pais estão na lista negra? Ninguém sai da lista negra de uma hora para outra, muito menos consegue fazer ligações quando as redes de telefonia do país inteiro estão com problema. Tenta outra bobinho.

    Liao sentiu uma vontade imensa de pegar o telefone e mostrar o registro da ligação de sua mãe, no entanto parecia ser mais acertado para o momento entrar na fantasia da companheira de trabalho e mante-la fora de possíveis problemas com o governo.

    — Tudo bem, tudo bem. Você é esperta demais para cair nesse truque. — disse Liao, pela primeira vez percebendo que a atitude corporal de Zhang realmente indicava uma disponibilidade sexual implícita. Movido pelo momento, ele decidiu seguir o fluxo, aparentemente empoderado pela revelação da chamada misteriosa. — Que tal irmos até o meu apartamento, eu tomo um banho e levo você de bicicleta até sua casa. Assim você não caminha tanto e eu me redimo pela tentativa de engana-la.

    — Claro! Aceito. — respondeu a, ainda mais sorridente doutora Zhang, já se imaginando no chuveiro junto à Liao.

    ***

    O carro precisou ser desviado das madeiras arrumadas ao longo do caminho estreito que levava ao último chalé da rua. A temperatura ambiente, beirando os dezoito graus, estava na medida certa para fazer um passeio junto à natureza. Aquela era mais uma bela manhã de agosto na região das Marcas, província de Pesaro e Urbino, na Itália. Natureza era o que não faltava no interior e no entorno do Camping Paradiso.

    No interior do carro o menino mal podia conter a ansiedade.

    — Mãe, será que o tio vai estar em casa? Será que vai querer brincar de bola comigo?

    — Vamos ver. Acho que ele vai estar em casa. Mas vá com calma, não fique alugando seu tio. Pode ser que ele não esteja com tempo para brincar com você, Ok? Então lembre-se do que conversamos…

    — Nada de insistir! Eu já sei, mãe! — antecipou-se o menino com voz desanimada.

    Barracas, trailers e motorhomes, dos mais diversos tamanhos e modelos, dividiam espaço nas centenas de vagas. Cada unidade podia contar com acesso individual a água quente, gás, energia elétrica, internet, além de dispor de toda a infraestrutura comum ao complexo como banheiros, lavanderia, restaurante e piscinas. O camping Paradiso também oferece chalés ou como a administração prefere chamar: bangalôs. As belas e práticas casas construídas inteiramente de madeira, réplicas dos típicos abrigos de montanha, eram uma atração para os visitantes e fonte de renda extra para o camping.

    Ramos estava morando, havia quase seis meses, no bangalô de número sete. A casa, cercada de árvores, ficava sobre um muito bem cuidado gramado. O tapete verde cedia lugar apenas para a estreita rua de terra batida, usada como acesso interno do Camping.

    Os bangalôs, na maioria das vezes, podiam ser reservados apenas por pequenos períodos. O aluguel por temporada permitia maior rotatividade e acomodava com eficiência a grande demanda turística da região. Porém, após negociar bastante, Ramos conseguiu alugar o simpático bangalô através de contrato anual.

    Ramos e Yuri trabalhavam trocando madeiras no forro do telhado, quando um deles percebeu a aproximação do carro por entre as folhas da copa das árvores.

    — Opa! Acho que é a sua fada madrinha, outra vez! — disse o homem de cabelo ruivo cortado ao estilo militar, barba por fazer e macacão coberto pela mistura de limo, restos de folhas apodrecidas e rebarbas da serragem de tábuas.

    — Cuida deste canto para mim? Falta apenas pregar e depois rebater as escoras. — pediu Ramos, enquanto se arrastava para fora do pequeno espaço aberto no telhado para a execução dos reparos.

    — Claro! Mas se ela trouxe o menino, pede para ele vir aqui. Tenho aquela surpresa para ele.

    — Ok!

    Quando Ramos terminou de descer a escada viu Giovane, seu sobrinho de dez anos, correndo em sua direção com sorriso solto, olhos fixos nele e o maior abraço do mundo já montado.

    — Oi tio! Trouxe a bola para a gente brincar e bumerangue também. — anunciou o menino ainda espremendo a cintura de Ramos contra seus óculos e bochecha.

    — Legal! E sabe quem está aí para curtir conosco?

    — Quem? Quem?

    — O tio Yuri!

    — Oba! Tio Yuri?! Onde ele está?

    — Ele está lá encima, consertando a casa. Está coberto de sujeira e doido de saudades de você. Quer ir lá ajudar ele?

    — Quero! Mas não posso! — disse com ar de tristeza e já olhando para a mãe.

    Ramos estranhou a resposta.

    — Como assim? Por que não pode ir?

    — É que minha mãe disse que estou proibido de subir em escadas. Isso foi depois que quebrei o braço. Eu estava usando a escada no quarto para pegar uns brinquedos que ficavam guardados lá encima do armário.

    Ramos olhou para sua cunhada que postada imediatamente atrás do filho, exibia um sorriso doce e desconcertado.

    — Tudo bem. Mas isso não vale aqui na cabana do tio. Aqui é o clube dos audazes. Lembra do que o tio te disse a respeito?

    — Sim.

    — Então qual o nosso lema?

    — A sorte acompanha os audazes, mas só os audazes inteligentes! — disse o menino, orgulhoso por haver lembrado.

    — Isso aí! Suba a escada com atenção, mantendo sempre quantos apoios?

    — Três.

    — Muito bom! Agora vá. Tio Yuri está lá encima te esperando.

    Depois de observarem Giovane subir a escada, Ramos e Claudia se abraçaram.

    — Como estão as coisas? — perguntou Ramos.

    — Melhores. Você não imagina o quanto Gio melhorou na escola e em casa com esta mudança! Ele está muito mais calmo, menos agressivo. Na escola anterior, eu estava sendo chamada quase todos os dias para escutar relatos e reclamações. Diziam que ele estava brigando com os coleguinhas e desafiando as professoras. Agora, na escola nova, ele tem recebido elogios e tudo parece estar voltando ao normal.

    — E você? — insistiu o cunhado, sabendo que Claudia havia deixado para trás muito mais do que os negócios de família do marido, falecido dois anos antes. Também se afastou dos amigos e contatos de trabalho da região da Toscana. Tudo para se mudar com o filho para perto de onde ele estava morando.

    — Estou bem. As coisas estão se acertando. Sabe como é?! A profissional que deixei administrando a vinícola é bastante experiente. Está cheia de ideias para a próxima vindima. Eu e Genaro ralamos muito para iniciar o projeto de agro-enoturismo e está sendo bom ver alguém dar continuidade.

    — Ralaram com o que? — interrompeu Ramos.

    Claudia, deu um sorriso suave e ajeitou os cabelos, longos e negros, que naturalmente lisos e brilhosos escorriam até o meio de suas costas. Ramos observou o gesto que reproduzia em cada detalhe o de sua falecida esposa, irmã gêmea de Claudia.

    — Agro-enoturismo. Nossa vinícola faz parte de um roteiro que permite aos turistas acompanhar o processo de colheita da uva e produção do vinho. Temos profissionais para explicar a história da vinícola, os métodos particulares de fabricação e fazer uma degustação guiada. Em setembro, que é o período da colheita na Toscana, o trabalho ficou dobrado. Imagine a loucura que é atender também à demanda turística, justamente no período mais corrido da vinícola. Genaro quase ficava louco, mas adorava ver o encantamento das pessoas com a cultura centenária de produção de vinho. Algo que a família dele, tão carinhosamente, preservava.

    Ramos assentiu com a cabeça, apontou para um banco de madeira que ficava junto ao tronco da árvore vizinha ao bangalô.

    Depois de acomodados, Claudia prosseguiu com o relato:

    — Resumindo: Estou muito mais tranqüila agora. Se soubesse disto antes, já teria terceirizado a administração dos negócios há muito tempo. Estou tendo mais tempo para mim e o meu filho. E ele está adorando ter contato com você. O Genaro era um bom pai, mas era muito fechado, quase não conversava com o Giovane. Depois da perda do pai ele sofreu muito e somente agora, com o contato com você, meu filho parece estar vivendo novamente. Ah, quase me esqueci! Trouxe uma torta de batata e lingüiça calabresa. Vou guardar na sua geladeira, sei que você adora.

    — Gosto mesmo.

    — E você? Como está indo? Ainda lá no restaurante? — questionou Claudia, virando o corpo na direção do cunhado e apoiando um dos braços por trás das costas dele, sobre o encosto do banco.

    — Sim estou.

    — Acho que você se desgasta muito. Parece estar sempre buscando um trabalho pesado para fazer e quando cai a noite, simplesmente desaparece.

    Ramos não falou nada, apenas lançou um olhar complacente sobre Claudia.

    — Sei que não tenho nada que me meter na sua vida, mas eu gosto de você e somos família. — ponderou a cunhada.

    Os passos apressados, seguidos de chamados insistentes indicavam que a distração no telhado havia terminado.

    — Mãe, mãe! Olha que maneiro o tio Yuri me deu! — Giovane exibia orgulhoso o pequeno canivete multifuncional de cabo vermelho.

    Claudia olhou para o objeto vendo, pelo menos, cinco formas diferentes do filho se cortar ou se furar.

    — Poxa, que presentão! Hein!? — antecipou-se Ramos.

    Os olhos do menino brilharam ainda mais e continuaram fixos na pequena ferramenta.

    — Está vendo esta pequena argola aqui?

    — Sim, tio Ramos.

    — Ela serve para amarrar o canivete ao seu equipamento ou à sua roupa. Assim, além de evitar que você o perca, vai conseguir pegá-lo mesmo que esteja muito escuro ou muito frio.

    — Que demais! Olha só tio, tem até uma pinça! Dá para pegar as formigas. E tem um lado com faca.

    — Isso aí. Ele tem várias funções. É uma ferramenta para ajudar você e sua mãe. De agora em diante, quando ela precisar que o homem da casa desmonte alguma coisa, você tem a ferramenta para ajudar. — explicou Ramos, mostrando a pequena lâmina com ponta em formato de chave de fenda.

    O menino já estava praticamente sentado no banco ao lado do tio.

    — Tem uma regra para uso deste presente e eu quero que você a explique para a sua mãe. — solicitou Ramos, observando Yuri recolher a escada e se aproximar para cumprimentar Claudia.

    — O tio Yuri disse que este presente pode ficar no meu bolso o tempo todo. Mas deve estar sempre fechado quando não estiver em uso.

    — E o que mais? Meio quilo? — questionou Yuri, largando a escada no chão e cruzando os braços, fazendo cara de vilão de desenho animado.

    Giovane olhou para Yuri e começou a rir. O menino adorava as caras e bocas que Yuri fazia para provocá-lo.

    — Não posso levar o canivete para escola e nem para casa de meus amigos. É uma ferramenta, não um brinquedo. — completou Giovane, com firmeza.

    Yuri o agarrou pela cintura e lançou ao ar como se fosse uma pena.

    — Ainda bem que você lembrou, caso contrário iria experimentar as terríveis torturas dos piratas russos! — disse Yuri, amparando a queda do menino e o colocando de volta no chão.

    — Na gaveta da sala tem um rolo de paracord. Se quiser pode pedir ao tio Yuri para te ensinar a fazer o cabo de segurança para o canivete. Que tal? — provocou Ramos.

    No instante seguinte Giovane e Yuri estavam correndo para o bangalô.

    — Ele adora estar com vocês! Foi disto que te falei há pouco.

    — O Giovane é um menino incrível. Você tem muita sorte em te-lo.

    — Eu sei Ramos. Na verdade nós temos.

    Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes, até que Claudia voltou a falar.

    — Somos sua família, não se esqueça disto. — disse Claudia, pousado sua mão sobre a mão do cunhado ainda suja de limo.

    Ramos encarou Claudia. Aquele olhar sereno e ao mesmo tempo majestoso era exatamente o mesmo que encontrava em Patrícia. Ainda hoje, por vezes, Ramos o via, como a primeira imagem, ao despertar sozinho na cama.

    — Tudo bem? — perguntou Claudia, percebendo que Ramos a olhava, mas parecia perdido em algum tipo de lapso temporal.

    — Oi, o que disse?

    — Perguntei se você está bem? Parecia estar viajando enquanto me olhava!

    — Desculpe. Devo ter me distraído. Que tal guardarmos esta torta na geladeira? — convidou Ramos, já pondo-se de pé e ajudando a cunhada a se levantar.

    No restante da manhã os quatro se divertiram no gramado do camping.

    ***

    No interior do veículo a temperatura parecia ainda mais baixa do que do lado de fora. — São quatro e vinte da manhã e os dois estão sentados ali desde a meia noite e meia — pensou a mulher de campana ao endereço de mais um alvo. Sentada na parte de trás da pequena van, na mais completa escuridão, usando óculos e luvas de controle para realidade virtual ela reposicionava as pequenas câmeras de vigilância com movimentos precisos. A presença daqueles caras era uma incógnita. Segurança adicional? Desafetos? Algum novo esquema criminoso?

    Enquanto isso, no apertado carro de passeio estacionado ali próximo, o console central estava decorado pelas embalagens das muitas balas de café já consumidas. Elas formam uma pilha brilhosa. Com o banco do carona ligeiramente reclinado, Yuri aproveita sua hora de descanso com sono pesado e ronco ritmado.

    Ao lado do amigo russo, Ramos acompanha atento o que parece ser a saída dos últimos fregueses. Um grupo, mais exaltado, começa a discutir a meio caminho entre a porta do bar e o beco escuro que dá acesso aos fundos do estabelecimento. O barulho chama atenção de alguns seguranças. Eles saem do bar, observam a confusão entre os clientes embriagados, depois gritam e gesticulam. Foi o suficiente para que os homens e

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