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A Única Porta Azul
A Única Porta Azul
A Única Porta Azul
E-book543 páginas7 horas

A Única Porta Azul

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Sobre este e-book

Imagine ser uma menina de 12 anos: você tem uma vida feliz e uma família que a ama; então, aos poucos, sua vida se desintegra e você se vê sozinha, a milhares de quilômetros de casa.

É setembro de 1940, Maggie e seus irmãos mais novos, Grace e Billy, estão morando no East End de Londres com a mãe. O pai foi morto em Dunkirk e a mãe precisa ir para o hospital para ter o quarto filho, deixando os outros três com uma vizinha. Em um dos piores bombardeios da guerra, a casa deles foi destruída e a vizinha morre. Perplexas e assustadas, as crianças vagam pelas ruas até serem acolhidas por algumas freiras. Mas os problemas não acabam. Ninguém consegue rastrear a mãe e, rotulados como órfãos, as crianças são enviadas como migrantes para a Austrália.

O romance traça as aventuras deles em um novo país, a saudade de casa, a tristeza de quando Billy é separado das irmãs, e a solidão da vida em um orfanato frio e insensível. No fim, as crianças constroem novas vidas para si, mas Maggie ainda está convencida de que a mãe está viva e, quando atinge certa idade, começa a procurá-la.

Este romance é baseado em experiências de pessoas reais e reflete as atitudes da época em relação à migração infantil durante e após a Segunda Guerra Mundial.

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento12 de jun. de 2021
ISBN9781667403748
A Única Porta Azul
Autor

Joan Fallon

Dr. Joan Fallon, Founder and CEO of Curemark, is considered a visionary scientist who has dedicated her life’s work to championing the health and wellbeing of children worldwide. Curemark is a biopharmaceutical company focused on the development of novel therapies to treat serious diseases for which there are limited treatment options. The company’s pipeline includes a phase III clinical-stage research program for Autism, as well as programs focused on Parkinson’s Disease, schizophrenia, and addiction. Curemark will commence the filing of a Biological Drug Application for the first novel drug for Autism under the FDA Fast Track Program. Fast Track status is a designation given only to investigational new drugs that are intended to treat serious or life-threatening conditions and that have demonstrated the potential to address unmet medical needs. Joan holds over 300 patents worldwide, has written numerous scholarly articles, and lectured extensively across the globe on pediatric developmental problems. A former adjunct assistant professor at Yeshiva University in the Department of Natural Sciences and Mathematics. She holds appointments as a senior advisor to the Henry Crown Fellows at The Aspen Institute, as well as a Distinguished Fellow at the Athena Center for Leadership Studies at Barnard College. She is also a member of the Board of Trustees of Franklin & Marshall College and The Pratt Institute. She currently serves as a board member at the DREAM Charter School in Harlem, the PitCCh In Foundation started by CC and Amber Sabathia, Springboard Enterprises an internationally known venture catalyst that supports women–led growth companies and Vote Run Lead, a bipartisan not-for-profit that encourages women on both sides of the aisle to run for elected office. She served on the ADA Board of Advisors for the building of the new Yankee Stadium and has testified before Congress on the matters of business and patents and the lack of diverse patent holders. Joan is the recipient of numerous awards including being named one of the top 100 Most Intriguing Entrepreneurs of 2020 by Goldman Sachs, 2017 EY Entrepreneur of the Year NY in Healthcare and received the Creative Entrepreneurship Award from The New York Hall of Science in 2018.

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    A Única Porta Azul - Joan Fallon

    A Única Porta Azul

    A romancista escocesa Joan Fallon vive e trabalha no sul da Espanha. Ela escreve ficção contemporânea e histórica, e quase todos os seus livros têm uma forte protagonista feminina. Ela é a autora de:

    FICÇÃO:

    Entre a Serra e o Mar

    A Casa Na Praia

    Loving Harry

    Contos de Santiago

    Palette of Secrets

    The Thread That Binds Us

    Love Is All

    A série al-Andalus:

    A Cidade Brilhante (Livro 1)

    The Eye of the Falcon (Livro 2)

    The Ring of Flames (Livro 3)

    Série A Cidade dos Sonhos:

    O Boticário (Livro 1)

    O Pirata (Livro 2)

    The Prisioner (Livro 3)

    NÃO FICÇÃO:

    Daughters of Spain

    (todos estão disponíveis em brochura e e-books)

    www.joanfallon.co.uk

    Joan Fallon

    A Única Porta Azul

    AGRADECIMENTOS

    Meus sinceros agradecimentos aos meus editores, Sara Starbuck, autora da série de livros infantis Dread Pirate Fleur e JG Harlond, autor de The Chosen Man, por seus inestimáveis conselhos e apoio.

    As passagens aéreas estão em cima da bolsa, assim não há como perdê-las. A mala está pronta, bastar sair e, mesmo assim, ela hesita. O que será que ele pensa dela após esses anos todos? Será que ele a culpa? Ele jamais falou nada parecido nas cartas; mas daí, ele nunca diz muito com o que escreve, e agora que ele está casado, é a esposa, Adaline, quem escreve e conta as novidades. Em geral, ela fala dos filhos e, nas últimas cartas, dos netos também. Maggie se senta e pega a última fotografia que a cunhada enviara. Billy, já um homem de idade a esta altura, monta um cavalo marrom, o chapéu torto. Por um instante, ela acredita ser capaz de vislumbrar, a criança que conheceu, por trás daquela barba grisalha e do rosto castigado pelo clima.

    A antiga dor da separação retorna por um breve segundo, mas ela a afasta. Antes tarde do que nunca, diria sua avó, uma mulher que tinha um provérbio para cada ocasião. Tantos anos, em tese uma vida inteira de separação, e para quê? O homem na fotografia está olhando-a; os olhos, que ela sabe serem azuis mesmo que a fotografia não permita que se distinga a cor, são gentis. A pele que os rodeia está enrugada por estreitá-los para o sol, ou assim ela espera, rindo. Ele é um homem em paz consigo. Ele não a acusa de nada.

    O chapéu, ela não pode se esquecer do chapéu. Ela procura pelo quarto, checa uma e outra vez a mala. Em seguida, arma o despertador para às seis e o posiciona ao lado da cama, ao alcance das mãos, de modo que ela o ouvirá. É imperativo que ela não perca o voo; convenceu-se se que se não for desta vez, ela jamais viajará, e jamais voltará a ver Billy.

    PARTE 1

    LONDRES

    1940

    ––––––––

    Ladybird, ladybird, fly away home

    (Joaninha, joaninha, voe para longe de casa)

    Your house is on fire and your children are gone

    (Sua casa está pegando fogo, e seus filhos se foram)

    All except one and that’s little Ann

    (Todos exceto um, que é a pequena Ann)

    For she crept under the frying pan

    (Pois, ela rastejou para debaixo da frigideira)

    Cantiga de ninar tradicional inglesa

    MAGGIE

    — Toc toc, quem é?

    — Só a Sra. Gatinha.

    A corda de pular voava no ar, batendo no chão no ritmo do canto das garotas.

    — O que quer?

    — Meio litro de leite.

    As palavras ecoam pela rua, ricocheteando nas paredes das casas de terraço onde moram.

    — Cadê seu dinheiro?

    — Em meu bolso.

    Uma garotinha rechonchuda com as marias-chiquinhas voando no ritmo da música, entra na corda.

    — Onde fica seu bolso?

    — Esqueci.

    Agora as vozes das garotas mudam de tom enquanto entoam a última linha.

    — Por favor, saia.

    Agora é a vez de Maggie.

    Quando Greta salta, ela pula para dentro.

    Toc Toc! — elas recomeçam, sem parar e incansáveis, as vozes jovens sendo carregadas pela rua.

    Grace está choramingando agora.

    Maggie pode ver a meleca escorrendo pelo lábio superior.

    — Limpe o nariz, Gracie. Não vou demorar! — grita ela, sem quebrar o ritmo.

    — Venha cá, Gracie, vou ajudá-la. — diz Ann, segurando o lenço sujo que está preso na casa do botão de cima do casaco da criança.

    — Ela tem uma serpentina de verdade. — diz ela, enxugando o rosto com cuidado.

    — Está com ela a semana toda. Vamos, você é a próxima.

    Maggie salta para longe da corda enquanto Ann entra na brincadeira.

    — Não podemos ir para casa agora, Maggie? — Gracie choraminga.

    — Mais cinco minutos.

    — Mas, por que não posso brincar?

    — Você é muito pequena.

    — Não sou. Serei livre logo.

    — Sua vez, Maggie.

    Ela pega a ponta da corda que Maria segurava e, sem parar o movimento continua a rodá-la.

    — Vamos fazer "Mãe, mãe".

    — Certo.

    — Mãe, mãe, estou passando mal, manda chamar o médico, rápido, rápido, rápido. — cantam as meninas.

    — Maggie. Hora do chá. Maggie.

    — É sua mãe. — diz Mary.

    — Dá a corda.

    Judy pega a corda dela e continua girando.

    — Vamos Gracie, hora do chá.

    Maggie pega a mão da irmã, e elas descem a rua juntas.

    Mande chamar o médico, rápido, rápido, rápido. — canta Grace.

    — É o que nos resta a fazer, menina, se o resfriado não melhorar.

    A mãe delas está parada na porta, observando-as, com um largo sorriso no rosto.

    — Oi, mamãe. Você parece feliz.

    — Chegou uma carta do seu pai.

    — Que bom. O que ele diz?

    — Achei melhor esperar até que todos estivéssemos sentados juntos para eu ler para vocês. Venha agora, Vovó está esperando.

    — Vovó está aqui, então?

    — Sim, ela acabou de chegar, veio ver como estamos.

    — Ela trouxe bolo de pedra?

    — Só pensa nisso, minha filha, em comida?

    — Mamãe. — Grace diz.

    — Que foi, querida?

    — Estou com dor de cabeça.

    — Ó, minha pobre Gracie, que situação você está... Venha aqui, e mamãe lhe dará um abraço.

    Ela se abaixa, sem jeito, e pega a garotinha. Em seguida, a equilibra no colo e a carrega para dentro de casa. Maggie as segue. O cheiro de torradas e chá vem da cozinha pelo corredor. Ela fecha a porta da frente com cuidado. Papai pintou a porta da frente pouco antes de partir para a guerra. Ele perguntou qual era a cor favorita dela que disse ser azul, então ele pintou de azul. É a única porta azul em toda a rua.

    Ela gosta disso.

    Quando volta da escola e chega na rua, pode ver a casa de imediato. Todas as outras portas são marrons. Elas se enfileiram na rua como soldados vestidos com uniformes iguais, em silêncio, frente a frente, e aí está a porta deles. Azul. Azul como o céu.

    Mamãe vai para o fogão, e serve o chá.

    Grace se senta ao lado de vovó na mesa da cozinha.

    — Lave as mãos, querida, antes de se sentar. — mamãe diz, sem se virar.

    — Olá, Vovó.

    — Olá, Maggie. O que anda aprontando?

    — Estava brincando.

    — Como vai a escola?

    — Está indo muito bem. — mamãe responde por ela, entrando na copa e pegando uma mamadeira da despensa. — A professora dela diz que é uma das melhores da classe. — acrescenta, colocando o leite na mesa.

    — Nossa, que ótimo. Você poderia ensinar uma ou duas coisas a esse seu irmão.

    Vovó olha para mamãe e pergunta:

    — Ele está se comportando melhor?

    — Billy é um pouco agitado. — mamãe responde.

    — Precisa da mão de um pai, é disso que ele precisa.

    — Mãe, mais alguns de nossos professores foram embora.

    — Como é, Maggie?

    Mamãe corta o pão em fatias grossas, uma para cada um:

    — Aqui, Maggie, torre este para você.

    Ela entrega à menina um garfo longo que usam para torrar o pão, enegrecido pelo uso. Maggie abre a porta para o forno e espeta uma das fatias de pão, com cuidado, e estende acima das brasas.

    — Ainda usando o fogão, hein. — diz Vovó.

    — Bem, o tempo está muito frio para maio. — mamãe responde.

    — Nunca passei um inverno como esse, com gelo e neve. Até o rio congelou.

    — Este é o resto do carvão. A menos que eu consiga um pouco de madeira com o velho Alf na próxima vez em que ele voltar, teremos que ficar sem.

    — Logo o verão chega, mãe. — Maggie diz.

    — Esperemos que sim. Estou farta deste frio. — geme Vovó. — Não faz nada para o meu reumatismo.

    — O Sr. Hoskins e o Sr. Pitt se alistaram no exército. — continua Maggie.

    — Bem, todos esperávamos que isso acontecesse. Até os professores são chamados.

    — Sim, mas a Sra. Holmes e a Srta. Skinner também foram. Foram embora com os evacuados.

    O calor do fogão faz seu rosto queimar.

    — Aqui, este está pronto. — Maggie vira a torrada no prato com o dedo. — Está quente.

    — Você disse que mais professores foram embora agora?

    Maggie assente.

    — Meu Deus. Assim não restam muitos professores na sua escola. — Vovó diz.

    — Não, é por isso que a Srta. Bentley diz que só podemos ir para a escola na próxima semana pela manhã. Daí, na semana seguinte, temos que ir à tarde.

    — Bem, nesse caso, terá que estudar em casa. Não pense que vai passar metade do dia brincando na rua. — mamãe diz, passando mais pão para Maggie.

    — Posso ajudá-la com a casa, mamãe, ou na cozinha. — sugere Maggie.

    Maggie gosta de cozinhar. Na semana passada, elas aprenderam a fazer massa, e ela já fez palitinhos de queijo e tortas de geleia.

    — Essa é uma boa ideia, Irene. Você sabe, na sua condição, deveria estar indo devagar. — diz Vovó.

    — Deveria, mas não posso. Como posso relaxar com três filhos, e nenhum homem em casa?

    — Bem, deveria diminuir o ritmo mesmo assim. Maggie é uma garota inteligente, poderia ser uma grande ajuda para você, se você permitir.

    — É, eu sei. Maggie é uma boa menina.

    Mamãe sorri para Maggie e se inclina para dar um tapinha no topo da cabeça dela.

    — Ou posso fazer as compras, mãe. — ela insiste.

    — Sim, essa é uma ideia boa. Minhas costas me doem muito quando fico naquelas filas longas.

    Ela se vira para a mulher mais velha.

    — Sabe que ontem tive de esperar três horas por quatro ovos. Poderia tê-los posto eu mesma de tanto esperar.

    Ela ri. Maggie gosta quando mamãe ri, é como o tilintar de pequenos sinos.

    — Vejo que conseguiu um pouco de geleia. — diz Vovó.

    — Não, sobrou do ano passado. É uma pena que seja a última. Não me diga que vão racionar geleia também?

    A vó concorda com a cabeça.

    — Bem, não sei onde vou arranjar tempo para fazer este ano, com o novo bebê e tudo, mesmo que consiga encontrar frutas.

    — Vou fazer um pouco para você, Irene. Seu pai acabou de plantar alguns arbustos de groselha no jardim dos fundos. É uma geleia boa, a de groselha.

    — E quanto ao seu precioso gramado?

    — Ah, isso acabou. Agora é cavouque para ganhar: só batata, repolho e groselha. Ele plantou algumas alfaces para o verão também, e algumas cebolas.

    — Vovó, você trouxe o bolo de pedra? — Maggie pergunta, sua impaciência se sobrepondo às boas maneiras.

    — Sim. Olhe aqui.

    Vovó tira uma lata de doces surrada da bolsa de barbante, e a coloca em cima da mesa.

    — Eu ia esperar até Billy chegar em casa. — diz ela.

    Como se soubesse que seu nome seria mencionado, a porta da frente se abre, e o irmão de Maggie aparece na porta, parecendo para o mundo todo como um querubim de Botticelli que se perdeu e acabou no acidentado e desordenado extremo leste de Londres. Seus cabelos loiros encaracolados estão emaranhados com lama e folhas, a camisa está rasgada, e o sangue escorre pela perna de um corte no joelho. Ele abraça uma bola de futebol tão lamacenta quando ele e fica ali parado, olhando para a família através de enormes olhos azuis redondos.

    — Falando no diabo. Então, onde você estava? — pergunta Vovó.

    — O que tem para o chá? — é a única resposta dele.

    — Billy, o que andou fazendo? — Mamãe pergunta.

    — Só estava jogando futebol. Olá, Vovó.

    Ele larga a bola e se senta ao lado da avó.

    — Não, não faça isso, garoto. Vá tirar essas roupas lamacentas e lavar suas mãos antes de comer qualquer coisa.

    — Mãe, estou morrendo de fome.

    — Agora.

    — Mas, mamãe.

    A mãe o encara.

    — Vá para o quintal e se lave. Depois, volte aqui, e cuidarei desse joelho. Maggie, vá buscar o iodo, por favor. Essa é uma boa garota.

    Às vezes, mamãe tenta ficar zangada com Billy, mas nunca consegue. Ninguém fica com raiva de Billy por muito tempo. Maggie coloca o pão torrado à perfeição na mesa e segue para o andar de cima. Ela gosta de virar o pão no fogo, torrando-o com delicadeza para que fique com uma cor marrom dourada e uniforme, não preto e queimado nas pontas como Billy o faz.

    Ela encontra o iodo na caixa de lata sob a cama de mamãe. A caixa de primeiros socorros como ela chama. Ela se endireita e olha ao redor do quarto. É um quarto bonito: as paredes são de cor creme e há cortinas marrons com flores creme. Ela se lembra do pai pintando o quarto no ano anterior, antes de entrar para o exército. Mamãe fez cortinas para combinarem, mas quando a guerra começou o zelador apareceu e disse que ela precisaria fazer cortinas pretas, para o apagão. Maggie ajudou mamãe a fazer as cortinas pretas para todas as janelas.

    Na mesa ao lado da cama está a fotografia do casamento de seus pais. Ela a pega e vai até a janela para enxergar melhor. Acha que mamãe está linda na fotografia. Ela é uma mulher pequena, Petit é como vovó diz. Usa um casaco azul-claro e um chapéu com um véu, combinando. Parece uma princesa. Seus cabelos e olhos são castanhos, mas a fotografia não mostra. Está ao lado de papai, com o braço ligado ao dele, sorrindo para a câmera. Papai usa um terno azul. Maggie sabe ser azul porque ainda está pendurado no guarda-roupa e cheira a Brylcreem, pomada que ele usa nos cabelos, e a cigarros. É um homem forte, seu pai. Mesmo com o terno ele parece um lutador premiado. Ele tem cabelos cor de areia e olhos azuis brilhantes. Contou para ela que alguns de seus amigos no exército o chamavam de Cenoura, Cenoura Smith, mas ela não acha que ele seja ruivo de verdade, não como o garoto de sua classe de cabelos ruivos brilhantes e muitas sardas.

    Desde que papai partiu para lutar na guerra, mamãe deixa Grace dormir na cama com ela. Maggie não se importa. Na verdade, é melhor porque agora ela tem a cama só para ela, não precisa se preocupar se vai acordar Grace toda vez que se mexe. Billy dorme no quarto com ela, mas tem a própria cama. Ninguém quer dormir com Billy porque ele não consegue ficar quieto. A noite toda ele se revira e, às vezes, sonha que está jogando futebol e suas pernas se mexem. Não, é impossível dormir com ele.

    Ela fecha a porta do quarto de mamãe com cuidado ao sair e desce as escadas. Consegue ouvir uma voz diferente na cozinha; parece a Sra. Kelly. Quando ela volta para a cozinha, Billy está sentado ao lado de Vovó, com o rosto recém-limpo e a lata de bolinhos de pedra ainda fechada sobre a mesa.

    — Estamos esperando por você. — diz Billy, com um tom acusatório.

    — Aqui está o iodo, mãe. — Maggie diz, entregando o minúsculo frasco marrom, com as laterais onduladas. — Olá, Sra. Kelly.

    — Olá, Maggie. Como está você hoje?

    — Estou bem, obrigada.

    — Um pouco de chá, Kate? — pergunta mamãe.

    — Por favor. Estou com a boca seca como o deserto.

    A Sra. Kelly se senta no banquinho da cozinha e tira um maço de Player's Weights do bolso.

    — Quer um?

    — Não, obrigada. Por ora, os cigarros me deixam enjoada.

    — E você, Lil? — ela estende o maço para vovó.

    — Não se importe comigo.

    — Desculpe pelo chá. Está um pouco fraco. É a segunda vez que usamos essas folhas.

    — Está ótimo. Molhado e quente.

    — Vovó?

    — Tudo bem, tudo bem. Bolos de pedra.

    Ela puxa a lata para perto e a abre.

    — Então, quem vai querer um?

    Três mãos se ergueram em disparada.

    — Devemos oferecer um à Sra. Kelly primeiro?

    Três cabeças assentem e aguardam pacientes enquanto a visita pegava um.

    — Agora sim. A mais velha primeiro.

    — Não é justo. — diz Billy. — Ela sempre vai primeiro.

    — Não, não quero. — protesta Maggie.

    — Ora, ora, sem discussão.

    Vovó oferece a lata para Maggie, depois para Billy e, por fim, para Grace. Maggie aproveita o sabor do bolo quebradiço, localiza as passas com a língua e as enfia nos cantos da boca para saborear por último.

    — Que delícia, Vovó! — murmura Billy, a boca ainda cheia.

    — A aparência está ótima. — diz a Sra. Kelly, apagando o cigarro na ponta do prato.

    Ela recoloca o cigarro fumado pela metade com cuidado de volta no maço e dá atenção ao bolo.

    — Sim, muito bom, Lil. Vejo que não perdeu a mão.

    Maggie gosta da Sra. Kelly.

    Ela é vizinha deles desde que Maggie se lembra e costuma ficar sentada na cozinha, conversando e fumando com mamãe. É uma mulher rechonchuda, com um sorriso largo e sempre usa um grande avental amarelo com trevos e um lenço verde na cabeça. Diz que o verde é uma cor da sorte para os irlandeses. Mamãe diz que ela veio para a Inglaterra porque as pessoas na Irlanda não tinham o que comer. Todos a chamam de Sra. Kelly, embora Maggie não se lembre de haver um Sr. Kelly, e quando ela pergunta para a Sra. Kelly algo desse assunto, a amiga da mãe apenas ri e bate no nariz como se fosse um segredo.

    — Mamãe, e a carta do papai? — Maggie pergunta, enquanto se dedica à última migalha de seu bolo.

    — Tudo bem, agora que estamos todos aqui e não precisamos mais nos preocupar com bolos de pedra e coisas do gênero, vou ler para vocês.

    Mamãe tira um envelope amassado do bolso do avental e abre a carta.

    — "Minha querida Irene." — ela começa.

    Maggie a vê hesitar.

    — "Maggie, Billy e Grace. Espero que todos estejam bem e tendo o suficiente para comer. Estão nos mantendo muito ocupados aqui. Acabei de construir um grande..."

    Ela se interrompe e sorri para eles.

    — Só nos resta imaginar o que foi, já que os censores estão agindo de novo.

    Duas linhas pretas apagam qualquer indiscrição que papai pretendia contar a eles.

    — Continue, mamãe.

    — "Estou farto da comida do exército, posso garantir. Gostaria de um prato de sua comida caseira, Irene. Diga à sua mãe para comprar as meias, por falar nisso."

    Ela fica em silêncio, e Maggie vê uma lágrima solitária escorrer por sua bochecha.

    — Bem, não há muito mais, apenas que ama muito todos vocês e espera estar em casa logo.

    — Beijos, mamãe? — pergunta Grace, seus olhos arregalados em antecipação.

    — Ah sim, claro. E dê um grande beijo em Grace, Maggie e Billy.

    Grace franze os lábios e fecha os olhos ao fazê-lo. Mamãe se inclina e a beija na testa, depois se vira e abraça os outros dois filhos.

    — Mamãe, você está me esmagando. — reclama Billy.

    — Agora vamos, vamos limpar a mesa do chá.

    — Mas... onde está papai? Ele não disse? — pergunta Billy, levando o prato dele para a pia e jogando-o na água com sabão.

    — Claro que não, bobo. É segredo. — Maggie dispara.

    — Ele nos diria se pudesse, Billy, mas o exército tem que manter seus movimentos ocultos dos alemães. — explica mamãe.

    — Para que possam pegá-los de surpresa?

    — Isso mesmo.

    — Eu não contaria a ninguém.

    — Não, sei que não contaria.

    — Gostaria que ele voltasse para casa. Papai prometeu me deixar usar o capacete dele.

    — Bem, creio que não vá demorar muito, querido.

    — O avô de Johnnie Ferris se juntou ao exército. — Billy continua.

    — Não seja bobo, ele é muito velho para o exército. — diz Maggie.

    — Se juntou sim.

    — Imagino que Billy esteja se referindo aos Voluntários Locais de Defesa. Pedem que as pessoas se aliem. — explica Vovó.

    — Sim, ouvi o secretário da Guerra pelo rádio, pedindo às pessoas para irem à delegacia de polícia local se quisessem ser voluntárias. — acrescenta a Sra. Kelly.

    — Milhares foram, milhares.

    — O que eles são então, mamãe, esses voluntários de defesa? — pergunta Maggie.

    — São homens que não podem lutar no exército por uma razão ou outra, mas podem ajudar a defender o país, mesmo que de casa.

    — Velhos bem velhinhos. — acrescenta Billy. — Nem têm uniforme, só braçadeiras idiotas.

    — Mas, por quê?

    — No caso de sermos invadidos. — explica Billy.

    — Os alemães virão para cá, então? — Maggie pergunta.

    Há um tremor em sua voz.

    — Não, claro que não. É só por precaução. — diz ele, pegando outro bolo de pedra. — Por que as meninas são tão estúpidas?

    — Mas, o que faríamos se eles vierem para Londres? — insiste Maggie.

    — Não virão para Londres. Agora pare com isso, Billy. Está assustando Grace.

    Grace nem mesmo está ouvindo, está ocupada pegando as passas de seu bolo de pedra e alinhando-as sobre a mesa.

    — Não vai comer isso? — Billy pergunta, prestes a pegar uma.

    — Mamãe, ele está pegando minhas passas. — grita Grace.

    — Billy, deixe-a em paz.

    — Você disse que não devíamos desperdiçar comida. — ele protesta.

    — Vou dividir com Teddy. — Grace explica enquanto coloca o ursinho de pelúcia caolho no colo.

    — Ainda tem chá no bule, garota? — pergunta Vovó.

    — Um dedinho.

    A mãe enche a xícara de Vovó com o chá aguado.

    — Parece água suja. — ela geme. — E você, Kate?

    — Não, estou bem. Já deve ter sabido de Sally Kemp, suponho?

    — Não, o que tem ela? — pergunta mamãe.

    — Ela e os filhos foram para o interior. — diz a Sra. Kelly, reacendendo o cigarro e recostando-se na mesa.

    — O quê? Foram evacuados, é isso?

    — Sim, todos eles. Mandou-os para o País de Gales ou algum outro lugar.

    — Creio ser uma boa ideia. Melhor tirar as mulheres e crianças de Londres. — acrescenta Vovó. — Não sei por que você também não vai, Irene. As crianças adorariam o campo, muito espaço para correr, leite fresco, ovos. Seria ótimo para elas.

    Maggie olha para mamãe: ela está despejando as folhas de chá em uma folha de jornal.

    — Eu os vi no centro. — diz ela à mãe.

    — Quem?

    — As crianças. Estavam todas alinhadas, com etiquetas e máscaras de gás em volta do pescoço. Os professores estavam junto.

    Mamãe não responde.

    — Vai continuar a secar essas folhas? — a Sra. Kelly pergunta.

    — Por que não? Vou misturá-las com algumas frescas, e ninguém notará a diferença.

    — Lil tem razão, sabe. Seria muito mais seguro para todos vocês no interior.

    — E você tem que considerar o novo bebê. — acrescenta Vovó.

    — Não, vamos ficar aqui; e se Ronnie voltar, e não estivermos aqui para recebê-lo? Não, quero estar aqui para quando ele chegar em casa. De qualquer forma, esta palhaçada de evacuação é uma perda de tempo. A guerra acabará em breve. Não, pretendo aguentar em minha própria casa. Afinal, é por isso que Ronnie está lutando, por sua casa e família.

    — Mas, e o bebê?

    — Vai nascer em Londres, como o resto das crianças.

    — Bem, você poderia enviar as crianças. Muitas estão indo sem as mães. Lá, estarão seguras.

    — Seguras? Elas estão seguras aqui comigo. Sou a mãe delas. Não, ninguém vai a lugar nenhum. Esta é a nossa casa, e é aqui que vamos ficar.

    Ela empilha os pratos molhados no escorredor com tanta força que Maggie pensa que vão quebrar.

    — Creio ser hora de dormir. Maggie, leve Grace para a cama, sim? E você, meu jovem, pode se lavar e ir para a cama também.

    — Mas acabei de me lavar.

    — Agora.

    — Vai ler uma história para mim, Maggie? — pergunta Grace, erguendo os braços para ser ajudada a se levantar da cadeira.

    — Qual delas leremos esta noite, então?

    — Os Três Cabritos Rudes.

    A menina grita em antecipação.

    — Não é um pouco assustador para a hora de dormir? — pergunta Vovó.

    — Não, ela adora. Agora vamos.

    Maggie pega a irmã pela mão e a conduz escada acima.

    Vamos subir a colina de madeira. — canta Grace.

    — Ela é uma menina feliz, essa aí. — diz a Sra. Kelly.

    — Sim, não dá trabalho algum. Felizmente, é muito jovem para perceber o que está acontecendo.

    — Então não faz ideia de quando Ronnie estará de volta? — a Sra. Kelly pergunta.

    — Não, ele não disse muito na carta.

    — Fala-se que alguns homens estão voltando da França. — diz Vovó. — Talvez ele esteja entre eles.

    — Quem sabe?

    Maggie fecha a porta do quarto ao entrar.

    Ela sente uma vibração de animação na barriga. E se estiverem certas? E se papai estiver voltando para casa? Como seria maravilhoso. Não o veem desde o dia de ano novo. Ele voltou para casa devido à licença de Natal e ficou dez dias inteiros com eles e, em seguida, voltou ao fronte. Todos foram à estação ferroviária para se despedir dele, até Vovó. A estação estava muito cheia, repleta de soldados e suas famílias. Papai disse que muitos deles eram de seu regimento. Ele reconheceu alguns deles e acenou. Um dos soldados se aproximou, e papai os apresentou a ele, um por um. Ele disse: Este é meu amigo, George. Daí ele disse: George, estes são meus filhos..

    Então George apertou a mão de cada uma das crianças, tão educado. Ela se pergunta se George estaria voltando para casa também. Uma lágrima escorre por sua bochecha. Foi bom receber a carta de papai, mas não gosta quando os censores cortam todas aquelas palavras. Ela fica assustada ao pensar que não sabem onde papai está, ou quando o verão de novo. Mamãe diz para não se preocuparem, porque não podem contar tudo sobre os movimentos dos soldados, mas Maggie não consegue evitar. Apesar do que Vovó disse, de que os homens estão retornando, ela não consegue se livrar da sensação de que algo ruim vai acontecer.

    IRENE

    — Vamos, vocês, se apressem. Nos atrasaremos nesse ritmo.

    — Estou pronta, mamãe.

    — Onde está Billy?

    — Está calçando os sapatos.

    — Vá ajudá-lo, seja uma boa garota.

    — Por que vamos à igreja agora, mamãe? É muito cedo para a escola dominical.

    — O Rei quer que todos nós rezemos pelo retorno seguro de nossos soldados, querida.

    — Pelo papai também?

    — Claro que sim. Queremos que papai volte em segurança, não queremos?

    Grace também está ouvindo, ela dá um aceno solene com a cabeça.

    Irene se abaixa e abotoa o casaco da menina. A filha caçula parece uma fotografia viva. O casaco foi feito pela mãe de Irene com uma saia velha. É de um azul-claro e combina muito bem com os olhos dela. Sabe que não vai passar mais de cinco minutos limpo, não uma cor assim, mas ela não se importa. Pela primeira vez, quer que Grace vista algo que seja bonito em vez de prático.

    — Papai vai voltar logo? — pergunta Billy.

    Ele está vestindo seu melhor par de calças de domingo e uma camisa branca limpa. Ela terá que tirar a peça dele assim que voltarem, ou ele vai sujá-la toda em um minuto.

    — Espero que sim.

    — Johnnie Ferris disse que o pai dele está na França. É lá que nosso pai está?

    — Não sei, Billy. É possível.

    — Todos irão rezar pelos soldados? — pergunta Maggie.

    — o Sr. Levy não vai, ele é judeu. — diz Billy.

    — O Sr. Levy também. Todos vão rezar hoje.

    — Mas o Sr. Levy não frequenta a nossa igreja.

    — Suponho que ele vá para a igreja dele.

    — O nome é sinagoga. — Maggie os informa.

    — Isso mesmo Maggie. Agora venham, já chega de perguntas. Não queremos chegar atrasados e ver todos nos encarando, queremos?

    — Não, mamãe.

    Irene conduz as crianças para a rua e fecha a porta detrás deles.

    — Aí está a Sra. Kelly.

    — Ela está indo para o lado errado. — diz Billy. — Talvez ela não saiba que precisamos rezar pelos soldados.

    — A Sra. Kelly é católica. Está indo para outra igreja.

    — Ela não vai à igreja de São Mateus, então? — ele pergunta.

    — Não, bobo, ela vai para a da "Nossa Senhora da Sunção". — explica Maggie.

    — Quase. — diz Irene, sorrindo apesar da agitação. — A igreja dela se chama Nossa Senhora da Assunção.

    A Igreja de São Mateus está quase cheia quando chegam. Irene e as crianças vão para a última fila e se sentam. Pela primeira vez, as crianças estão comportadas. Ela não costuma levá-los à igreja, não é muito crente, mas os manda para a escola dominical todas as semanas, sem falta. Se fosse honesta consigo, era uma maneira de ela e Ronnie ficarem sozinhos sem se preocupar se as crianças iriam ouvi-los.

    Hoje em dia, trata-se tanto de conseguir uma hora para si quanto para qualquer outra coisa. Maggie sempre os leva, não é longe para caminhar e não há grandes vias a cruzar. Ela olha para a filha mais velha. Está crescendo muito rápido, quase 12 anos e é alta para a idade. Em breve, a filha será mais alta do que a mãe, não que seja muito. Ela sorri. Ronnie sempre se refere a ela como sua pequena mulher, com ênfase no pequena.

    Ela ficou preocupada com Maggie quando Billy nasceu. Eles a mimaram, sendo a primogênita e tal, e no início, ela demonstrou ciúmes do novo irmão. Felizmente, não durou muito, e logo se apaixonou por ele. Obra toda de Ronnie. Ele foi maravilhoso com a menina, explicando que agora ela era a mais velha, e o quanto os pais dependeriam dela para ajudá-los com o novo bebê.

    Ela suspira quando pensa no marido. As coisas devem estar muito sérias se o rei está pedindo às pessoas que rezem pelos soldados. Ela gostaria de saber o que está acontecendo. Há tão poucas notícias no rádio. Ela costuma deixá-lo ligado o dia todo, desligando-o apenas quando saem ou vão para a cama. Está com medo de perder algo importante.

    A missa está começando. Todos se ajoelham. É difícil ouvir o vigário de onde estão, mas ela entende as palavras:

    ... por nossos soldados em terrível perigo na França.

    Então a congregação começa a recitar o Pai-nosso:

    — "Pai Nosso que estais no céu..."

    Ela murmura as palavras decoradas e, ao fazê-lo, tem a sensação de que nunca mais verá o marido. Esta guerra horrível, o que está fazendo com eles? Lágrimas começam a correr pelo seu rosto, e ela não pode fazer nada para impedi-las. Olha com preocupação para os filhos que estão de olhos bem fechados e concentrados nas palavras da oração.

    Ela puxa um lenço e enxuga os olhos.

    *

    Pelos próximos dez dias, Irene quase nem sai da cozinha. Trouxe o rádio da sala de estar e o apoiou no parapeito da janela para poder ouvir melhor.

    — Olá, alguém em casa?

    — Olá, Kate. Entre.

    A vizinha empurra a porta da frente e entra. Ela é seguida por um velho. Ele entra mancando, apoiando-se em uma vara de madeira. Kate deixa cair um pacote embrulhado em jornal na mesa da cozinha.

    — Olá, Sr. Ford. Como você está? — Irene pergunta.

    — Não é tão ruim, Senhora Smiff. Meu reumatismo tem me pregado peças ultimamente, mas não posso reclamar.

    — Sente-se. Vou fazer uma boa xícara de chá para todos nós. — ela enche a chaleira e coloca no fogão. — Então, o que é isso? — ela pergunta, pegando o pacote.

    — É para você. Acredito que pode fazer um bom ensopado irlandês com ele. — responde Kate.

    — Para nós? Kate, você não pode gastar seus cupons conosco. O que é isso, parte de cima de pescoço de carneiro?

    — É carne de baleia.

    Irene deixa o pacote cair na mesa.

    — Carne de baleia. Credo. Parece nojento. Quer dizer gordura e tal?

    — Não, dê uma olhada. A aparência é boa, e dizem ser muito saudável e saborosa. — acrescenta ela.

    Com cuidado, Irene abre o jornal.

    — Hm. Mas o que eu faço com isso?

    — Como eu disse, faça um ensopado. É como carne para bife, ou assim dizem, apenas mais dura e doce.

    — Bem, posso tentar. Deve ser melhor do que carne de cavalo. Maggie quase teve um ataque quando voltei para casa com carne de cavalo na semana passada. Ela disse que se tornaria vegetariana se eu trouxesse outra vez.

    — Sim, bem, você pode tentar. Veja como é. Parece ótimo para mim.

    — Por que não. Vou deixar na câmara refrigerada por ora.

    — Boa ideia, hoje está um pouco abafado.

    Irene leva a carne de baleia para a copa. Foi simpático da parte de Kate pensar neles, ela é uma boa amiga.

    — Não diga nada para as crianças agora, sim? — ela acrescenta, quando volta.

    — Não, claro que não. A propósito, onde estão?

    — Estão na escola. Esta semana as aulas serão à tarde. E Gracie está dormindo.

    Um assobio estridente interrompe a conversa.

    — Certo, vamos fazer este chá, então.

    — O primeiro-ministro vai falar à nação esta tarde. — diz Ford.

    Ele está ofegante.

    — Pensamos em vir e ouvir com você.

    — Ótimo.

    Ela pega três xícaras de porcelana e os pires combinando na cômoda, e os coloca na mesa.

    — Um pouco chique hoje, não?

    Irene ri e serve o chá.

    Ela gosta de coisas boas. Eles não têm muito, mas ela cuida do que têm e gosta de usar de tempos em tempos. Não é como os vizinhos, que guardam todos os bons pertences na sala da frente e nunca os usam, a menos que haja um funeral ou algo de igual importância.

    — Soube de algo do seu Tom? — ela pergunta ao velho.

    — Não, nada.

    — Ele está na França, não está?

    — Sim, 42.ª Divisão. E o seu marido? Ele não é sapador?

    — Sim, Engenheiros Reais. Não temos notícias dele há séculos.

    — Parece que as coisas estão muito ruins. Estamos nos preparando para uma invasão, sabe.

    — Mesmo? Tão ruim assim?

    Ela bebe o chá para disfarçar o medo.

    — Não se preocupe agora, seu Ronnie vai ficar bem, sim. — diz Kate, dando tapinhas na mão da vizinha.

    Irene engole em seco, há um nó duro em sua garganta.

    — Deus, odeio esta guerra.

    — Meu filho mais velho se juntou a este novo destacamento, o LDV. Parece-me exibicionismo, se quer saber.

    — Qual? A Brigada Olhe-Abaixe-Desapareça? — Kate pergunta, rindo da própria piada.

    — Fala de Fred?

    O filho mais velho do Sr. Ford está na casa dos quarenta, e é dono da banca de jornais do bairro.

    — Ele disse que logo devem chegar algumas armas.

    — Ainda não têm armas? Como podem defender a nação se não têm armas? — pergunta Irene surpresa.

    — Ele diz que precisam ser engenhosos. Alguns têm espingardas e revólveres que os rapazes trouxeram das trincheiras. Dei minha baioneta turca para ele. Veio de Galípoli, sim. Pode causar danos há qualquer chucrute que apareça.

    Ele golpeia o ar, sem parar, com a bengala. O velho parece estar ficando bastante animado.

    — Quer mais chá, Sr. Ford? — Irene pergunta.

    — Não irei negar.

    — Sarah Ferris diz que o marido está recebendo treinamento. Alguns ex-soldados montaram um centro de treinamento perto das docas, estão ensinando-os a atirar e fazer armas. E treinam como soldados adequados, até aprendem técnicas de sabotagem. Acho isso ótimo. — acrescenta Kate.

    O Sr. Ford assente em concordância. A mão treme quando ele leva a xícara aos lábios.

    — Silêncio... Acredito que é agora.

    Irene está no rádio num piscar de olhos e aumenta o volume no máximo.

    "Este é o Serviço Interno da BBC. O primeiro-ministro, Sr. Winston Churchill, fará um discurso à nação.

    — Venha e sente-se aqui, Kate.

    — Não, estou bem, obrigada.

    Eles se reúnem em torno do rádio, os rostos tensos de concentração enquanto se esforçam para ouvir cada palavra que o novo primeiro-ministro tem a dizer. Eles o ouvem contar sobre o sucesso da Operação Dínamo, como ele esperava salvar não mais que 30 mil da Força Expedicionária Britânica sitiada e, como que, graças aos esforços da Força Aérea Real, da Marinha Real e de incontáveis pequenos barcos, mais de 300 mil homens foram resgatados de Dunkirk. Ele continua:

    — Guerras não

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