Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

A Endiabrada Nhana
A Endiabrada Nhana
A Endiabrada Nhana
E-book368 páginas5 horas

A Endiabrada Nhana

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Esta obra é baseada em fatos reais. Nos dias antigos da velha Angatuba-SP, um descontrole tomou conta da vida de uma menina, que mesmo reprimida violentamente por seu pai, não conseguia conter seus desejos. Sua sede a fazia sair de casa e mergulhar na floresta que contornava sua residência e, ali entregar-se aos anseios da sua malícia, com vários meninos de sua idade. Os anos foram passando, e a menina, quase moça, trouxe terríveis aflições para sua família, que diante de tantas desavenças despertadas entre os moradores próximos, se envolveu em brutais contendas originadas do ciúme e das disputas entre seus amantes, que foram se acirrando até produzir a maior tragédia da história do bairro dos Leites; tudo nascido da semente Nhana.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de mar. de 2019
A Endiabrada Nhana

Leia mais títulos de Cláudio Liva

Relacionado a A Endiabrada Nhana

Ebooks relacionados

Ficção Geral para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de A Endiabrada Nhana

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    A Endiabrada Nhana - Cláudio Liva

    capa.jpg

    A Endiabrada Nhana

    Cláudio Liva

    Capa: Dijansen Carlos Aureliano, Ulisses José Gomes Quirino

    Editoração: Ulisses José Gomes Quirino

    Revisão: Lúcia Lemos Ribeiro Penatti

    Todas as obras de Cláudio Liva estão disponíveis em sua página no Clube de Autores. Acesse: https://goo.gl/eVRVX2

    https://www.clubedeautores.com.br/

    1. Menina aloprada

    2. Nhana Leme afronta seus pais

    3. Nhana carrega o mal consigo

    4. Nhana, a produtora de tragédias

    5. A família de Nhana foge do Areal

    6. O recomeço no bairro da Capela velha

    7. Nhana volta para Casa

    8. A Fazenda das Corujas invade terras dos Leites

    9. Nhana Leme nos bailes dos Leites

    10. Amantes Inconformados

    11. Jonas irreconhecível

    12. Matias Leite encrenca com Jonas

    13. Dona Gabriela desconsolada por causa da filha

    14. A festa dos Anjos

    Este livro foi escrito com a importante colaboração de meus amigos: José Leme de Jesus e Helena Soares Leite, a quem agradeço muito.

    capítulo um

    Menina aloprada

    A menina surgiu correndo na estrada. Seu vestido de chita, mal costurado e carcomido na barra, esvoaçava-se ao vento. Chegou em sua casa, saltou o limiar da porta de entrada com a mesma agilidade de um menino e foi direto para a cozinha. Chegou perto da mãe com ar de falsa inocência olhando-a ressabiada.

    — Cadê o doce de abóbora mãe? — perguntou Nhana.

    — Onde você estava, cadela? Que cansei de chamar para me ajudar no almoço, e nem me respondeu. — perguntou nhá Júlia, arrumando seu costumeiro lenço na cabeça e olhando a filha de soslaio.

    — Estava brincando pra lá da estrada, mãe!

    — Pra lá da estrada, onde?

    — Pra lá da estrada, uai!

    — Repito pra lá da estrada, onde?

    — Por vários lugares!

    — Não vá me dizer que estava outra vez no mato com sem-vergonhice com os meninos?

    — Não estava com sem-vergonhice e não estava no mato! Fiquei conversando com eles lá na estrada, mas não estava fazendo nada de errado.

    — Se não estava fazendo nada de errado, por que então ficar pra lá da estrada?

    — Porque nos deu vontade de ficar pra lá da estrada, ué!

    — Já falei pra você, pare com esse assanhamento. Já está com onze anos, é quase uma moça. Não convém que ande só com meninos por aí. Vai ficar mal-falada e na boca de todo mundo!

    — Não estou fazendo nada de errado! E quero saber onde está o doce de abóbora. Eu quero comer. A senhora dá só para o Ditinho. Tudo é para Ditinho, tudo!

    — Não é hora de comer doce. O almoço está pronto, almoce e se apronte depressa para ir pra escola.

    — Ah! De novo escola. Todo dia escola. Estou enjoada de escola, escola e escola!

    — Então, não vá à escola pra você ver o que acontece, quando seu pai chegar do serviço. Não vá! Não vá pra você ver!

    — Um dia vou sumir desta casa. Vou pra bem longe, pra fazer só o que eu quero. Não aguento mais essa tal escola. Todo dia escola. Aquela professora ruim, que só sabe judiar da gente com castigo, e nos surrar com a régua. Ontem fez eu ficar ajoelhada em cima de milho. Fazer ela experimentar isso pra ver o quanto é gostoso.

    — Bem feito! Quem manda ser desobediente! Se obedecesse não sofria castigo. Só fica de castigo aluno desobediente.

    — Desobediente! Só porque copiei a conta de Quinzinho.

    — Não copie mais. Trate de aprender a fazer a conta. Vai lá pra aprender. Não presta atenção na aula, fica brincando, depois tem de copiar dos outros. Isso é feio. É coisa de preguiçoso, não sabe?

    — Ah, feio! Tudo o que eu faço a senhora diz que é feio. Feio! Feio! Errado! Errado. Só o Ditinho que presta. Só ele.

    — Mas ele é obediente mesmo! Falo com ele, na hora obedece, falo com você é o mesmo que falar com a porta, faz que nem escuta.

    — Ah, Mãe! Chega de falação. Cadê o doce?

    — Olhe aí! Não estou falando? Cadê a obediência? Não acabei de lhe falar que o almoço está pronto?

    — Que merda mesmo! Eu não quero almoçar, quero comer só o doce.

    — Mas não vai comer agora. Almoce primeiro, daí pode comer o doce, e ande logo que já está na hora de ir para a escola. Vá antes lavar essa cara suja, depois venha almoçar. Ande!

    Nhana saiu pela porta da cozinha e foi até o fundo onde pegou uma gamela, encheu-a de água tirada de uma tina, lavou o rosto e enxugou-o, numa toalha toda encardida, dependurada num prego na parede. Voltou correndo pra dentro da casa, a mãe já a esperava com um pente grande na mão. Penteou-lhe, amarrou-lhe uma fita prendendo os cabelos na nuca e soltou-a.

    — Pronto! Coma rápido e vá pra escola. Ditinho já foi faz tempo.

    Nhana comeu um bocado atrás do outro, enfiou uma colherada de doce de abóbora na boca e saiu arrastando a maleta de cadernos.

    — Não vá ficar inzonando pelo caminho. Vou perguntar pra professora amanhã. Se ela me falar que você não foi na escola, eu conto para seu pai. Você sabe muito bem o que vai lhe acontecer.

    — Se eu não for à escola não precisa perguntar para a professora; o Ditinho enredeiro conta para a senhora. — falou Nhana, saindo disparada para fora de casa.

    No final da tarde, o primeiro a chegar foi Ditinho, o filho mais novo. Entrou correndo, jogou a maleta de cadernos sobre uma mesa velha encostada na parede da sala, e foi para a cozinha.

    — Mãe? Quero doce!

    — Está no armário, coberto com pano. Pegue lá, mas não vá comer tudo, a sua irmã também quer. Cadê ela?

    — Vem vindo aí atrás.

    — Por que você não veio com ela?

    — Ela não me permite. Quando chego perto dela, na hora vira a brigar comigo. Não me aceita junto dela.

    — É coisa de quem só tem malvadeza na cabeça. Não quer você por perto dela, para não contar para nós o que ela está falando.

    Alguns minutos depois Nhana apareceu. Tal qual o irmão, jogou sua maleta sobre a mesa e saiu correndo para fora da casa.

    — Onde você vai, Nhana? Vai se enfiar no mato agora, é? Venha já pra casa! Estou falando, já!

    A menina parou no final do terreiro e voltou-se, com ar de grande contrariedade, estampado no rosto.

    — Eu vou ali só um pouquinho, mãe! já volto.

    — Não vai, não! Vosso pai já está chegando. Volte aqui!

    — Eu já volto. Juro que já volto.

    — Não quero saber de juramentos. Volte aqui agora, sem-vergonha!

    Apesar de toda sua firmeza, quando nhá Júlia deixou a janela e saiu de casa para vê-la, já tinha desaparecido, o que irritou profundamente a senhora.

    — Puta sem-vergonha! Não adiantou nada eu ralhar com ela. É desobediente demais! Se eu contar para o Tião, ela vai tomar uma surra de arrebentar. — resmungou nhá Júlia retornando para dentro de casa.

    Passado um bom tempo, a menina apareceu desenxabida. Ao invés de entrar pela casa, contornou-a indo direto para os fundos, ajudar Ditinho a dar comida aos porcos. De nada valeu sua estratégia, sua mãe estava retirando algumas roupas do varal e, ao vê-la, repreendeu-a fortemente.

    — Desobediente! Não adianta eu falar. Tento corrigir você, mas não me ouve, sem-vergonha!

    A filha fez que não ouviu, e continuou enchendo o cesto com espigas de milho.

    À noite, depois que as crianças dormiram, nhá Júlia, deitada, olhou demoradamente para o marido sob a luz do lampião. Quanta sorte tive ao me casar com esse homem forte e bonito, dez anos mais novo que eu — pensou. Naquela noite amou e deixou-se amar calorosamente por ele. Todavia, passados os idílicos momentos, acordou para a realidade.

    — Não sei mais o que fazer com a Nhana, para conseguir mudar o seu comportamento.

    — Uai! Por que está dizendo isso? O que foi que ela fez desta vez? — perguntou Tião.

    — Não é que fez, é que estou muito preocupada.

    — Preocupada com o quê?

    — Ela está num assanhamento muito grande com os meninos. Os sem-vergonhas também vêm até o portão e ficam assobiando pra ela. A cadela fica desesperada. Sai para um lado, sai para o outro, e quando a gente descobre já sumiu. Somem todos. Não se vê mais ela e nem os meninos. Desaparecem!

    — Desaparecem?

    — É, Tião, somem da vista da gente. E não adianta chamar ela. Para perguntar para onde vão e o que vão fazer.

    — Está desse jeito? Verdade, mulher?

    — Verdade.

    — Está desembestando com os cachorros sem donos por aí, é?

    — Isso mesmo!

    — Fez isso hoje?

    — Fez. Enjoei de chamá-la. Não adiantou nada. Depois de um tempo, apareceu com cara de vaca assustada. Perguntei o que estava fazendo, me respondeu que não estava fazendo nada. Em seguida virou as costas e saiu, como se não estivesse me ouvindo. É uma desavergonhada.

    — Pois olhe aqui, Júlia, se ela voltar a fazer isso outra vez, me conte, mas me conte mesmo! Não esconda! Quero dar uma surra de chicote nela, de fazer ela mijar pelas pernas. Pra ela aprender a obedecer. Se não corrigirmos ela agora, de que jeito vai ficar?

    — Chiii! Tião, não quero nem pensar nisso. Que Deus atalhe esse perigo. Deus nos livre!

    Assim passaram-se os dias no ambiente daquela família.

    Uma tarde, a menina sumiu das vistas da mãe.

    — Cadê ela, Ditinho? — perguntou nhá Júlia.

    — Foi no mato. — respondeu o menino.

    — Você viu ela indo pra lá?

    — Vi.

    — Meu Deus não aguento mais. Vou contar para o Tião. Ela vai se ver com ele. Ah, vai! Vou contar tudo, tim, tim por tim, tim.

    Alguns minutos depois chegou Tião, trazendo uma enxada às costas.

    — Nossa! Hoje foi de queimar o couro. — falou Tião.

    — Ué! Por que? — quis saber nhá Julia.

    — Fomos trabalhar para o compadre, e ele quase nos matou de tanto serviço. Se aproveitou de nós. Quando ele vem trabalhar para a gente, fica enrolando e levando tudo na brincadeira. Quando vamos trabalhar pra ele, puxa o serviço que nem louco. Vou jogar uma água no peito e nas costas para refrescar um pouco.

    — Tião! — chamou sua esposa.

    — O quê?

    — Antes que você vá se lavar, quero que saiba que Nhana sumiu de novo. Convém que vá buscá-la e dê uma surra na sem-vergonha. Já passou do limite. Está demais essa folia de se enfiar no mato com os meninos.

    — Mas você não conseguiu segurá-la?

    — Xinguei! Berrei! Fiz de tudo! Não adiantou. Quando vim para fora, já tinha sumido. Vá atrás e traga ela por diante.

    — Que lado ela foi?

    — Não vi. Você viu, Ditinho, pra que lado sua irmã foi?

    — Vi. Foi pra lá. — respondeu o menino, apontando a direção.

    — Deixe comigo. Vou buscar a sem-vergonha. Vou pregar o relho nessa vagabunda.

    Tião foi até os arriames, puxou dois tentos de couro e saiu com eles nas mãos para fora de casa. Em seguida, encaminhou-se em direção ao mato, resmungando enraivecido.

    — Nhana está nos dando muito trabalho O que será que tem essa menina, para ser tão fogueteira assim? Que tipo vai ficar, quando crescer? — prosseguiu resmungando.

    Nhá Júlia ficou olhando-o pelas costas.

    — Nhana precisa garrar juízo. — resmungou ela.

    — Na escola chamam ela de rapariga. — falou Ditinho.

    — Credo, Ditinho! Não fale uma coisa dessa! — ralhou nhá Júlia.

    — Mas é o apelido dela.

    — Minha nossa! E será que ela sabe disso?

    — Sabe. Pois falam pra ela mesma.

    — Que vergonha, meu Deus! Tem que apanhar mesmo. E bastante para garrar juizo.

    Alguns minutos depois, ouviram berros da menina vindo do mato.

    — Ele a encontrou. — falou nhá Júlia.

    — Eu vou dar milho para os porcos. Não quero ver a surra. — falou Ditinho, desaparecendo de perto da mãe.

    Poucos minutos depois, surgiram na beira do mato, Tião e sua filha. Ele segurando fortemente com a mão esquerda um dos braços da garota, ao mesmo tempo que lhe desferia, seguidas relhadas nas costas.

    A menina tentava sem êxito, se esquivar das relhadas. Seus berros ecoavam na mataria, tal o volume extrapolado de seus gritos. Ela foi arrastada de volta para a casa, sofrendo a mais violenta punição, que até aquele dia tinha sofrido.

    Ao chegar no terreiro, Tião suava copiosamente, devido ao esforço dispendido na surra. Levou-a até junto de nhá Júlia e jogou-a com violência aos pés da esposa gritando.

    — Eu a mato se fizer isso de novo.

    — Estava com algum menino?

    — Estava. — respondeu Tião — Quando ouviram barulho de meus passos, levantaram-se assustados de trás de uma moita. O cachorro sumiu no meio do mato. E esta cadela sem-vergonha, ficou vestindo a roupa. Ainda teve coragem de me pedir para que eu não a surrasse, que não estava fazendo nada de errado. Eu mato ela se a pegar de novo fazendo sem-vergonhice.

    Nhana chorava e gemia, toda enrodilhada aos pés da mãe.

    — Está vendo, sua sem-vergonha? — ralhava nhá Júlia — Não avisei, que a vossa sem-vergonhice iria lhe render muitas dores?

    A menina nem parecia ouvir o que a mãe dizia, chorava sentida. O exacerbado açoite que sofrera, lhe rasgara o vestido nas costas, arrancando parte de sua manga esquerda, e pelo vão aberto, podiam se ver os vergões avermelhados e salientes na pele. Seus gemidos e soluços traduziam o grau de sofrimento, que o látego lhe imputara.

    — Júlia! Mande essa vagabunda calar a boca, senão tem mais! — ameaçou Tião, reaparendo no limiar da porta.

    — Pare, Nhana! Não tem que reclamar agora. Eu cansei de avisar. — ralhou nhá Júlia. — Venha! Vamos entrar. Quero passar salmoura nos vergões em suas costas, para não inflamar.

    — Não! Não quero salmoura! Dói! — gritou desesperada a menina.

    — Ah! Vai passar, sim! Obedeça à vossa mãe! Ou será que a surra não foi suficiente? — falou Tião.

    Nhá Júlia puxou-a violentamente pelo braço, já machucado no açoite, arrancando um grito desusado de dor da filha. E com extrema rudeza, a mãe lhe tomou também o outro braço e a arrastou para dentro de casa.

    Lá de fora, mesmo longe, podiam-se ouvir os berros da menina, ao receber a massagem de sal umedecido nas suas costas.

    Ditinho deu milho aos porcos e às galinhas, catou ovos pelos ninhos espalhados em torno da casa, procurou se ocupar de todos os serviços, que junto com a irmã diariamente realizavam, enquanto ouvia à distância, os gritos de dor da irmã. Naquela tarde se ocupou também de vários serviços, que normalmente não lhes eram atribuídos. Tudo para não assistir ao açoitamento. Embora mais novo, não aceitava o comportamento assanhado e despudorado dela; contudo, também não suportava vê-la apanhar do Pai. Doía-lhe na alma as chibatadas que ela recebia.

    Naquela noite ficou até tarde sem poder dormir. A irmã, na cama ao lado, não parava de gemer de dor. A cada tentativa de mudar sua posição na cama, gritava de dor.

    No dia seguinte, Tião se pôs em pé ao romper da aurora. Nhá Júlia já tinha o café pronto sobre o fogão de lenha.

    — Não vejo jeito de mandar ela para a escola hoje. — falou nhá Júlia.

    — Não? Por que? — quis saber Tião.

    — Está muito machucada. Gemeu a noite inteira.

    — E vai ficar azedando na cama, só por causa disso? Tem que castigar essa sem-vergonha. Mande para a escola, sim!

    — A professora pode querer saber por que ela está tão machucada. Não é bom que os colegas fiquem humilhando ainda mais ela. Afinal das contas é nossa filha!

    — Arranque ela da escola então.

    — Até já pensei nisso, mas é uma judiação. Ficamos sem escola aqui no bairro do Areal a vida inteira. Só veio o ano retrasado. Ela já entrou com nove anos. Agora que está no último ano, não deixar ela terminar!... Dá dó. É melhor que termine, está por pouco.

    — É, essa demora em abrir a escola aqui também atrapalhou muito. Abriu e encheu de alunos mais velhos, a Nhana acabou se misturando com eles e se entortando desse jeito. Fosse você eu tirava ela...

    — Não! Não vou tirar. Quero que termine a escola.

    — Então faça do jeito que você quiser. Já estou indo.

    Na escola, quando a professora perguntou pela Nhana, Ditinho ficou quieto. Tinha orientação da mãe para que falasse que estava doente, mas, preferiu silenciar. Contudo, a professora gritou seu nome.

    — Estou falando com você, Benedito. Está surdo?

    O menino se levantou tremendo. Não queria levar reguadas na cabeça.

    — Não, senhora!

    — Por que sua irmã não veio hoje à escola? — perguntou a Professora.

    — Está doente.

    — O que ela tem?

    — Não sei. Minha mãe falou que ela está doente.

    Os meninos sentados atrás caíram na gargalhada.

    — Do que vocês estão rindo? Do que estão achando graça? — gritou a professora encaminhando-se para perto deles.

    Abaixaram a cabeça e não responderam nada.

    — Você! — apontou para um deles. — Por que estava rindo?

    — Por nada, professora. — respondeu o menino tremendo.

    — Muito bem! Mais uma risada aqui atrás e as minhas varas de marmelo entrarão em ação. Entenderam?

    Todos assentiram com a cabeça, sem proferir palavra.

    No recreio, entretanto, Ditinho foi alvo de todo tipo de chacotas maliciosas, por parte dos meninos que compunham o grupo que havia bagunçado na classe.

    — O tonto do Ditinho disse que Nhana está doente. — falou um deles.

    — Está mesmo. — retrucou Ditinho.

    — Só se estiver machucada, de tanto ficar embaixo de nós. — zombou outro.

    — Neco burrico arrebentou ela! — caçoou um terceiro.

    Todos olharam para o Neco, que ficou sem graça e correu para dentro da escola. Não queria muita conversa sobre o assunto. Tinha levado o maior susto na tarde anterior, quando se deparou com os olhos do Tião, despejando fogo de raiva diante dele e da Nhana. Conseguiu fugir das garras dele mas, até àquela hora, não pudera explicar direito, para sua mãe porque sua camisa estava rasgada.

    Ditinho não sabia para que lado ir. Sentado na calçada da escola, de cabeça baixa, todo vermelho e com muita raiva, suportava calado a zombaria maldosa dos colegas.

    Se eu fosse do tamanho deles eu brigava. — pensou.

    — Parem de amolar Ditinho! Vocês se aproveitam porque ele é criança. Se fosse maior que vocês, estavam todos tremendo de medo. Bando de covardes! — ralhou uma menina, que ali perto ouvia tudo.

    — Ah! Fique quieta você! A Nhana é sem-vergonha mesmo. — respondeu um dos garotos.

    Nisso a professora tocou o sino e todos correram para dentro da sala de aula.

    Ditinho chegou aquela tarde arrasado em casa. Entrou correndo e, como sempre fazia, atirou sua maleta de longe sobre a mesa; só então notou que Nhana estava sentada numa das cadeiras da sala.

    — Mãe? — gritou ele.

    — O quê?

    — Os amigos dela — apontou a irmã — encheram minha cabeça de tanto falar mal dela. Falaram tanto, falaram tanto, que no fim até chorei.

    — É mentira deles. — interferiu Nhana.

    — A senhora está vendo, mãe? — falou Ditinho — Ela nem sabe o que falaram já diz que é mentira.

    — O que eles falaram? — perguntou nhá Júlia.

    — Falaram tantas coisas, tantas besteiras, até que cada um deles tinha pago um tostão pra ela.

    — Mentira! — gritou Nhana.

    — Nhana! O que significa isso? — quis saber sua mãe.

    — Nada, mãe! Nada! Já falei que é mentira! Acho até que é o Ditinho que está inventando, por querer que o Pai me surre de novo.

    — Não venha querer jogar suas cagadas por riba de mim. Que falaram, falaram! O que significa tudo isso que falaram não sei.

    — Mentira, mãe! Está todo mundo contra eu. — retrucou a menina, começando a chorar.

    — Está bem! Não vou contar para o Tião desta vez. Mas se eu souber mais coisas de você, eu conto sim! Chega de esconder falatórios de você, e depois ficar arrependida de não ter contado pra ele. Chega!

    No dia seguinte Nhana foi normalmente para a escola. Os vergões em suas costas, não se tinham desaparecido de todo, mas estavam menores e bem menos doloridos.

    Entrou na classe preparada, para responder a qualquer escárnio que lhe fosse dirigido. Contudo nada disso ocorreu, não se ouviu um pio a respeito; pelo contrário, o que ela estranhou em demasia, foi a forma gélida com que foi tratada pela maioria dos alunos, especialmente seus colegas mais próximos.

    Aquele dia na escola teria transcorrido normal, não fosse a ostensiva discriminação sofrida por ela, por parte das demais alunas. Falante como era, sempre se cercava das outras meninas para conversar, rir ou mofar de uma ou de outra. Mas, naquele dia, notou que bastava se aproximar de um grupo, para vê-las se dispersarem apressadamente, esquivando-se de ficarem próximas dela.

    Vendo que as meninas não queriam conversar com ela, tentou falar com um dos meninos, todavia, recebeu idêntico tratamento, não lhe respondeu e se afastou como se não a tivesse visto. Foi em direção a outro grupo de garotos, no outro lado do pátio e, antes que chegasse, o grupo se desfez, saindo cada um para um lado, deixando-a estática e constrangida no meio do caminho. Voltou para a classe, sentou-se em sua cadeira, e ali ficou profundamente desenxabida.

    Quando a professora, sentada atrás de sua escrivaninha, viu a menina entrar com expressão tão amarrada e ocupar seu lugar na classe em pleno recreio, imaginou que o caso deveria estar ainda pior do que pensava. Vendo que não tinha mais ninguém perto, resolveu aproveitar a oportunidade.

    — Quero falar com você, Nhana.

    — O quê, professora? — perguntou ela, num gemido.

    — Quero que você dê um recado a seu pai.

    — Recado? — perguntou ela, levantando-se assustada.

    — Sim, recado. Diga pra ele vir aqui amanhã cedo sem falta. Quero lhe falar em particular. Entendeu o que eu disse?

    — Entendi.

    — É segredo! Não conte pra ninguém, só para o seu pai, certo?

    — Certo. — respondeu a menina, mais assustada ainda.

    Nisso a mestra abaixou-se, apanhou um pequeno sino embaixo da mesa e balançou-o, emitindo um retinido agudo e alto, chamando de volta os alunos.

    Nhana sabia que o assunto que a professora iria tratar com seu pai, era ela, mas não teve escolha, se não transmitisse o recado, levaria outra surra ainda maior. Chegou em casa e falou para a mãe:

    — A professora pediu para o pai ir lá amanhã cedo. Ela quer falar com ele.

    — O que foi que você fez desta vez, cadela? — quis saber nhá Júlia.

    — Não fiz nada, mãe! Juro! Pergunte para o Ditinho. Nem no recreio eu saí da classe.

    — Não saiu mesmo, mãe. É uma descontrolada para falar, mas hoje ficou o tempo inteiro na classe. Não sei o que aconteceu.

    — Ué! Porque eu quis ficar na classe.

    No outro dia logo cedo, Tião chegou na escola que estava fechada. Foi em direção à porta dos fundos, mas também estava fechada. Deu uma volta em torno da casa, olhou para os lados sem sucesso. Enveredou, para um pequeno mercadinho que ficava perto, quando ouviu gritarem o seu nome:

    — Seo Sebastião!

    Voltou a cabeça naquela direção e viu a professora se aproximando.

    — Vamos até a escola, quero falar com o senhor. — convidou a professora.

    — Sim, senhora. — concordou Tião.

    Entraram, a mestra ocupou seu lugar atrás da mesa, e indicou uma das cadeiras para que ele se sentasse.

    — Seo Sebastião, o assunto que vou lhe falar não é agradável.

    — Não é? — perguntou Tião.

    — Não. Trata-se de um assunto referente à sua filha Nhana.

    — Nhana? O que a desgraçada fez agora? — perguntou Tião agitado.

    — Não sei se fez agora ou quando, só sei que os pais dos alunos me procuraram anteontem à noite e exigiram que eu expulsasse sua filha da escola.

    — Expulsar? Por quê?

    — Disseram que a sua filha deve estar possuída pelo diabo. Que vive procurando os filhos deles, crianças ainda, para fazerem besteiras com ela no mato.

    — Meu Deus do céu! — exclamou Tião, assustado e envergonhado.

    — Disseram que, por causa dela, seus filhos não param mais em casa, não obedecem, não estudam e nem fazem as tarefas da escola. E que a culpada de tudo isso é Nhana.

    — Quer dizer que ela não pode vir mais à escola?

    — Depois de tudo que me disseram e da ameaça deles que, se não expulsasse sua filha, eles não deixariam mais seus filhos virem. Não tive outra alternativa: resolvi avisá-lo para que não mande mais a Nhana para cá, porque não vou deixá-la entrar na classe.

    — Que caipora de menina! Aprontar uma vergonha dessa pra mim! — falou Tião muito irado.

    — Não tenho nada contra a sua filha. Nunca fez nada de errado aqui na escola, estou tomando esta atitude, muito contrariada, mas não me sobrou outra escolha.

    — Não entendi, professora. Que significa atitude? O que é isso?

    — Atitude, quer dizer, estou tomando esta decisão contrariada, mas não tenho outra escolha, senão expulsar Nhana.

    — Ela não porá mais os pés aqui. Fique sossegada. Se está proibida de vir, então aqui não põe os pés

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1