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A Casa na Praia
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E-book433 páginas5 horas

A Casa na Praia

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Sobre este e-book

A CASA NA PRAIA de Joan Fallon

A tocante história de duas mulheres tentando retomar o controle de suas vidas em um Estado autoritário.

Ambientado na Espanha, nos anos seguintes à Guerra Civil, quando o país é governado pelo ditador militar Francisco Franco, este drama social nos conta a história de duas mulheres, amigas desde a infância. Rocio e Inma são diferentes de todas as formas, mesmo assim forjam uma amizade bem próxima. Nós acompanhamos as vidas das duas meninas — uma rica, uma pobre — desde a infância até a idade adulta, conforme elas compartilham felicidade, medos, desapontamentos, corações partidos e traições. Rocio é uma menina leal e tímida, que acaba sendo seduzida por um belo estrangeiro, contanto Inma, que é confiante e manipuladora, é quem a salva da desgraça de ser expulsa da casa da família. Mas, anos depois, quando Inma também engravida, o destino toma um rumo mais sinistro e suas ações subsequentes geram um efeito devastador em Rocio e seu marido.

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento12 de jun. de 2021
ISBN9781071521359
A Casa na Praia
Autor

Joan Fallon

Dr. Joan Fallon, Founder and CEO of Curemark, is considered a visionary scientist who has dedicated her life’s work to championing the health and wellbeing of children worldwide. Curemark is a biopharmaceutical company focused on the development of novel therapies to treat serious diseases for which there are limited treatment options. The company’s pipeline includes a phase III clinical-stage research program for Autism, as well as programs focused on Parkinson’s Disease, schizophrenia, and addiction. Curemark will commence the filing of a Biological Drug Application for the first novel drug for Autism under the FDA Fast Track Program. Fast Track status is a designation given only to investigational new drugs that are intended to treat serious or life-threatening conditions and that have demonstrated the potential to address unmet medical needs. Joan holds over 300 patents worldwide, has written numerous scholarly articles, and lectured extensively across the globe on pediatric developmental problems. A former adjunct assistant professor at Yeshiva University in the Department of Natural Sciences and Mathematics. She holds appointments as a senior advisor to the Henry Crown Fellows at The Aspen Institute, as well as a Distinguished Fellow at the Athena Center for Leadership Studies at Barnard College. She is also a member of the Board of Trustees of Franklin & Marshall College and The Pratt Institute. She currently serves as a board member at the DREAM Charter School in Harlem, the PitCCh In Foundation started by CC and Amber Sabathia, Springboard Enterprises an internationally known venture catalyst that supports women–led growth companies and Vote Run Lead, a bipartisan not-for-profit that encourages women on both sides of the aisle to run for elected office. She served on the ADA Board of Advisors for the building of the new Yankee Stadium and has testified before Congress on the matters of business and patents and the lack of diverse patent holders. Joan is the recipient of numerous awards including being named one of the top 100 Most Intriguing Entrepreneurs of 2020 by Goldman Sachs, 2017 EY Entrepreneur of the Year NY in Healthcare and received the Creative Entrepreneurship Award from The New York Hall of Science in 2018.

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    A Casa na Praia - Joan Fallon

    A CASA

    NA PRAIA

    ESPANHA

    1996

    Rocio sentou-se para assistir à procissão de jovens subindo em silêncio os degraus até o palanque, os homens de ternos escuros e as mulheres, como diversas borboletas coloridas, em seus vestidos longos. Eles curvavam-se e agradeciam ao Reitor ao receberem seus diplomas, conquistados de forma árdua, e lançavam sorrisos furtivos e felizes para o público esperando localizar, em algum lugar naquele mar de rostos, aqueles que conheciam bem.

    Agora era a vez de Olivia. Que linda menina ela havia se tornado, seus cabelos pretos como a noite caíam em suas costas como uma cascata de caracóis soltos. Normalmente ficava com a aparência de um esfregão a tapar todo o seu rosto o que a obrigava a tirar, a todo o tempo, da frente dos olhos com os dedos. Mas esta noite estava penteado para trás com todo o esmero e preso com dois pentes de tartaruga que Rocio havia comprado especialmente para ela. Esta noite o mundo inteiro poderia ver aquele rosto lindo e todas as suas características perfeitas: o nariz com seu formato delicado sem ser grande, os lábios cheios e sorridentes, e os olhos amendoados.

    Ela estava longe demais para as pessoas verem o todo o brilho daqueles olhos, ver como eles cintilavam quando ela ria, como ficavam verdes quando ela se entristecia, como as sutilezas da cor que chamavam — sem a devida importância — de cor de avelã, que mudavam de acordo com seu humor.

    Mas ela sabia.

    Ela conhecia os contornos daquele rosto como se fosse o seu. Um nó se formou em seu peito e parecia pressionar seu coração. Ela puxou um lenço e assoou o nariz. Olivia estava apertando a mão do Reitor, estava de costas para o público, mas Rocio sabia que estaria a sorrir. Olivia sorria com frequência e fácil. Então ela se virou e pareceu olhar diretamente para Rocio, e o sorriso em seus lábios disse tudo.

    — Estou feliz que ela tenha usado azul, combina melhor com ela do que o rosa, não acha?

    A mulher a sua direita se inclinou na direção dela e pegou sua mão com afeição. Rocio concordou com a cabeça. Não conseguia falar. O coração estava abarrotado, mas ela apertou a mão da amiga como resposta.

    Olivia havia avançado ao longo da linha, e agora voltava para seu lugar ao lado dos colegas. Mais tarde eles falariam com ela e conheceriam seus amigos. A moça poderia mostrar seu diploma e conversariam sobre os planos para o futuro. Comeriam e beberiam algo, então Rocio tomaria o rumo para Atocha, para pegar o trem para casa.

    Inma havia sugerido que ela ficasse essa noite em sua casa, mas Rocio queria voltar para casa, para o marido. Na verdade era uma desculpa. Ernesto havia dito para ela ficar. Ele sugeriu que ela tirasse umas pequenas férias, que ficasse algumas noites com Inma para visitar os pontos turísticos, alguns shoppings e voltasse no sábado. Mas ela negou, não queria ficar na casa de Inma. Não se sentiria confortável em estar lá como uma hóspede. Ela falou para ele que preferia voltar para casa, para ficarem juntos. Ele não discutiu. Não poderia. Fora ele quem se negou a ir à formatura. Fora ele quem não quis visitar a casa de Inma. Ele é quem não suportaria ver Olivia receber seu diploma. Portanto, ele não poderia discordar quando ela disse que queria ir direto para casa.

    — Eu queria que você ficasse, mesmo que apenas por uma noite. Amanhã é o aniversário de Olivia, ela fará vinte e seis anos. — Inma sussurrou.

    — Sinto muito, não posso. Mas eu trouxe um presente para ela. Pensei em talvez dar a ela no almoço.

    — Que fofo, ela ficará animada.

    — Sim — Rocio pensou —, ela ficará animada.

    Olivia adorava receber presentes. Mesmo quando era criança, Olivia nunca rasgava o papel de presente para ver o que havia dentro. Não. Sempre sentia o pacote primeiro, depois balançava um pouco, o tempo todo a procura de uma pista acerca do que havia ali antes de, com todo o cuidado do mundo, retirar o papel, sem nunca o rasgar.

    O que quer que fosse; um brinquedo, alguma roupa, doces ou jogos; ela amava. Ela colocaria o presente de lado e jogaria os braços em torno do presenteador, daria um grande abraço e um beijo. Juraria que era exatamente o que queria. Rocio sorriu ante a lembrança. Algo era certo. Ela sempre teria essas memórias.

    — Jose comprou um carro para ela, um Clio. Não conte a ela, é uma surpresa. Sabe como ela ama surpresas. — Inma continuou — É o carro europeu do ano. Foi isso que chamou a atenção de Jose. Isso e o preço claro.

    A mulher olhou na direção do marido com paixão. Ele estava sussurrando algo para um de seus filhos adolescentes. Rocio pensou em como os garotos se pareciam, não eram idênticos, mas muito semelhantes. Porém, nenhum deles lembrava Olivia.

    — É muito generoso da parte dele. — ela respondeu.

    — Bem, ela precisa ser capaz de andar por aí, e Jose não quer que ela dependa demais do rapaz com quem ela está saindo. É bem melhor que ela seja independente. Ela poderá ir até à casa de praia assim que passar no exame. Você sabe, Jose não se interessa mais tanto pela praia hoje em dia; Prefere viajar para o exterior no verão, para algum lugar legal como o norte da França. Não me importo desde que saiamos de Madrid. Não aguento ficar aqui em agosto. Em alguns dias é possível fritar um ovo no chão.

    Rocio respirou bruscamente.

    Se Olivia viajasse sozinha, elas poderiam passar um tempo juntas. Mas como Ernesto reagiria?

    Ela balançou a cabeça para se esquecer da ideia. Melhor se preocupar com isso quando acontecesse. Se acontecesse.

    — O que foi, minha querida?

    — Nada. Estava apenas pensando em algo.

    Sua amiga apertou sua mão outra vez e se virou para falar um instante com o marido. Rocio observava a amiga. Ela estava aproveitando muito a ocasião. Talvez ela se sentisse justiçada pelo sucesso de Olivia, ou talvez apenas estivesse feliz pela jovem mulher.

    Quem poderia dizer?

    Rocio gostava muito de Inma; eram amigas desde muito novas, mas mesmo ela não conseguia compreender o que se passava na mente de Inma. A primeira vez que se viram foi na casa da praia. Muitos anos atrás.

    Um ligeiro suspiro deixou seus lábios.

    — Você está bem, Rocio? — Inma perguntou.

    — Sim, de verdade. Só um pouco emotiva.

    — Claro, claro.

    Ela apertou sua mão mais uma vez.

    Rocio sorriu.

    Inma nem sempre fora tão solícita com a amiga. Ela relembrou o primeiro encontro das duas.

    PARTE 1

    ANTES

    1954

    CAPÍTULO 1

    A noite havia sido quieta até então, mas agora o vento havia começado a soprar do sul. Trazia com ele uma areia vermelha fina, recolhida dos desertos do Saara que agora era depositada aqui no lado deles da montanha.

    O vento soprava areia sob a porta da casa da avó de Rocio, e a depositava no áspero chão de barro, como um tapete rosa. A areia conseguia chegar às rachaduras nas esquadrias das janelas e jazia nas barras de ferro que seu avô havia instalado para protegê-los de pequenos furtos. Fazia os olhos dos cães que guardavam as cabras arder, os forçava a se encolher como bolinhas, o rosto bem protegido pelo restante do pelo. Os gatos eram afugentados para o celeiro.

    A areia também sujava a água do balde que sempre estava ao lado da porta, os grãos flutuavam por breves instantes na superfície e então iam caindo, transformando-se em uma lama alaranjada no fundo. O vento era implacável. Bagunçava a terra arada, tirava do lugar as foices e enxadas encostadas na parede pintada de verde limão, dobrava os galhos das oliveiras e espalhava as flores. Arrancava os gerânios que se assentavam na paz de suas latas pintadas do jardim, carregava os aromas doces das terras longínquas e os sons distantes de música estranha.

    Mas Rocio não se importava com o vento; ela estava acostumada com sua presença constante. Às vezes, como hoje, ele saía do mar e subia a colina até sua aldeia, arrefecendo-a com o seu sopro salgado, outros dias vinha das sierras, fresco e frio, com cheiro de neve. Às vezes, no verão, traria o terral, o vento quente das planícies que ressecava os olhos e a garganta e não a deixava dormir.

    — Rocio. Rocio. — era a avó dela que a chamava.

    A criança segurava o burro por uma corda e caminhava ao seu lado, sussurrando em seu ouvido. Não era necessário conduzi-lo. Era uma segunda natureza para ele agora, mas ela gostava de estar perto do animal e, de vez em quando, acariciava os pelos grosseiros na sua bochecha. Os cascos do burro cavavam um sulco na terra castigada pelo sol enquanto ele refazia, uma e outra vez, o mesmo trajeto: um círculo em torno da roda d'água. Às vezes ela gostava de andar à frente dele, colocando os seus próprios pés pequenos nas pegadas desgastadas. A primeira coisa que o pai dela fazia quando se levantava todas as manhãs era amarrar o burro à barra que operava a roda d'água e, em seguida, chamava Rocio para vir observá-lo.

    O animal estava andando em círculos desde antes do amanhecer, trazendo a água fria e clara e depositando-a nos canais que alimentavam a huerta. O trabalho dela era vigiá-lo e pará-lo quando o trabalho estivesse terminado. Ela sabia que caso não prestasse atenção ao animal, ele continuaria a andar até que caísse de exaustão ou que a água entornasse dos canais e inundasse as plantas. Se acontecesse, o pai dela ficaria zangado.

    — Rocio, já chega por ora. Desamarre-o e o traga aqui. Pepe precisa ir a Benare comprar farinha. — a avó avisou.

    Os dedos pequenos de Rocio lutaram com os nós que seu pai havia dado na corda grossa, mas por fim foi capaz desfazê-los. Encostou o rosto na cabeça do animal e acariciou as orelhas dele. Ele era um burro pequeno e castanho com grandes olhos tristes e pestanas muito longas. Quando nasceu, o pai dela havia dito que não servia para nada, que era demasiado pequeno e fraco, mas acabou por provar que ele estava errado. Ele era pequeno, mas muito forte e, ao contrário do burro que o pai de uma amiga tinha e que era capaz de machucar seu braço a qualquer instante, este era de um temperamento doce. Às vezes gostava de dar um empurrão com o nariz molhado nela, mas nunca a mordeu.

    Ela o chamava de Bueno porque ele era muito bom, mas ela era a única que o chamava assim, para o resto da família ele era burro, o burro.

    — Depressa, Rocio. O Pepe não tem o dia todo.

    Rocio podia ver sua avó na porta, as mãos nos quadris e uma grande mancha de farinha no rosto. O longo avental que cobria seu vestido preto estava marcado por manchas de comida.

    — Já vou, vovó.

    Ela agarrou a vara do burro e levou-o para os fundos da casa, onde seu tio os esperava.

    — Já era hora. Se eu não chegar lá antes das sete, já não conseguirei mais nada e a sua avó me mata.

    Ele jogou um cobertor sobre o flanco animal e levantou dois cestos de modo que caíram um de cada lado do burro e, em seguida, prendeu a alça com firmeza sob a barriga do bicho. Ela o observou levar o burro para fora da aldeia e descer a colina em direção a Benare, os cestos balançando com leveza de um lado para o outro, e as franjas multicoloridas do cobertor balançando em ritmo com a passada do burro. Ela conseguia ouvi-lo cantarolar. Ele caminhava de forma resoluta, mas não se apressava, e ela sabia que ficariam fora por duas ou três horas, pelo menos.

    Ela gostava de seu tio: ele era o mais novo dos filhos de sua avó, apenas dez anos mais velho do que ela, mas já era um homem. Ele era o único que ainda morava com sua avó agora e, desde que o avô dela morrera, seu trabalho era ir para Benare comprar a farinha para a padaria.

    — Rocio. Rocio.

    Desta vez era a mãe dela.

    — Mamãe?

    — Onde está a água, criança? Não há água nos baldes. Depressa.

    — Sim, mamãe.

    Ela seguiu a mãe de volta para a casa e correu para a cozinha. Sua mãe havia colocado os dois baldes vazios junto à porta. Rocio pegou um e caminhou até o poço devagar. Eles compartilhavam o poço com a avó dela e quatro outras famílias que viviam na aldeia, as casas se amontoavam em torno de um pátio empoeirado. Era bom viver ao lado da padaria da avó, porque o cheiro de pão fresco estava sempre ali a pairar, e no inverno Rocio podia encostar-se à parede do forno e aquecer as mãos.

    O poço não era muito profundo e não demorou muito para o balde de ferro atingir o fundo e encher-se água, em seguida, ela encheu seu próprio balde. Ela era muito pequena para carregá-lo quando completo, então ela costumava enchê-lo até a metade e, em seguida, o levava até a tina da cozinha antes de retornar ao poço e repetir tudo.

    — Não se esqueça do balde na porta da frente. — sua mãe a lembrou.

    — Certo, mamãe.

    — Depois entre e coma seu café-da-manhã antes de sairmos.

    — Sim, mamãe.

    Hoje não haveria escola.

    Ninguém ia à escola no verão. Havia muito trabalho a ser feito por causa da colheita. Sua irmã e seus irmãos começavam a trabalhar desde a primeira luz, e não parariam até que ficasse muito escuro para se enxergar, mas Rocio não precisava ajudar com a colheita. Ela ainda era muito jovem. O trabalho dela era cuidar do bebê, mas hoje precisava ir com a mãe à casa da Señora. Iria ajudá-la a fazer a faxina.

    Os braços doíam por carregar os baldes, mas ela não se queixou. Este era o trabalho de Mari, mas agora Mari precisava chegar nos campos às seis e cabia a Rocio encher os baldes agora. O balde pesado bateu em sua perna, derramando água no chão. De vez em quando, ela parava e baixava o balde por um minuto para descansar os braços. Por fim ela chegou à casa, colocou o balde na porta da frente e entrou.

    — Terminou?

    — Sim, mamãe.

    — Bem, então venha e coma um pouco de pão. A sua avó acabou de tirar do forno, ainda está quente.

    A sala era pequena e escura: as paredes espessas impediam o sol quente de verão de penetrar o interior e no inverno mantinha o vento frio longe. Sua mãe estava de pé junto à mesa, servindo leite de cabra para ela. Segurava um bebê adormecido em um dos braços.

    — Aqui, beba isto. — disse a mãe, então, depois de limpar o pó da mesa, cortou uma fatia do pão fresquinho, passou um pouco de azeite sobre ele e o deu à criança.

    — Assim que terminar de comer, lave o rosto e vamos embora.

    Rocio sentou-se à mesa e começou a beber o seu leite. Ainda estava quente, direto das cabras. Às vezes, a mãe a deixava ajudar na ordenha. Seu pai tinha um monte de cabras, mais de sessenta dizia o tio, mas só estavam autorizados a ordenhar uma para si. Um caminhão vinha da cidade buscar o resto do leite e o levava para fazer queijo. Às vezes, quando a avó não estava muito ocupada na padaria, fazia queijo para a família e eles comiam aos domingos depois de terem ido à missa.

    — É uma boa menina, Rocio. Segure o bebê enquanto come seu pão e eu vou me arrumar. Não podemos perder o ônibus. — a mãe acrescentou.

    O bebê era pesado, mas ela o ninava no colo enquanto bebia o leite. Ele era muito fofo. Riu e fez barulhinhos para ela, levantou a mão gordinha para tentar pegar o leite dela.

    — Não, Não, bebê. Este é o meu leite. — disse ela.

    Mas não estava zangada com o pequeno. Ele era tão adorável, quentinho e cheirava a sabonete e ao mel que sua mãe sempre colocava em sua chupeta.

    — Certo, estou pronta. — disse a mãe dela —Vamos.

    Ela tirou o bebê de Rocio e o colocou no cesto. Então ela e Rocio caminharam pela estrada empoeirada até a encruzilhada para esperar pelo ônibus que se balançava e fazia seus barulhos por todo o caminho até a aldeia duas vezes por dia. Sua mãe havia dito que era um longo caminho até a casa da Señora, era muito longe para andar e era por isso que pegavam o ônibus. Rocio nunca havia ido à casa da Señora antes e nunca andara de ônibus, apesar de já tê-lo visto subir as colinas muitas vezes.

    Depois de um tempo Rocio conseguiu vê-lo a distância, um ponto amarelo vindo, devagar, na direção delas. Vinte minutos mais tarde, quando balançou no lugar e parou na frente delas, arrotando vapor pelo motor, o motorista saiu do banco para ajudar a mãe dela a levar o bebê e o cesto para dentro. Ele sorriu para Rocio e se ofereceu para ajudá-la também, mas ela balançou a cabeça e subiu os degraus atrás da mãe. Sua mãe sentou-se em um banco duro de madeira atrás do motorista e colocou o bebê e seu cesto ao lado dela.

    — Venha, Rocio. Sobe aqui ao lado do bebê.

    Ela sentiu o estômago revirar pela animação de ver os outros passageiros entrando no ônibus. Havia uma senhora com alguns porquinhos; Rocio os viu um dia quando ela e sua avó foram visitá-la, e a senhora a deixou alimentá-los com pão velho.

    Uma menina estava atrás da velha senhora. Rocio deixou escapar um gritinho de prazer.

    — Mamãe, aquela é uma amiga da escola. — ela sussurrou.

    Sua mãe olhou para o outro lado e sorriu para a mulher e sua neta.

    Hola, Marta. Indo ao mercado? — ela perguntou.

    Hola, Ana. Sim. — disse a mulher que ergueu um grande cesto repleto de cebolas e tomates, seus produtos a serem vendidos — É o seu caçula? — perguntou acenando para o bebê.

    — Exatamente.

    — Menino?

    — Sim. Chama-se Antônio, como o avô.

    Rocio olhou surpresa para a mãe.

    Ela havia pensado que o nome dele era bebê. Era assim que todos o chamavam em casa.

    — Você tem sorte. São quatro meninos que tem até agora, não são?

    A mãe dela sorriu e balançou a cabeça.

    Rocio pôde ver que ela estava muito orgulhosa da família.

    A idosa continuou:

    — Nada além de meninas na nossa família. Tive seis meninas e nenhuma delas teve um rapaz. Não parece possível, parece?

    A outra mulher atirou o cesto para o banco em frente de Ana e sentou-se ao seu lado, com os joelhos a tremer de cansaço.

    — Esta é a mais velha de Ana Mari. — disse ela, apontando para a menina — Loli.

    A menina olhou tímida.

    — Mamãe, posso me sentar com Loli? — Rocio perguntou.

    — Claro, cariño.

    As duas meninas foram para a parte de trás do ônibus, onde podiam sentar-se juntas e deixar as mulheres conversando. O ônibus se moveu mais rapidamente na descida da colina e logo os passageiros estavam sendo chacoalhados ao longo da estrada principal junto ao mar. Rocio fitava com espanto para as ondas que quebravam com tanta gentileza na areia e para os barcos a vaguear cm barulho para além delas. Ela só havia visto o mar à distância.

    — Mamãe — ela gritou dos fundos do ônibus — Olhe para aqueles pássaros.

    — Eles estão esperando pelos peixes. — explicou Loli — As gaivotas adoram peixe e seguem os barcos de pesca para roubar o que podem.

    Rocio olhou para a amiga com admiração.

    — Já chegamos, Mamãe? — ela perguntou.

    — Logo.

    A mãe dela estava muito séria, sempre ficava assim quando ia trabalhar para Doña Carmen. Ela usava seu melhor vestido, aquele com a estampa de manchas azuis e brancas. A mãe dela só possuía dois vestidos, mas este era o preferido, portanto ela gostava de o ter limpo para os domingos. Hoje não era domingo, mas a mãe o vestia mesmo assim. O que dizia à Rocio que hoje era um dia importante.

    — Por que vamos à casa da Doña Carmen hoje, mamãe?

    — Porque é verão, cariño. E no verão a Doña Carmen vem morar na casa com seus filhos e seu marido. Temos de arrumar a casa para eles.

    — Mas onde é que ela vive o resto do ano?

    — Vivem em Madrid, numa casa grande. O marido dela, Don Adolfo, é um homem muito importante.

    — Então, por que é que eles querem vir aqui no verão?

    — Bem, fica muito quente em Madrid no verão, e eles gostam de passar as férias na casa da praia, que é mais fresca. Vêm aqui todos os verões há muitos anos.

    — E trabalha para eles há muito, muito tempo, não é, mamãe?

    — Sim, querida. Trabalho para Doña Carmen desde os 16 anos.

    Rocio olhou para a mãe.

    Deve ter sido muito tempo atrás.

    O ônibus se preparou para uma parada e, outra vez, o motor suspirou e se engasgou como um velho brônquico que havia acabado de escalar uma montanha alta demais.

    — Esta é a sua parada, señora? — o motorista perguntou.

    — Sim, por favor. — respondeu a mãe e pegou o cesto com o bebê e fez menção de descer — Vamos Rocio, não demore.

    *

    A casa de Doña Carmen ficava entre a estrada principal e o mar. Era uma grande casa branca e larga que se erguia, cômoda, à sombra de três palmeiras altas e uma enorme Ficus Elastica. Rocio olhou para a construção com espanto, nunca havia visto uma casa tão bonita. Até o telhado era de telhas, assim como a igreja em sua aldeia, em vez de ser de bambu como o de sua casa.

    Ela seguiu a mãe pelo gramado e pelo caminho até à porta da frente. A mãe colocou o cesto no chão enquanto tirava uma chave do bolso para destrancar a porta.

    — É você, Anita? — uma voz bruta e masculina gritou.

    Rocio virou-se para ver quem era, mas a mãe parecia saber sem olhar.

    — Olá, Paco. Já está por aqui então.

    — Tenho vindo há algumas semanas já, há muito a fazer no jardim. E esta quem é?

    — Esta é Rocio, a minha filha mais nova. Ela vai me dar uma mãozinha.

    — Aquele é o bebê?

    — Sim.

    A mãe puxou o lençol para trás para que o jardineiro pudesse ver a criança adormecida.

    — Um menino, não é? — Paco grunhiu — Quando é que eles chegam?

    — Na próxima semana, domingo, creio eu.

    — Hmm.

    — Certo. É melhor começarmos. Venha, Rocio.

    Ela destrancou a porta e empurrou-a.

    Um cheiro azedo de mofo se precipitou e as atingiu.

    — Nossa! Que cheiro é este? — Rocio perguntou, tampando o rosto com as mãos.

    — Não é nada, apenas ar estagnado, o lugar está fechado desde o ano passado. A primeira coisa que vamos fazer é abrir todas as janelas e depois varrer o chão.

    Enquanto a mãe falava, começou a dar a volta no cômodo. Foi puxando as persianas pesadas de madeira e abrindo as janelas. Uma brisa fresca, vinda do mar logo encheu a casa, banindo as teias de aranha empoeiradas e limpando o ar viciado. Rocio seguiu a mãe de cômodo em cômodo. Ela havia pisado em uma casa tão grande. Era maior do que a casa da professora, maior do que a Igreja.

    — Quer que eu traga um balde de água, mamãe?

    A mãe dela desatou a rir.

    — Não, criança, não precisa fazer isso nesta casa. Olhe.

    Ela pegou na mão de Rocio e a levou para a cozinha.

    — A água sai de uma torneira aqui. — explicou ela ao ligar uma torneira prateada e observar o fluxo suave de água a cair na pia.   — Não é bom? E veja isto.

    Ela abriu a porta de um armário grande e branco.

    —  Ponha a mão aqui e sinta.

    — Está frio.

    —  É uma geladeira. Podem pôr toda a carne e peixe aqui que eles se mantêm resfriados.

    — Como fazemos com o gelo que o homem do gelo traz?

    — Exatamente.

    Rocio sorriu para a mãe e acenou com a cabeça.

    Havia muito para aprender nesta casa.

    — Só pessoas muito importantes têm geladeiras. — disse a mãe —Não quero que toque nela agora. Certo?

    — Certo, mamãe.

    A mãe dela sentou-se e esticou as pernas para a frente.

    — Bem, temos uma semana para pôr a casa em ordem. Acho que vamos começar por varrer tudo, de cima a baixo. A areia entra em tudo. Então vou tirar todas as cortinas e lavá-las.

    — Vamos vir aqui todos os dias?

    — Sim, todos os dias.

    — Mesmo quando a senhora estiver aqui?

    — Claro. Aí terei que cozinhar para eles e manter a casa limpa. Terei todo o gosto em tê-la aqui para me ajudar, Rocio, porque há sempre muito trabalho a fazer.

    — Porque é que a Señora não limpa a própria casa, mãe? Ela não tem filhos para ajudar?

    A mãe dela sorriu.

    — Sim, ela tem filhos, mas as crianças não ajudam na casa. É por isso que ela me emprega para ajudá-la.

    —  Eu vou poder ver os filhos dela, mamãe?

    — Acho que sim, mas eles são quase todos crescidos agora. Há uma garota que tem a mesma idade que você, seu nome é Inma.

    — Acha que ela será minha amiga?

    — Não sei dizer, talvez.

    — Vou poder brincar com ela?

    — Lembre-se, Rocio, vai estar aqui para me ajudar a cuidar do bebê.

    — Sim, mamãe.

    — Agora vamos. Você fala pelos cotovelos, menina.

    — Está bem, mamãe, o que devo fazer?

    — Enquanto o bebê dorme, pode me ajudar a varrer o chão. Vou mostrar onde fica a vassoura.

    CAPÍTULO 2

    A menina se sentou na beira da cama, balançando as pernas. Ela era uma criança bonita, e as bochechas manchadas de lágrimas e a carranca furiosa não diminuíram esse fato.

    O vestido rosa, com a frente franzida e as mangas bufantes, estava amassado e havia manchas úmidas na saia por causa das lágrimas. Os cabelos eram preto e seus cachos naturais estavam presos com dois grandes laços cor de rosa.

    — Inmaculada, por favor, desça agora.

    Havia uma ênfase no agora que fez a criança reconsiderar por um breve instante, mas ela gritou:

    — Não. Não irei sem Paquita.

    Ela voltou a chorar e balançou as pernas com mais raiva do que nunca. Uma mulher em um vestido cinza simples entrou no quarto e sentou-se na cama ao lado dela; a abraçou e disse baixinho:

    — Por favor, Inma, você não deve falar assim com sua mãe.

    — Quero Paquita. — respondeu a garota e começou a lamentar repetidamente: — Quero Paquita.

    — Bem, ela deve estar em algum lugar. Por que eu não ajudo você a procurá-la? Agora, onde ela poderia estar?

    A criança parou de chorar por alguns minutos e olhou para a babá.

    — Você a levou para o parque ontem?

    Inma balançou a cabeça.

    — E quando você foi às lojas com Dolores?

    — Não, mamãe me fez deixá-la em casa.

    — Bem, e na hora de dormir? Você estava com ela na hora de dormir?

    Ela assentiu.

    — Bem, você a colocou na cama ou em algum outro lugar?

    Inma pulou da cama e correu para o banheiro.

    — Aqui está ela. — ela exclamou exultante. — Sua boneca travessa, onde você esteve? Vamos perder o trem agora.

    Ela levou a infeliz boneca de volta para o quarto e a colocou na mala.

    — Bem, agora está resolvido. — disse Mari Jesus, a babá da criança.

    — Ela foi uma garota malcriada, então eu a coloquei no armário do banheiro para puni-la. — explicou Inma.

    — E então você se esqueceu dela. — acrescentou a mãe, entrando no quarto. — Agora lave o rosto e junte suas coisas. O táxi estará aqui a qualquer momento.

    Era como se o sol tivesse vindo de trás de uma nuvem e banhado o quarto ao sol. O sorriso da criança mudou tudo. Agora ela estava animada e ansiosa para sair de férias, a birra esquecida. A mãe e a babá a observavam com carinho enquanto ela pulava pelos cantos, cantando sozinha.

    Señora, o táxi está aqui. — uma voz chamou as escadas.

    — Obrigada, Dolores. Por favor, peça para ele esperar. Sairemos em um instante. Agora, Mari Jesus, Inmaculada tem tudo o que precisa?

    —Sim, señora. Eu mesma arrumei a mala.

    — Bom, porque ficaremos fora o verão inteiro. Não quero ir para a casa da praia e descobrir que ela não tem roupas suficientes.

    — Há essa mala aqui e outra no corredor.

    — Bem, se precisarmos de mais alguma coisa, você terá que voltar.

    Ela se virou para a filha pequena.

    — Venha menina, devemos sair agora.

    —Sim, mamãe. Papi vem conosco?

    — Hoje não, seu pai vai descer no fim de semana. Ele tem que ficar aqui e trabalhar.

    *

    Inma gostava de ir à casa de praia e gostava ainda mais quando passeavam de trem. A mãe lhe dera um novo livro de colorir para a viagem, que estava sobre a mesinha entre elas, mas ela estava animada demais para desenhar. Estava sentada junto à janela, observando a cidade recuar enquanto o trem seguia para o sul.

    Passaram por ruas cheias de gente,

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