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Propriedade ou pessoa?: os animais na sociedade e na Medicina Veterinária: uma proposta abolicionista
Propriedade ou pessoa?: os animais na sociedade e na Medicina Veterinária: uma proposta abolicionista
Propriedade ou pessoa?: os animais na sociedade e na Medicina Veterinária: uma proposta abolicionista
E-book176 páginas2 horas

Propriedade ou pessoa?: os animais na sociedade e na Medicina Veterinária: uma proposta abolicionista

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Sobre este e-book

Quais as origens da atual compreensão sobre os animais na sociedade ocidental? Por que o sofrimento de alguns animais importa e de outros não? Como a sociedade se posiciona em relação a este tipo de contradição? Como tais questões se refletem na medicina de animais? É na busca dessas respostas que este livro pretende, remontando às origens do pensamento ocidental moderno, o movimento iluminista e as ideias dele derivadas, compreender nossa moral social acerca dos não-humanos, as consequências sobre suas vidas e os desdobramentos na institucionalização da Medicina Veterinária, profissão que melhor incorpora tais concepções, por meio de sua história e Código de ética profissional.
Entendidas as bases morais da nossa relação com as demais espécies deste planeta, especialmente as domesticadas, a obra analisa, através de uma leitura dos principais movimentos de defesa animal e do pensamento abolicionista de Gary Francione, as contradições de nossa moral a respeito dos não-humanos, calcada em duas ideias fundamentais: o sofrimento dos animais importa, mas, entre o interesse humano e o de outras espécies, o interesse humano vale mais.
O principal objetivo dessa discussão é contribuir para um debate ainda incipiente, mas necessário, sobre direitos animais, inclusive para diferenciar de forma mais coerente nossas necessidades reais de tradições retrógradas em relação às outras espécies, atualmente um verdadeiro empecilho na conquista desses direitos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de out. de 2021
ISBN9786525212302
Propriedade ou pessoa?: os animais na sociedade e na Medicina Veterinária: uma proposta abolicionista

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    Propriedade ou pessoa? - Camila Vitte da Rocha

    Capítulo 1 - Ética e Medicina Veterinária

    O objetivo deste capítulo é analisar a consolidação da Medicina Veterinária como profissão, especialmente no Brasil, para compreender as expectativas morais da sociedade em relação às suas práticas e os desdobramentos éticos destas expectativas em relação aos não-humanos.

    É fato conhecido entre os profissionais da área desde o início da formação que a ética profissional se baseia nas necessidades sociais envolvendo o uso de animais não-humanos, principalmente os domesticados, fazendo da supressão destas necessidades o parâmetro moral da relação com eles. Para compreender esta condição, pretende-se investigar neste capítulo o contexto histórico do surgimento da Medicina Veterinária como profissão e os princípios que regem suas práticas no Brasil, expostos no Código de ética.

    Também se fará um levantamento dos principais pontos do Código de ética profissional nos quesitos referentes à relação médico-paciente e das consequências práticas destas posturas para o exercício da profissão, apontando as contradições historicamente estabelecidas não por falta de coerência desta com a moralidade vigente, mas justamente pela coerência com esta moralidade na determinação de seus fundamentos éticos.

    1.1 Breve histórico da profissão

    Desde o início do processo civilizatório, animais não-humanos têm acompanhado e servido aos humanos, seja para alimentação, vestuário, transporte, caça, controle de pragas, companhia etc. e por estas razões tornaram-se objetos de valor econômico, tanto pela função desempenhada para prover a vida humana, como em sinal de riqueza e poder, a exemplo da origem dos zoológicos⁶. Assim, a arte de curar animais, como era entendida a prática da Medicina Veterinária em seus primórdios, acompanha o progresso humano desde as antigas civilizações: registros feitos no Egito em 4000 a.C., no Papiro de Kahoun, já descrevem procedimentos de diagnóstico, prognóstico, sintomas e tratamento de doenças de diversas espécies animais, além dos códigos de Eshn Unna (1900 AC) e Hammurabi (1700 AC), da antiga Babilônia, que já referiam as atribuições dos Médicos de Animais. (Portal CFMV, 2016, p. 01)

    Os primeiros registros destas práticas foram encontrados na Grécia, onde os médicos de animais eram cargos públicos. Em Roma, há tratados não apenas sobre as doenças observadas em não-humanos, mas descrições sobre técnicas e processos de domesticação e confinamento, especialmente no manejo de equinos, de fundamental importância para o império romano e sua estratégia de expansão baseada na guerra e conquista de território.

    Há ainda registro de práticas de vivissecção na Grécia Antiga, por Hipócrates, e por Galeno, em Roma, até a disseminação do uso de animais em pesquisas e ensino, popularizadas por René Descartes a partir do século XVII (Cadore, Gomes, 2014, p. 01).

    Este conhecimento se propagou por toda Europa medieval (médicos de animais eram conhecidos como marechais-ferradores, rossarts, ferries), culminando com a criação da primeira escola de Medicina Veterinária do mundo em Lyon, França, em 1761, na tradição científica e filosófica de René Descartes, precursor do pensamento racionalista e importante influência no entendimento e tratamento dado aos não-humanos pela ciência (Portal CFMV, 2016, p. 01).

    Pode-se supor que a preocupação e o interesse em desenvolver a ciência a respeito das doenças e manejo dos animais não-humanos neste período e que deu origem às primeiras escolas de Medicina Veterinária na França – um dos principais berços do Movimento Iluminista – faça parte das alterações sociais geradas por este movimento, pois as mudanças culturais e intelectuais na Europa do século XVIII foram um desdobramento de suas ideias, período consagrado pela História como o Século das Luzes porque transita da ética teocêntrica⁷ para a ética antropocêntrica por meio de um movimento intelectual⁸ ancorado na racionalidade e na ciência.

    O Iluminismo foi um movimento central para a modernidade e a implementação dos modelos políticos democráticos, pois ao recusar o dogmatismo religioso, contribuiu de forma significativa para a criação do estado laico, baseado nos interesses humanos. Contribuiu, ainda, pela disseminação de valores como liberdade, na aquisição de direitos por grupos marginalizados a partir do século XIX e conquista de direitos humanos fundamentais.

    Entender este contexto e sua relação com a gênese acadêmica da profissão do Médico Veterinário é relevante à medida que participa da consolidação da moral social gerada a partir deste período sobre os não-humanos, bem como os fundamentos éticos que o justificam, inclusive para compreender a institucionalização da Medicina Veterinária no Brasil, cujas primeiras instituições de ensino (Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, 1913 e Escola de Veterinária do Exército, 1914, ambas no Rio de Janeiro) (idem) remetem ao período republicano, resultado da apropriação das ideias liberais nascidas do Iluminismo europeu, preconizando, entre outras premissas, o desenvolvimento científico e a disseminação de suas instituições como ferramenta do desenvolvimento social.

    Porém, a criação destas e de outras instituições de ensino não levaram à regulamentação da profissão do médico veterinário, que ocorreu somente no ano de 1968, quando o cenário político brasileiro vivia o acirramento da ditadura militar pelo decreto do AI-5 (Ato Institucional nº 5) no governo do general Costa e Silva, responsável pelo aniquilamento das organizações democráticas, ao mesmo tempo em que se projetava o Milagre Econômico Brasileiro. Neste cenário, sob comando do economista Delfim Neto e mitigada qualquer oposição sociopolítica pela repressão militar, o regime passou a investir na indústria de base e na diversificação de investimentos, fortalecendo o mercado local, via monopólio estatal, pelo incentivo à importação de insumos e exportação de produtos industrializados (a exemplo das siderúrgicas), gerando hiperinflação e concentração de renda (Acselrad, 2014, p. 18).

    O discurso de integração nacional, inerente ao plano econômico e motivado pelo nacionalismo do regime militar, enfrenta com a economia rural o declínio das exportações de café desde 1965, levando à necessidade de fomentar e integrar nacionalmente esta economia e à criação do SNCR (Sistema Nacional de Crédito Rural) (Idem, p. 21), fomento que demandaria investimento no setor, inclusive de mão-de-obra especializada.

    É a partir deste cenário que a profissão do médico veterinário ganha importância social e há necessidade de regulamentar sua atuação, processo que se concretiza primeiramente na Lei nº 5.517 de 23 de outubro de 1968 e posteriormente no Decreto-lei nº 64.704 de 17 de junho de 1969, durante o período militar⁹. Tais resoluções refletem-se diretamente nas diretrizes estipuladas pelo Ministério da Educação ao ensino da Medicina Veterinária por intermédio das Diretrizes Curriculares Nacionais de 2003, para as quais a formação do médico veterinário deve centrar-se no desenvolvimento dos conteúdos relacionados à zootecnia e produção animal, inspeção de produtos de origem animal, clínica veterinária e Medicina Veterinária preventiva e de saúde pública, incorporando à educação superior as mesmas diretrizes das resoluções de 1968 e 1969 (Resolução CNE/CES, 2003, p. 03).

    Há ainda, já no período democrático, a Resolução nº 609 de 15 de junho de 1994, responsável pela oficialização do símbolo da profissão e a Resolução nº 722, de 16 de agosto de 2002, que é a aprovação do Código de Ética, atualizado, com pequenas alterações, em dezembro de 2016 e analisado de forma mais detalhada no tópico subsequente.

    Nesta perspectiva, pode-se argumentar que a história dos animais domesticados e utilizados pelas civilizações foi a própria história destas sociedades, nas quais foram inseridos de forma passiva, como meios para seu crescimento, como recursos e bens. Por isso a Medicina Veterinária tem importância central para o desenvolvimento humano: primeiro como arte e depois, com a complexificação das relações no mundo do trabalho, como profissão extremamente especializada e tecnificada, capaz de garantir a integridade e a valorização destes bens móveis, ou bens semoventes, conforme definem as teorias de Direito Civil.

    É neste cenário que se cria a identidade profissional do médico veterinário e o norte de sua ética, coroada no juramento profissional pelo compromisso público com o desenvolvimento científico e tecnológico em benefício da saúde única e bem-estar dos animais, promovendo o desenvolvimento sustentável.¹⁰.

    1.2 Ética e Código de ética: pressupostos e principais orientações

    O Código de ética, enquanto documento que regulamenta e protege o exercício de qualquer profissão especializada e socialmente definida nas funções inerentes à sua ética (seu ethos¹¹), tem na deontologia¹² a corrente de estudo determinante de seu comportamento, conforme exposto na Introdução. Esta característica (da ética do dever) norteia as diferentes profissões e pode trazer informações valiosas sobre a moral social a respeito de suas práticas, bem como as formas com que a categoria se posiciona em relação a esta moral.

    No Brasil, a Medicina Veterinária ganhou importância social à medida em que aumentou sua importância econômica, especialmente a partir da expansão das exportações e inserção do país no mercado internacional, ampliando não apenas a atuação do médico veterinário na produção de alimentos, mas também na inspeção sanitária e controle de doenças. Por outro lado, com a expansão do mercado pet, tem-se a sensibilização cada vez maior da sociedade em relação aos animais não-humanos ditos de companhia, cada vez mais aceitos como pessoas da família, exigindo do médico veterinário preparo e especialização para enfrentar essa nova realidade.

    A plasticidade entre as diferentes áreas de atuação do médico veterinário, com atribuições e práticas completamente diversas, associada ao fato de a profissão ter se organizado institucionalmente durante a ditadura militar, impediram que se desenvolvesse qualquer identidade profissional além daquela que justifica sua existência desde os primórdios da civilização: a saúde e o progresso dos animais humanos, tanto que a aprovação de um Código de ética profissional, documento que parte da própria categoria para estabelecer sua inserção social, veio somente noventa anos depois da criação da primeira instituição de ensino superior e trinta e quatro anos após a regulamentação

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