Animais e Fronteiras: Um Estudo sobre as Relações entre Animais Humanos e Não Humanos
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Sobre este e-book
Jornalista premiada, Eveline mostra histórias emocionantes e que provocam uma profunda reflexão. Entre inúmeros episódios, vamos encontrar o controverso amor entre pets e tutores; o cachorro portador de leishmaniose que desencadeou uma mudança de leis no Brasil; os gatos de rua condenados à morte e os humanos que assumem o papel de protegê-los; o jacaré que toma sol no estacionamento de uma grande associação; tucanos que encontraram um lar na caixa d´água de um prédio público; o cenário de extinção em massa de espécies e a luta dos animais silvestres para sobreviverem no espaço urbano.
Amizade, repulsa, medo, fascínio e, principalmente, invisibilidade marcam um convívio cercado de contradições, em que o afeto é determinante para as condições de vida dos animais não humanos. Uma obra essencial para pensar como nos relacionamos com os outros moradores de um planeta em que o ser humano, muitas vezes, julga ser o síndico.
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Animais e Fronteiras - Eveline Teixeira Baptistella
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO E CULTURAS
Em primeiro lugar, dedico estas páginas a Deus, como forma de agradecer pelas prorrogações que venho recebendo.
Também dedico a seis pessoas que me apoiaram e foram, de muitas formas, meus alicerces intelectuais e emocionais: meu marido, Cristiano, meus filhos, Maggie, Molly, Tony e Chico e minha orientadora, Juliana.
Para minha avó, Deolinda, que sempre foi meu modelo, inspiração e que compartilhou comigo o amor pelo conhecimento e pelos animais desde muito cedo.
Por fim, dedico estes escritos a todos os animais.
AGRADECIMENTOS
De muitas formas, vejo este trabalho como uma construção coletiva. Não só pela enorme quantidade de pessoas (humanas e não humanas) que se envolveram nesta trajetória e contribuíram ativamente para enriquecer minha escrita, mas também porque precisei de muita ajuda para vencer limitações que me levaram a pensar que sequer conseguiria cumprir essa proposta.
Agradeço profundamente à minha orientadora de mestrado e doutorado, Juliana Abonizio, por ter aceitado acompanhar este trabalho e pela imensa evolução intelectual que o nosso convívio me proporcionou. Algumas pessoas são divisores de águas nas nossas vidas. Com certeza existe uma Eveline pré e outra pós-Juliana. Muito obrigada.
À doutora Susana Costa, muito obrigada por novas descobertas e por representar o próximo passo na minha trajetória científica.
Ao professor Benedito Diélcio Moreira minha infinita gratidão por ter apoiado e estimulado meu projeto. Indicar o melhor caminho é uma das incumbências que um professor assume, mas só os verdadeiros mestres nos incentivam a percorrer as trilhas mais difíceis em busca daquilo que acreditamos.
Ao professor Paulo Teixeira de Sousa Júnior por todas as oportunidades de aprendizado e desenvolvimento intelectual que o trabalho no Centro de Pesquisas do Pantanal (CPP) me proporcionou. Incluo aí também o meu reconhecimento a toda a equipe do CPP, em especial às professoras Marinêz Isaac e Cátia Nunes, que me repassaram ensinamentos valiosos sobre ecologia.
Agradeço a todos os professores do PPG/Ecco, em especial à professora Maria Thereza Azevedo, pela estrutura que, durante sua gestão na coordenação, o programa proporcionou para que eu pudesse acompanhar as aulas com todo o conforto e, principalmente, pelas incríveis aulas de Poéticas, uma parte inesquecível da minha passagem pelo Ecco. Também deixo aqui meu agradecimento ao professor José Leite, cujas aulas de Epistemes Contemporâneas foram uma colaboração inestimável para meu trabalho.
Para mim, ser professora é uma realização diária, por isso deixo também meu agradecimento à Universidade do Estado de Mato Grosso e a todos os meus alunos, com quem a convivência é um combustível para minha mente.
Aos informantes, entrevistados e colaboradores meu carinho infinito. É muito comovente olhar para trás e ver quantas pessoas se mostraram dispostas a partilhar seu tempo – e muitas vezes suas vidas – para contribuir nesta busca por novos conhecimentos.
Em relação às minhas grandes amigas Elke Kubitz, Márcia Screnci e Fabiula Bento Guth, são muitos os motivos para agradecer, mas fico no principal: vocês fazem minha existência no mundo melhor. Emanuelle Sardinha, Rodrigo Amorim e Creuza Medeiros me deram confiança e abrigo nos momentos em que estive mais solitária na vida, obrigada pela amizade e o carinho.
Agradeço aos meus pais, Alcindo e Telma, pelo investimento nos meus estudos e pelas lições de respeito aos animais. Aos meus outros pais
, Odinei e Divina, obrigada também por apoiarem meu trabalho e por todas as comidas maravilhosas que vocês fazem para mim quando paro para descansar. Ao meu irmão, Jeison, que, mesmo distante, sempre se fez presente. Aos meus avós, Deolinda, Josélia, Maia, Agripino, Antonieta e Aída, minha Tia Yaci e às minhas segundas mães
Janize e Mariza um obrigada por terem ido muito além das suas responsabilidades e assumido, de diferentes formas, os cuidados comigo.
Tais Marie Ueta, Vanessa Beserra, Vanessa Colombo, Patrícia Pazini, Elizeth Lobo, Pamela Andrade, Rayssa Andrade e Maria Luisa Jimenez, irmãs que a vida me deu, muito obrigada por acreditarem no meu trabalho e terem percorrido esse caminho ao meu lado. Nesta trajetória, Paula Galleti foi amiga, irmã, leitora, revisora, editora e ainda psicóloga, muita gratidão.
Aos meus amigos Jone, Jode, Hitch, Hitchcock, Pipo, Lela, Chico e Rani: cada um de vocês me ensinou uma forma de amor e devoção. Se hoje não consigo nem ao menos fazer uma dedicatória pequenina, como manda o figurino, é porque vocês me tornaram capaz de amar e reconhecer o valor do outro em todas as situações.
Minha família cuiabana é extensa, generosa e muito especial. Faltaria espaço para escrever todos os nomes aqui – e não quero cometer injustiças. Ainda assim, como o mundo não é justo, deixo um agradecimento especial aos meus sobrinhos por aceitarem de boa
todos os fins de semana e feriados em que foram trocados por este livro. Graças a todos vocês encontrei forças para continuar sempre, mesmo nas maiores dificuldades.
Aos animais, independentemente de raça, espécie, status, aparência ou qualquer outra categoria delimitadora. É por me relacionar com vocês que eu vivo em um mundo muito diferente e mais interessante do que aquele que a maioria das outras pessoas conhece.
Aos meus filhos Molly e Chico, por terem me mostrado tanto sobre a vida dos animais em tão pouco tempo. Vocês estão no meu coração todos os dias. Ao meu filho, Tony, obrigada por ter decidido que iríamos viver juntos. À minha filha, Maggie, agradeço por todo o amor que partilhamos e por todos os banhos de sol que você perdeu para estar ao meu lado.
Por fim, para meu marido, Cristiano Baptistella – que me aconselhou agradecer apenas a mim mesma porque fui eu que escrevi o trabalho –, qualquer palavra ou manifestação de gratidão seria insuficiente. Só nós dois sabemos de quantas maneiras diferentes sua presença na minha vida permitiu que eu chegasse até aqui. De todos os animais do mundo, você é o meu favorito.
Quem diz que a vida importa menos para os animais do que para nós nunca segurou nas mãos um animal que luta pela vida.
J. M. Coetzee
PREFÁCIO
O presente livro é um claro reflexo da mudança de paradigma em que hoje vivemos. A autora percorre as ruas da cidade (Cuiabá) e vai registando episódios em que humanos e não humanos se cruzam. Os relatos começam com encontros com fauna selvagem que – por não ter mais para onde ir – se adaptou à vida na urbe, passando pelo cão que é cuidado como se de um filho se tratasse e terminando nos gatos que invadem e contaminam
todo um campus universitário.
Se até aqui os estudos ligados às Ciências Sociais debruçavam-se somente sobre a criatura humana e os seus relacionamentos com conspecíficos e instituições, hoje sabe-se que essa é uma abordagem pobre e incompleta. A criatura humana não existe só no mundo, partilhando-o com uma série de outros seres vivos das mais diversas espécies que, de uma maneira ou de outra, influenciam o modo como nos relacionamos com o meio envolvente e até, em última análise, com outros humanos que – por deterem determinadas características – são vistos como inferiores.
Independentemente do contexto em que ocorre, no relacionamento entre humanos e outros animais parece haver uma constante: a relação é sempre desigual. Na minha experiência de praticamente duas décadas de investigação, nunca encontrei um contexto onde tal não se verificasse. O antropocentrismo e o especissismo – duas faces da mesma moeda – parecem ser transversais a toda a espécie humana. Tudo indica que será assim no Brasil, em Portugal, na Guiné-Bissau, nos Estados Unidos (provavelmente a realidade mais estudada), nas grandes urbes, em meio rural e em contextos mais selvagens. O antropocentrismo e o especissismo aparentam não conhecer religião, etnia, latitude ou longitude. No decorrer destas páginas, essa é uma ideia que ficará bem patente.
E por falar em latitudes e longitudes, não deixa de ser curioso que, embora separadas por um oceano e uma boa porção de terra, o trabalho que a autora aqui apresenta tenha tantos pontos convergentes com o meu. O meu interesse no modo incongruente como nos relacionamos com os restantes animais, a cegueira humana em relação à sua animalidade e à proximidade genética com os grandes símios – particularmente, os chimpanzés – e o modo como tudo isso se encontra enraizado em valores antropocêntricos, surgiu numa altura em que trabalhava num muito conhecido hospital veterinário enquanto frequentava o mestrado em Sociologia. A maneira paradoxal como os animais de companhia eram tratados por tutores e staff do hospital era, na minha perspectiva, digno de análise. Desde cães com pedigree, com elevado valor de mercado e indicadores de alto estatuto social, passando por outros tantos que eram resgatados da rua ou de abrigos por supostos protetores, ali se encontrava de tudo. Era frequente ver tutores capazes de gastar grandes quantias de dinheiro para curarem os seus companheiros não humanos, mas não era menos frequente ouvir alguém dizer: é da rua. Pode eutanasiar
.
O staff do hospital não era também imune a essa dualidade. Se, por um lado, os tutores de animais de companhia com pedigree eram levados a pagar contas de grande valor, por outro, os gatos e cães de estatuto inferior eram usados como forma de promover o hospital junto ao público. Todos os meses um pequeno (mas muito publicitado!) número de esterilizações eram feitas a título gratuito – geralmente por médicos estagiários sem qualquer experiência – e o número constante de fotos publicadas nas redes sociais de animais para adoção contavam sempre com dois elementos: o não humano disponível para adoção e o proprietário do hospital. Houve momentos em que fiquei com dúvidas sobre quem é que procurava uma família... Era assim – e muito provavelmente continua a ser – que os responsáveis dessa unidade de saúde animal tornavam o seu negócio mais humanizado, explorando não humanos de companhia de menor estatuto.
Os animais de companhia, e tudo o que gira à sua volta, são pródigos em exemplos dessa natureza. É um fenômeno bem estudado e o livro em causa, tal como a minha experiência pessoal, documenta isso também. Mas o antropocentrismo e o especissismo vieram ao mundo para ficar e exercem influência em muitas outras esferas da nossa vida. A conservação de espécies em risco é, apesar de menos estudado pelas Ciências Sociais, outro ponto merecedor de reflexão. Algures no início deste século, durante o primeiro Congresso de Primatologia que aconteceu em Portugal, lembro-me de ter perguntado ao professor e investigador William McGrew – provavelmente um dos maiores primatólogos do mundo – se o maior entrave à conservação dos grandes primatas não seria o antropocentrismo em que todos nós vivemos mergulhados. A resposta foi surpreendente: somos antropocêntricos, tal como os chimpanzés muito provavelmente serão chimpocêntricos
. Se houvesse uma forma de o testar, tenho a certeza que se descobriria que todas as espécies se veem como superiores às restantes. Não tenho como comprová-lo, mas se partirmos do pressuposto de que tal é verdade, e juntando-lhe o fato de nos considerarmos a única espécie racional, por que é que não tiramos partido dessa racionalidade no sentido de a colocar a serviço da promoção de um planeta onde haja espaço para todas as espécies? Provavelmente, o fato de não nos vermos como uma espécie animal que pertence a um continum biológico e evolutivo possa ser a explicação para tal.
Se estivermos atentos, facilmente verificamos que o nosso relacionamento com as restantes formas de vida está presente num número muito elevado de práticas do cotidiano. Desde os não humanos de companhia que temos em casa e com quem nos cruzamos na rua, passando pelos que – já mortos e esquartejados – aparecem nos nossos pratos e pelos que deram a vida em laboratórios para possibilitarem a criação de fármacos e cosméticos, acabando nos que sobrevivem em habitats mais ou menos destruídos, eles estão em todo o lado.
A mudança de paradigma nas Ciências Sociais de que vos falei no início deste texto está em pleno progresso. A minha esperança, e a dos colegas a que estas matérias se dedicam, é fazer com que ela se materialize num mundo mais plural e mais justo para todas as criaturas vivas no planeta. Este livro, por se tratar de um trabalho acadêmico, mas com capacidade para chegar ao grande público, é claramente um contributo para que tal venha a ser uma realidade em breve.
À sua autora, Eveline, agradeço o convite para escrever este texto e desejo que este seja apenas o primeiro de muitos outros livros, até porque temos todo um Pantanal por descobrir.
Aos leitores, desejo que este livro lhes traga um novo entendimento do mundo em que nasceram e, acima de tudo, que passem a vê-lo como um lugar de paz e de partilha.
Susana Costa
Doutora em Psicologia pela Escola de Ciências Naturais da Universidade de Stirling, pesquisadora do Centro de Administração e Políticas Públicas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e vice-presidente da Associação Portuguesa de Primatologia.
APRESENTAÇÃO
Este livro surgiu a partir de dois episódios envolvendo a relação entre homens e animais. Em dezembro de 2011, o vídeo de uma mulher espancando, em casa, seu cachorro yorkshire atingiu recordes de visualizações nas redes sociais e desencadeou uma onda de indignação no País. Além da forte mobilização na internet e na imprensa, o caso levou 10 mil pessoas a uma manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, e motivou a criação do Movimento Crueldade Nunca Mais.
Poucos meses depois, em julho de 2012, um grupo de neurocientistas de diversas partes do mundo publicou a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não humanos
, um documento que, em linhas gerais, afirma que os animais não humanos têm consciência. Note-se o uso do termo consciência, já que geralmente vemos a palavra senciência ser utilizada para definir as capacidades mentais de bichos.
Como envolvida na causa dos direitos animais, perguntei-me se estaríamos vivendo uma nova era nas relações entre animais humanos e não humanos. A partir daí, meu objetivo tornou-se verificar se novas fronteiras estavam se configurando e quais os papéis da ciência e do cotidiano na consolidação de modelos diferentes de relacionamento com os bichos.
Minha perspectiva era bastante otimista e cheguei mesmo a acreditar que a sociedade brasileira vivia uma revolução no tratamento dos animais não humanos. O percurso desta investigação, no entanto, mostrou um cenário não tão animador, mas nem por isso menos interessante.
A separação entre animais humanos e não humanos surgiu logo nos primeiros passos. Muitas pessoas questionavam a validade de um trabalho que tratasse de animais na esfera cultural. Sugeriam repetidamente que o assunto deveria ser tratado no âmbito da ecologia ou da biologia. Ou seja, os bichos deveriam ser postos na natureza, que era o seu lugar.
Dessa forma, as certezas absolutas do meu projeto inicial foram oscilando dia após dia. Em alguns momentos, as transformações pareciam cristalinas, como a invasão ao Instituto Royal, em outubro de 2013, que provocou um questionamento generalizado sobre a situação dos animais de laboratório. Em outros, o desrespeito e o especismo pareciam tão imutáveis, consolidados – talvez até piores – quanto na época dos meus avós. Visto a quantidade de bois, porcos e aves que continuam a viver de forma cruel e a morrer exclusivamente para servirem de alimento.
Pela natureza interdisciplinar desta pesquisa, mobilizei saberes de diversas áreas do conhecimento – entre elas a Sociologia do Cotidiano e os Estudos Animais – o que me levou a confrontar a cisão entre racionalidades e a desconstruir minhas próprias convicções sobre as verdades absolutas da