Crueldade Indigesta: aspectos ético-jurídicos do confinamento animal
De Raul Tavares
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Crueldade Indigesta - Raul Tavares
1. OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO DIREITO ANIMAL
1.1. O DESENVOLVIMENTO DE UMA MENTALIDADE EM FAVOR DOS ANIMAIS
A preocupação com o sofrimento animal não é um fenômeno tão recente quanto se imagina. Ao longo dos tempos, diversos pensadores se manifestaram em favor de um tratamento mais ético na relação com os animais não humanos. Além disso, várias civilizações da antiguidade já previam normas de caráter ético, jurídico e religioso que proibiam atos de crueldade contra o reino animal. O Livro dos Mortos do Antigo Egito, por exemplo, afirma que após a morte o homem deveria prestar contas perante a divindade pelos pecados cometidos contra a natureza². As Leis de Manu, um dos códigos de ética do hinduísmo, dizem que somente aquele que não causa sofrimento aos outros seres e deseja o bem-estar de todos está capacitado para obter a felicidade eterna³.
No mesmo sentido, o Bhagavad-Gita, um dos livros mais importantes da literatura indiana, define Deus como o pai que dá a semente e que está presente no coração de toda entidade viva, e não apenas no coração do ser humano⁴. No Bhagavad-Gita, o deus Krishna, falando como o ser supremo, declara-se o benquerente de todo ser vivo⁵ e define a compaixão por todas as criaturas como uma qualidade divina⁶. Essa mesma linha de pensamento vai ser acompanhada pelo budismo, que tem sua origem na Índia e se espalhou pela China, Japão e outros países da Ásia⁷. A filosofia budista termina incorporando o princípio hindu da ahinsa, ou não violência, e também insere os animais em uma esfera de consideração moral⁸.
Na Bíblia, o profeta Isaías afirma que quem mata um boi não é diferente de quem tira a vida de um homem⁹. Ao falar sobre os pecados de Sodoma e Gomorra, Isaías repreende veementemente os sacrifícios ritualísticos feitos com animais¹⁰. Em Provérbios, também é dito que o justo olha pela vida de seus animais, enquanto o ímpio lhes é cruel¹¹. Por sua vez, o Evangelho Essênio da Paz, que reúne escritos datados do sec. III d.C. encontrados nos arquivos do Vaticano, descreve um Jesus vegetariano que condenava, com rigor, a morte de animais inocentes¹².
A compaixão pelos animais também é vista entre os pensadores gregos. Para Pitágoras, por exemplo, a alma em essência seria uma só, não havendo diferença alguma entre a alma humana e a alma animal¹³. Pitágoras também era vegetariano e costumava comprar os peixes dos pescadores, antes que tivessem mortos, para que pudesse devolvê-los ao mar¹⁴. É clássica a sua citação nas Metamorfoses de Ovídio, onde ele diz que o consumo de carne não é apropriado para a espécie humana e que somente os animais ferozes usam a carne como alimento¹⁵.
Apesar dessas manifestações de sensibilidade perante o sofrimento animal, prevaleceu no Ocidente a ideia de que os animais existem unicamente para satisfazer a espécie humana. Os preceitos bíblicos de proteção animal nunca foram levados realmente a sério, e as ideias pitagóricas sucumbiram à crença na distinção moral entre o homem e o reino animal, presente de forma majoritária na filosofia grega¹⁶.
Segundo Aristóteles, a existência animal só tinha sentido na sua relação com a existência humana. Da mesma forma que a alma reina sobre o corpo, o homem deveria reinar sobre os escravos, mulheres e animais, e mesmo os animais domésticos, de natureza superior, estariam em melhor condição se estivessem a serviço do homem. Essa relação seria não só justa como também mais vantajosa para o animal, pois seria, para este, um meio de preservação¹⁷. Na visão de Aristóteles, as plantas existem em função dos animais e os animais em função do homem. Se a natureza nada fez em vão, conclui-se que tudo o que tenha sido feito por ela tem o objetivo de satisfazer a espécie humana¹⁸.
Na Idade Média, Tomás de Aquino vai definir categoricamente a visão da Igreja Católica em relação aos animais. Segundo ele, haveria uma ordem hierárquica na natureza, onde o homem, feito à imagem e semelhança de Deus, ocuparia o posto mais elevado em uma escala de perfeição. Igualmente a Aristóteles, Tomás de Aquino acreditava que as plantas foram feitas para servir de alimento para os animais, e os animais de alimento para o homem. Essa relação estaria em perfeita harmonia com o plano divino. Como não há pecado em usar algo para o fim a que se destina, não seria crime algum matar um animal não humano, pois servir de alimento seria inerente à própria natureza do animal¹⁹.
Na história do pensamento ocidental, todavia, nenhum outro filósofo reduziu de forma tão marcante o status moral dos animais quanto René Descartes. Para Descartes, o universo seria exatamente como uma máquina, a exemplo de um relógio, o que se aplicaria tanto ao corpo humano como ao corpo de um animal. A presença da razão e da linguagem, no entanto, manifestações típicas da alma, daria uma dignidade maior à espécie humana²⁰. Na visão de Descartes, os animais não passavam de máquinas biológicas destituídas de qualquer sensibilidade ao prazer e à dor. Além disso, como ele identificava a alma com o pensamento e, na sua perspectiva, os animais não pensavam, ele também acreditava que os animais não tinham alma alguma²¹. Alguns seguidores de Descartes chegavam a dizer que o som emitido por um animal em situação de sofrimento não seria diferente do som emitido pelo rangido de uma máquina²².
Vale lembrar que, no que diz respeito à relação do homem com o mundo animal, a filosofia cartesiana não encontrou nenhuma resistência na Igreja Católica. O fato de Descartes ter considerado a alma uma característica exclusiva do homem foi de fundamental importância para eliminar a ideia de um Deus injusto que permitia o sofrimento de criaturas inocentes e a culpa humana por esse sofrimento²³. Como explica Luc Ferry, o pensamento de Descartes viria a ser o contraponto da filosofia dos direitos dos animais e o modelo perfeito de antropocentrismo que concede todos direitos exclusivamente à espécie humana²⁴. O objetivo de Descartes era fazer do homem o senhor e proprietário da natureza. Para isso, era conveniente que ele descrevesse as outras espécies como seres inertes e desprovidos de qualquer dimensão espiritual. Assim, ele conseguiu instaurar uma divisão absoluta entre o homem e a natureza, abrindo espaço para o exercício ilimitado da dominação humana²⁵.
É somente no final do séc. XVIII que a proteção aos animais irá assumir uma dimensão filosófica de maior consistência. Em 1789, o filósofo e jurista britânico Jeremy Bentham publica o livro Introduction to Principles of Morals and Legislation (Uma introdução aos princípios da moral e da legislação
)²⁶, enfatizando que a essência da consideração moral não estaria na razão, nem na linguagem, mas sim na capacidade de sentir prazer ou dor. Segundo Bentham, chegará o dia em que os animais terão direitos que jamais poderiam ser negados pelo homem. Mesmo considerando a razão ou a linguagem como um fator relevante, um cavalo ou um cão são muito mais racionais e sociáveis que um bebê de um dia ou até mesmo um mês de vida. A questão, no entanto, não é saber se os animais falam ou têm capacidade de raciocinar, mas sim se eles são suscetíveis ao sofrimento²⁷.
Na mesma linha de raciocínio, Jean-Jacques Rousseau dirá que um homem jamais deve fazer mal a outro homem ou a qualquer ser sensível, salvo no caso de legítima defesa. Para ele, o motivo que leva um homem a respeitar seu semelhante não está na razão, mas sim na capacidade de sentir prazer ou dor, que é uma qualidade comum ao homem e aos animais. Assim, os animais deveriam ter ao menos o direito de não serem maltratados inutilmente²⁸. Segundo Rousseau, uma dieta vegetariana também contribuiria para a manutenção de uma paz contínua entre os homens²⁹.
O festejado filósofo alemão Immanuel Kant também vai manifestar uma certa preocupação com os animais, porém apenas de forma indireta. Segundo Kant, a espécie humana teria deveres indiretos em relação aos animais, considerando que a crueldade para com um animal pode levar à insensibilidade para com o próprio homem³⁰. Infelizmente, esses deveres não levam em conta o sofrimento do animal em si, que, da perspectiva do próprio animal, seria irrelevante, mas sim o impacto que esse sofrimento pode causar nas relações humanas.
No início do século XIX, surgirá a primeira sociedade de proteção aos animais no mundo ocidental, a Society for the Preservation of Cruelty to Animals, criada na Inglaterra em 1824, que posteriormente foi assumida pela Rainha Vitória e passou a ser chamada de Royal Society³¹. Em 1892, Henry Salt escreve o livro Animal Rights (Direito dos animais
), sendo a primeira vez na história da filosofia europeia que a expressão direito dos animais passa a ser utilizada como título de um livro³².
As primeiras leis ocidentais de bem-estar animal, todavia, tinham o objetivo apenas de proteger os animais enquanto um objeto de propriedade humana. Isso era demonstrado pelo fato de que o dono geralmente não era responsabilizado pelo ato de crueldade³³. Como explica Bernard Rollin, aquele que matasse um animal cometia um crime não contra o animal, mas sim contra o seu proprietário. Além disso, a responsabilidade civil ia somente até o limite do valor econômico atribuído ao animal³⁴. Na Inglaterra, entretanto, Richard Martin conseguiu aprovar, em 1822, uma lei que protegia os animais domésticos, a partir do argumento de que a propriedade deveria ser protegida inclusive contra a vontade de seu próprio titular. A aprovação desta lei foi um marco histórico na luta pelos direitos dos animais, pois proibiu todo tipo de crueldade contra os animais domésticos, inclusive em face de seu próprio dono³⁵.
No século XX, a possibilidade de extinção de espécies pela interferência humana, bem como o advento das fazendas e dos matadouros industriais, onde milhares de seres sencientes são confinados em condições degradantes, aumentou o desconforto do homem em relação aos maus-tratos cometidos contra os animais. No início da década de setenta, a preocupação com o bem-estar animal começa a ganhar uma autonomia e relevância acadêmica maior, através dos trabalhos de Peter Singer e Tom Regan. É a partir daí que o movimento de defesa dos animais se tornará um dos movimentos sociais mais importantes do mundo contemporâneo.
1.2. O PENSAMENTO DE PETER SINGER
1.2.1. O PRINCÍPIO DA IGUAL CONSIDERAÇÃO DOS INTERESSES
O filósofo australiano e professor da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, Peter Singer, foi um dos primeiros pensadores contemporâneos a fazer uma crítica consistente à exploração institucionalizada de animais³⁶. O seu livro mais conhecido, Animal Liberation (Libertação Animal), publicado na década de setenta e inspirado nos ensinamentos de Jeremy Bentham, tornou-se um verdadeiro clássico.
A essência do pensamento de Singer reside no princípio da igualdade, por ele refinado na ideia de igual consideração dos interesses³⁷. Segundo Singer, a igualdade não é um pré-requisito de fato, mas sim uma exigência de ordem moral. Assim, quando se diz que todos são iguais independentemente de cor, credo, raça etc., não se está afirmando que todo ser humano seja ou deva ser igual³⁸.
Como explica Robert Alexy, não é possível obter uma igualdade absoluta que considere todas as características físicas ou psicológicas do indivíduo. Diferenças relacionadas à saúde, inteligência e beleza podem ser relativizadas, mas nunca eliminadas por inteiro³⁹. Neste contexto, dirá Singer, se fosse necessário justificar o princípio da igualdade em uma igualdade efetiva, ela seria totalmente impossível de ser alcançada e, portanto, seria inexigível⁴⁰.
O que de fato é indispensável, e aqui Singer é bastante categórico, é que todos tenham os seus interesses submetidos a uma mesma consideração moral. Homens, mulheres, índios, negros, brancos etc. são diferentes em muitos aspectos, porém compartilham interesses que são comuns, como o interesse à vida, à integridade física, à liberdade, que devem ser igualmente levados em consideração.
Nesse contexto, para que uma decisão seja verdadeiramente correta do ponto de vista moral, ela deve atribuir o mesmo peso aos interesses semelhantes de todos aqueles que são por ela atingidos⁴¹. As características ou habilidades de um indivíduo ou de um grupo determinado não devem servir de referência para a