Crônicas de Houres
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Sobre este e-book
Dionisio Jacob
Nasci em São Paulo em 1951. Filho de atores pioneiros da televisão, cresci com uma informação literária muito grande, pois meus pais adaptavam clássicos da literatura para a TV. Tive também uma formação na área de artes visuais, com diversas exposições. Como roteirista participei de programas infantis como Castelo Rátimbum entre outros.
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Crônicas de Houres - Dionisio Jacob
(o mito fundador)
Um manco beberrão, repudiado e tratado como um cão em diversas aldeias, foragindo-se numa floresta reparou em sua total solidão, pois não havia nenhum reino próximo. Tudo o que ele trazia consigo era uma sacola com seus instrumentos de carpintaria, profissão que exercia com cada vez menos frequência. Revoltava-o pensar que por todo lugar em que estivera em sua errante existência havia grande corrupção nos meandros dos governos e aqueles altos dignitários, com suas vestes pomposas e falas articuladas, viviam envolvidos em tramoias palacianas. E ele, um simples homem com seus pequenos vícios, tinha que se ver escorraçado sempre. Por isso resolveu passar a viver isolado naquela floresta, longe dos homens e seus desmandos. Fundou ali o seu próprio reino, declarando-se rei da primeira e única dinastia. Batizou o seu império com o nome de Houres, que significava ouro na língua dos antigos.
Como não havia súditos, ele declarou cada pedra, vegetação e animal daquela mata como protegidos seus. Em seguida, subiu ao morro mais alto da região onde encontrou uma gruta que passou a utilizar como moradia e palácio real. Utilizando seus instrumentos de trabalho e troncos envelhecidos torneou um trono e cerziu uma coroa de folhas, símbolo frugal da sua realeza. Com pigmento de flores escreveu HOURES numa tabuleta que fincou na entrada da gruta. Depois foi até o alto daquele barranco admirar seu império. Sua vista alcançava os pontos mais distantes da floresta e as mais altas árvores o reverenciavam em silêncio sem se importar em saber se aquele homem havia enlouquecido ou não.
Seus olhos delirantes, desorbitados, admiravam seus domínios e seus súditos. Conversava com eles. Ordenava: ao vento que soprasse, às nuvens que passassem, ao riacho que murmurejasse, ao sol que nascesse ou morresse no começo ou ao fim do dia, às estrelas que refulgissem, à lua que minguasse ou crescesse. E tudo parecia atender aos seus desejos, ou seus desejos se confundiam com a ordem das coisas, pois havia naquilo tudo uma sintonia perfeita entre o que ele sentia e como as coisas eram, de modo que se fundiram na sua mente alucinada o dentro e o fora. O mundo era ele, ele era o mundo e parecia perfeito que fosse assim. A sua aventura tortuosa pelas estradas da existência havia chegado afinal à harmonia. E tudo se complementava no mais enlouquecido equilíbrio: pedra e gente, coisa e sujeito, som e silêncio, épico e lírico, a multiplicidade de tudo na unidade de quem ele era. Ou julgava ser.
No amplo domínio do seu reino, parecia ter esquecido o passado, ou ao menos lacrado no fundo da memória tantos passos desajustados, tanta dor. Mas ao menos um de seus súditos trazia de volta sua vida pregressa num diálogo úmido: a chuva. Quando ela caía leve, ele dialogava com ela em pensamentos, resmungando, choroso, relembrando coisas antigas. E quando ela rugia em tempestade, fazendo balançar as copas das árvores, roncando trovões ou despejando relâmpagos sobrenaturais sobre a mata, ele se agitava em fúria, cúmplice dos elementos, revoltado contra tudo o que vivera antes de se tornar o rei daquele universo que era dele, que era ele, pois a tempestade vir de dentro da sua mente, ou sua mente absorver sua violência era a mesma coisa: não havia hiato, não havia pontes, nem metáforas. Ele havia se integrado na própria poesia.
E naqueles versos tempestuosos, ao som das trovoadas, ele declamava os acidentes todos, cada detalhe: o fato de ter nascido manco e feioso e como isso afetara sua vida inteira, como o separara, como havia sido alvo de escárnio na ingênua crueldade de toda infância e na aristocracia corporal da juventude. E como assim mesmo se casara com uma bela jovem, mais pobre do que ele e a quem ele podia sustentar graças à sua carpintaria. Relembrava a dor do primeiro e único filho levado da vida ainda em meses, por conta da grande peste que se abateu na sua pequena cidade natal. E da dor profunda que isso lhe causou e à sua mulher, a ponto de se mudarem dali para outro reino distante, muito maior. E ali a beleza da sua esposa causou tanta admiração que um riquíssimo comerciante a seduziu com a promessa de uma vida farta, longe da miséria e, com o auxílio de um magistrado corrupto, fez com que os laços legais do casamento fossem rompidos. E recordava aos gritos, à cada raio que incendiava o lado de fora da gruta, como ela depois passava por ele, trajando ricas roupas, cercada de criadas e não mais o reconhecia. A partir daí, fosse pelo acúmulo de memórias doloridas, fosse pelo aguaceiro que começava a passar, podendo já se ouvir o trinado de algumas aves, ele cessava o relembramento e saía para agradecer a presença do vibrante e festivo arco-íris celebrando a sua realeza, separada de tudo o que viera antes.
E neste estado de contemplação da natureza refrescada não mais recordava de como foi aos poucos se tornando íntimo de tabernas e dos vinhos, de como foi se desleixando a ponto de perder muitos trabalhos, passando a vagar de cidade em cidade. Nem ao menos ocupava a mente tentando entender porque a vida pesava para ele, enquanto para outros era leve e fluente. Pois o que importava essas coisas do mundo fragmentado, agora que vivia no inteiro? Agora que com um sorriso ensandecido observava as cores iridescentes do céu lhe renderem homenagem, pois graças à ele elas aconteciam, entravam nele ou saíam dele, tanto fazia, pois não havia mais o distante, o antípoda, o outro.
De modo que na sua gruta, no alto do mais alto morro, com a floresta a seus pés, o tempo transcorreu não na forma de uma linha reta, com seus passados e futuros vaporosos e na efemeridade de um instante absurdo; antes como se fosse um círculo que desse voltas em si mesmo, sempre trazendo novamente a explosão das flores, o frio intenso, o amarelado das folhas e o calor abrasivo que o chamava ao riacho ou era chamado por ele, como sempre uma coisa só. Descobriu frutas cítricas e com elas fabricou vinho, velho vício incorporado aos novos hábitos, agora não como fuga, mas celebração da sua majestade, dádiva de seus súditos satisfeitos com o seu governo equilibrado e justo, pois os entes que governava não sabiam distinguir a loucura da lucidez, o desatino da ordem, vivendo eles mesmos indiferentes à própria glória, na banalidade dos dias.
E dentro da gruta a arte cresceu como uma dádiva natural: o trono foi refeito com detalhes e entalhes, bem no meio do espaço, confortável como assento, rigoroso como forma, austero, mas belo. Havia igualmente um tonel para o vinho, assim como recipientes para as refeições, pratos e copos de madeira de lei e uma cama afofada com folhas. Também a coroa foi refabricada de um modo mais resistente, cingindo-lhe a fronte com a simetria exigida por toda realeza. Até mesmo um rústico tear para o fabrico de tecidos com fibras vegetais e um forno foram feitos aos poucos, sem pressa, sem prazo, sem que o menor sinal de ansiedade percorresse o entrançado dos nervos, pois havia um centro naquela loucura e ele ordenava tudo ao seu redor.
Um centro frágil, porém, que exigia um rigor absoluto na sua lógica delirante. E que ameaçou espatifar-se na manhã fatídica em que o manco, no alto da sua gruta viu um grupo de umas cinco pessoas esgueirarem-se pela clareira, visivelmente perdidas na floresta desorientadora. Montadas em cavalos exaustos, pareciam elas mesmas terem percorrido todas as distâncias pelo aspecto das roupas em farrapos, das barbas desgrenhadas e o aspecto geral agressivo das expressões. O meio do dia se aproximava e o calor intenso tudo esbranquiçava. Era como se o calor fosse produzido pelo estado de espírito do manco, um eflúvio do seu interior raivoso, revoltado contra aquela ingerência não do mundo externo, mas do seu passado remoto ousando romper o círculo protetor da sua existência atual. De tal modo aqueles homens perturbaram o seu estado de espírito que ele, sem pensar em consequências, protegido pela sensação da própria majestade, passou a atirar pedras na direção dos intrusos, uma delas acertando com violência a testa de um deles que tombou da montaria atordoado e sangrando muito.
Teria sido, talvez, melhor que o suposto rei daquelas matas tivesse simplesmente deixado a caravana maltrapilha passar, até encontrar a saída da floresta. Possívelmente eles nem veriam o manco no alto do morro, perdidos no labirinto vegetal. Agora um deles havia avistado o agressor e o apontava aos demais. Acabaram por se ocultar atrás de alguns troncos para evitar as pedradas e aquele que fora atingido, gritava de raiva, gesticulando na direção do artilheiro com uma espada enferrujada. Outros ameaçaram utilizar as flechas que traziam consigo, mas o que parecia o líder do grupo pelo tamanho e autoridade fez um gesto para que nada fizessem. E com outro indicou que deveriam contornar o morro em silêncio para capturar o agressor pela retaguarda.
E este, ainda no esplêndido e perigoso estado em que se encontrava, julgando-se inatingível por qualquer força externa, dono dos seus domínios, protegido por aqueles a quem protegia, nem articulou outra possibilidade senão a de que havia espantado de vez os invasores. Tampouco podia ele saber que se tratava de um bando de fugitivos de um reino próximo, assaltantes perigosos, assassinos mesmo, que haviam conseguido escapar de uma prisão e procuravam, entrando na mata densa, ocultar-se definitivamente dos soldados que os procuravam em diversas cidades. Acontece que a grande corrupção que dominava todos os reinos ao norte e ao sul daquela floresta, além de contaminar a classe dos dirigentes, príncipes, duques, magistrados, legisladores, envenando a hierarquia em toda escala do maior ao menor, havia produzido uma explosão sem precedentes das margens sociais. Nunca houvera tantos bandidos nas cidades, desde pequenos assaltantes até monstruosos assassinos, justamente o caso daquele grupo que agora, em passos furtivos, contornava o morro.
E lá no alto do morro, o manco observava o sol no alto e no meio do céu, irradiando o seu máximo fulgor, fulgor que era dele também, pois sendo ele o rei daquele mundo, daquela Houres dourada, sentia-se no centro absoluto do seu estado, cada gesto seu concatenado com o menor movimento cósmico. E ele vivia uma espécie de plenitude, como se uma promessa qualquer soprada no ouvido da infância estivesse sendo cumprida. Absorvido no seu solipsismo, na total assertividade do seu poder, não ouviu nem notou a chegada dos bandidos que, após contornarem a gruta, a uma ordem do líder atacaram o manco, atirando-o ao chão com socos e chutes, sem que este pudesse sequer entender o que acontecia, nem como tal violência pudesse ocorrer sem que a atmosfera refletisse sua brutalidade, pois o sol que ele entrevia enquanto era atirado para todo lado, parecia indiferente à sua dor e uma ave irrompeu um canto que mais parecia uma elegia do que um lamento.
Mas nem toda pancadaria sofrida alterou a sensação geral do seu poder e ele gritava contra os agressores para que respeitassem o rei do Houres. O enorme homem que comandava os demais fez um novo gesto enérgico e todos pararam ao mesmo tempo. Pois o bandido queria entender o que o manco falava, que reino era aquele que ele proclamava e quem seria o tal rei daquele reino, achando naquele momento que poderia estar realmente penetrando uma terra com leis, mesmo que corrompidas, o que significaria destacamentos policiais, prisões, tudo aquilo de que eles vinham fugindo. Assim pensando, chacoalhou o manco pelos ombros exigindo que ele explicasse que lugar era Houres e onde estaria o castelo e o rei e toda cidade. Mas recebia como resposta apenas afirmações repetitivas, estereotipadas, sobre o rei e o reino de Houres. Tudo sem nexo, sem indicações precisas, sem localizações geográficas, pois tudo se passava no interior daquele que falava. Até que um dos bandidos chamou o líder apontando para a placa na entrada da gruta, com a inscrição Houres. E foi só aí que o chefe do bando notou a coroa na cabeça do manco. E mais: flagrou seu olhar desorbitado. Então soltou um grande gargalhada no que foi acompanhado por todo o seu grupo.
Em seguida sua atenção foi atraída para a entrada da gruta, para onde arrastou o manco contra a vontade dele, puxando-o sem dó pela nuca. E qual não foi a surpresa de todos aqueles criminosos com a cena que