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Marca da Guerra
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E-book610 páginas6 horas

Marca da Guerra

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Sobre este e-book

Ênarim é uma terra de guerreiros. Um antigo império de humanos e eharim, fortes anões de vidas longas, governado por um par de reis. O império acaba de sair de uma guerra contra seus vizinhos elfos e agora uma seita de bruxas anárquicas atacam o reino por dentro. Mortred, membro da poderosa Ordem Negra e um homem sem memórias de seu passado, enfrentará, com seu pelotão, as bruxas e descobrirá que seu destino é muito maior do que ele espera.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de nov. de 2021
ISBN9781526043863
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    Marca da Guerra - Matheus de Azevedo Souza

    Agradecimentos

    É difícil decidir por onde começar. Poderia demorar-me algumas horas citando autores, situações e pessoas que me incentivaram. Posso com certeza dizer que a parte mais difícil de uma história é terminá-la.

    Não gosto de demorar-me muito em falatórios emotivos intermináveis, mas eles são parte de mim. Agradeço a você por abrir este livro. Espero que ele torne seu dia melhor de alguma maneira.

    Minha frase favorita:

    Não desista. Alguém pode estar inspirando-se em você.

    Dedicado a todos que nunca me deixaram desistir de mim mesmo e de escrever.

    Prólogo - Caçador de Colossos

    Mortred já ouvira falar que seu nome era nome de mulher. Ele achava graça sempre que ouvia isso e frisava que nunca havia conhecido uma mulher chamada Mortred. Era esse o pensamento que o distraía momentaneamente enquanto ele guiava seu corcel de batalha por uma estepe gigantesca, procurando um meio de sobreviver a uma perseguição.

    Naquele dia irritantemente quente, no início de um outono já mais quente do que o comum, ele não sabia como descrever o quanto detestava sua situação. O fato de ele ser impelido para aquilo, por uma influência misteriosa, o irritava. O cavaleiro sentia-se preso, amarrado a um destino que não quisera para si, mas pelo qual ansiava. Lá no fundo, no entanto, ele admitia para si mesmo que gostava da sensação de ser necessário.

    A região em que ele se encontrava era no centro de um reino construído por humanos, chamados de enam, e anões, chamados aharim. Ênarim, como havia sido batizada há muitos séculos, era famosa no mundo por seu clima bem marcado por seu par de reis.

    Lá o verão era escaldante; o inverno era como se o mundo inteiro congelasse; a primavera era cheia de vida, florida e úmida com chuvas que mais pareciam golpes vindos do céu; e o outono era pintado de âmbar e agraciava o reino com temperaturas agradáveis e uma pausa da intensidade da natureza.

    Naquele dia, fazia muito mais calor do que o normal, para um dia de início de outono, e as árvores começavam a mudar de cor. Logo, o clima estaria mais ameno e seria possível até mesmo dormir ao relento sem cobertor.

    Apesar do sol do meio-dia estar escaldante, Mortred usava sua velha capa, tão castigada que sua cor indistinta agora era um cinza pálido e puído, com o capuz cobrindo o rosto até a altura dos olhos, parando um pouco antes de começar a atrapalhar sua visão. O corpo musculoso era extremamente bem disfarçado pelas duas ou três camadas de roupas que ele usava, o que o fazia sentir-se dentro de uma panela posta ao fogo.

    Seu cavalo de guerra, forte e ainda capaz de manter seu cavaleiro por um bom tempo, andava sem armadura já fazia tempos e suava da corrida que foram obrigados a fazer um pouco antes. Era um alazão enorme, com a crina quase selvagem em um tom de castanho mais claro. Um animal belo, forte e digno de um dos cavaleiros mais famosos do centro do reino. Era a única figura de cor diferente do negro que ele trajara em outros tempos.

    As árvores, que começavam a tornar-se secas com o calor, estavam ficando cada vez mais raras naquela região. O oeste do reino era permeado pelos seus famosos Mares de Grama, imensas planícies que seguiam faixas de relva colossais entre uma zona habitada e outra, com algumas cidades grandes pontilhando o antigo território dos enam.

    A grama ainda mantinha um leve e bonito tom de verde, mas o guerreiro já vira grama assim, amarelada no centro e com as bordas das folhas enegrecidas. Grama doente, infectada, para servir de caminho para uma praga maior, de origem mística. Praga esta que, para bem ou para mal, o cavaleiro era imune.

    As plantas naquela região estavam infectadas por uma doença mágica, que se espalhava pelo reino vinda do sul. Vez ou outra, observando de perto e com atenção, veias brilhantes e coloridas se tornavam visíveis, pulsando na superfície de uma ou outra folha de grama ou caule de arbusto.

    Mortred e alguns raros outros mortais conseguiam enxergar as ressonâncias mágicas que pulsavam nas plantas, mas apenas estudiosos, bastante capazes, de magia conseguiriam fazer algo a respeito.

    Ele passara por um baronato em sua viagem, e o nobre local oferecera uma pequena fortuna pelo extermínio de criaturas que compartilhavam a mesma origem da doença mágica. Como Mortred já pretendia resolver o problema, pois viajara até ali com esse propósito, aceitar um pedido do nobre em troca de prata não seria um problema.

    A praga em questão foi batizada de Febre Vermelha. Os doentes faleciam por uma horrenda hemorragia, depois de dias de febre alta. Uma minoria transformava-se em criaturas de pele escura - que matavam outras pessoas, transformando-as nos monstros feitos dos mortos. Lentamente, os mortos-vivos de pele enrijecida e tumores vermelhos iam transformando uma febre numa arma de guerra letal, usada na guerrilha feita contra a coroa.

    Ênarim estava passando por um pós-guerra turbulento, trocando embaixadores e membros das famílias tradicionais como cumprimento do tratado de paz. Enfraquecido econômica e militarmente, o reinado dos anões e dos humanos na região estava ameaçado pelo problema interno de uma organização liderada por uma seita de bruxas poderosas.

    Investigando a região, o cavaleiro pretendia evitar que os doentes se espalhassem, exterminando as bruxas responsáveis, que obrigatoriamente deveriam estar por perto. Sem a influência delas, a doença mágica que atingia as plantas teria seus efeitos terminados, e os afligidos com a Febre Vermelha sobreviveriam com tratamento. Os monstros que sobrassem seriam destruídos por exposição prolongada à luz do sol, logo tornando-se nada mais que cinzas inofensivas. Um objetivo que não atrapalharia o cavaleiro em sua derradeira missão: abater uma bruxa específica que ele sabia estar escondendo-se dele por ali, a responsável por criar a Febre Vermelha.

    Havia outra vila em seu caminho, de acordo com o mapa que adquirira com o barão que o contratara. Agora, fugitivo de uma pequena horda de monstros e algumas bruxas, ele sabia que precisava alcançá-la, antes do sol se pôr, para sobreviver. Ele acreditava obter êxito até então, pois as criaturas nem estavam mais à vista.

    Mortred era um lutador feroz e habilidoso, mas ainda era um único homem apenas. Não era capaz de enfrentar uma turba de monstros sozinho, e as habilidades mágicas das bruxas aumentavam o perigo e o incentivo para que ele recuasse. Uma de suas vantagens mais poderosas era o sol, que enfraquecia brutalmente o grosso das criaturas que o perseguiam.

    Enquanto ele se mantivesse distante de seus inimigos, eles teriam que o perseguir mais devagar, em função das horas de dia. No entanto, era nas trevas que seus inimigos lutavam com força total, e ele não estaria em condições de combater à noite sem uma pausa. Estivera viajando sem parar por dias, estava cansado, quase sem comida e ainda precisava manter sãos e salvos seu cavalo e seu companheiro, que estava escondido em sua mochila.

    Mortred parou seu animal debaixo de uma árvore solitária em meio à estepe colossal, deu-lhe água do cantil e tentou estimar quanto tempo teria de pausa com segurança. A doença não havia alcançado aquele local em que ele havia parado, e era um alívio respirar um ar que não fosse denso e incômodo. O guerreiro descansou um pouco os músculos doloridos e enrijecidos da longa cavalgada. Quando estava sentindo-se melhor, seus olhos captaram a movimentação de algo que pareciam tentáculos debaixo da terra. Aos poucos, ele começou a sentir sua pele formigando, por causa da magia hostil que ele conseguia enxergar arrastando-se na sua direção.

    Era como veias gigantes, mesclando-se umas nas outras, movendo-se na direção dele. Quando tocaram a vegetação saudável, Mortred notou que os amontoados se espalharam, desmanchando-se em uma teia gigante e crescente, contornando-o, afastando-se dele. Com um suspiro frustrado, ele levantou-se, fazendo as marcas mágicas contorcerem-se para aumentar a distância entre elas e seus pés.

    - Vamos, amigão - ele murmurou, puxando o cavalo com delicadeza incomum para um homem com sua vivência. - Aguenta correr mais um pouco?

    Ele selou novamente seu cavalo, colocou-lhe os arreios e montou. Algo em sua mochila se agitou um pouco, mas ele ignorou-o. Lançou um último olhar intenso e frustrado enquanto as veias vermelhas e amarelas começavam a escalar o tronco da árvore que lhe dera sombra.

    - As asas da grande mãe vão nos guiar - ele murmurou, fechando os olhos por um momento, finalizando a oração.

    Afastou-se, deixando Vento-do-Norte guiar o caminho. O guerreiro parecia imerso em pensamentos, concentrado em algo com o olhar distante.

    A perseguição era mais uma questão de tempo do que qualquer outra coisa. Mortred e seu cavalo estavam quase esgotados, e seus perseguidores não sobreviveriam muito tempo sem ter aonde se esconderem do sol. Era uma aposta. Se Mortred escapasse, eles morreriam. Se Mortred falhasse em fugir, teria que lutar contra muitos e provavelmente morreria.

    Mortred sentiu seu cavalo agitar-se e afagou o pescoço do animal. Murmurou, com a voz grave soando baixo:

    - Corra. Seja o vento!

    Unida à sua voz, uma segunda, murmurante, vinda de algum lugar indistinto. Era como um pequeno cantarolar, repetindo as mesmas poucas palavras várias e várias vezes. Mortred mal notava, mas ele e seu cavalo eram um borrão, movendo-se a uma velocidade inconcebível para um animal comum. Para um observador distante; o animal era quase indiscernível, de tão veloz que eram seus movimentos, singrando o mar verde num borrão.

    O animal e Mortred estavam juntos há muito tempo. Vento-do-Norte confiava em seu cavaleiro e, sempre que ouvia algo naquele tom, o alazão fazia seus cascos arrancarem nacos de terra ao correr. Cavalo e cavaleiro, concentrados, olhos na estrada, galope compassado, quase como uma única criatura. O poder de seu companheiro - que estava escondido na mochila -, acelerando mais ainda o cavalo de batalha, era apenas um aditivo vantajoso para o galope treinado repetidas vezes.

    Vento-do-Norte avançou correndo pela relva, abrindo um pouco de distância entre ele e seus perseguidores. Seu cavaleiro lançou um rápido olhar para trás e avistou uma formação de pedra enegrecida subindo no local onde ele estivera momentos antes. Tinha o formato aproximado da ponta de uma lança, com veios pulsantes de um líquido vermelho que ateou fogo à grama quando escorreu ao chão.

    A magia de seu companheiro começou a diminuir, e a velocidade do alazão também. Acompanhando o progresso da doença sobre as plantas, havia uma deformação na terra, com algo movendo-se sob a grama.

    Era a criatura que as bruxas haviam criado para matar o cavaleiro. Havia sido concebida por um experimento hediondo, que ele desmantelou no porão do barão que havia pagado pelo serviço do caçador de monstros. Por azar ou por destino, apenas um exemplar da nova espécie de criatura havia sobrevivido. A coisa quase o alcançara, e Mortred sentia seus olhos sobre ele, queimando sua alma com uma poderosa magia, arranhando-lhe à distância com uma promessa silenciosa de morte. No entanto, era necessário mais do que magias antigas e promessas para abalar alguém como Mortred.

    As plantas ao redor dele morriam rapidamente, à medida que o olhar da criatura o seguia de dentro do casulo de pedra negra, que ela usava para viajar por baixo da terra. Logo, o fogo também havia se apagado. Em seu embate anterior, o caçador de bruxas saíra vivo por pouco, porém numa espécie de empate. Ele não conseguira matar o monstro, mas conseguira feri-lo o bastante para forçá-lo a recuar.

    Ele ergueu uma das mãos e acenou, com ar zombeteiro, antes de assumir as rédeas de seu animal e continuar tocando-o para frente. Avistou o vilarejo ao longe, quase no limite do que sua visão alcançava no horizonte, lembrando-se de murmurar uma pequena oração à Deusa da Floresta, Tallonas:

    - Senhora das matas, que sua sombra me acompanhe, protegendo-me do sol escaldante e da vista dos meus caçadores - ele murmurou, num tom solene.

    Sua sensação de ser observado era constante e incômoda, mas ele manteve seu cavalo correndo, decidido que aquele não seria o dia de sua morte. E, se por ventura fosse, ele deixaria um custo alto às bruxas que tentassem matá-lo.

    Cavalgaram a galope durante um tempo, até que Mortred fez seu cavalo reduzir a velocidade. Foram reduzindo até um ritmo em que Vento-do-Norte conseguiria avançar sem esgotar-se de vez e sem ferir-se. Logo, o murmurar constante da magia que estivera ampliando as capacidades do animal desapareceu por completo.

    Mortred suspirou aliviado assim que avistou o céu tornar-se tingido de púrpura, avassaladoramente belo - que denunciava um pouco mais da magia daquele local; revelando bolsões de luz vermelha e laranja; que flutuavam como balões no ar antes de desaparecerem lentamente, como uma fumaça tóxica. Algo murmurou nervosamente dentro da mochila do cavaleiro.

    - Agora não! - ele gritara, para ser ouvido acima do som do vento, que era uma presença eterna naquela região, fizesse chuva ou sol, em qualquer época do ano.

    Havia uma lenda contada às crianças que, quando os ventos do Mar de Grama cessavam, um dos três deuses da natureza estava presente em Ênarim, tocando a grama com os pés. Mortred já havia provado na pele tantas lendas nos últimos meses que não gostaria de confirmar essa em particular. Apesar de que, talvez ele pudesse pedir a um dos três deuses por uma solução para seus problemas.

    Os murmúrios continuaram, seguidos por dois gemidos incomodados seguidos. A mochila pesava, e ele sabia que ficaria sem comida no próximo dia se não achasse outro meio para cuidar de sua carga. Ele freou seu cavalo, que ofegava, e desceu perto de um conjunto de arbustos. Dali, ele conseguia ver um bosque ao longe. Estava em cima de um morro, e a visão privilegiada era belíssima. O vento movendo a relva constantemente, vez ou outra, realmente o fazia pensar num mar de cor esmeralda. Afastando tais pensamentos da cabeça, ele tirou o cantil e deu o restante da água à montaria, antes de abrir sua mala e dizer:

    - Pode sair. E sem gracinha dessa vez.

    Ele e seu companheiro haviam tido alguns desentendimentos recentes, que culminaram em uma briga feia e em Mortred usando os poderes especiais que detinha para prender a criatura dentro da mochila.

    De dentro do bolso maior de couro velho e curtido, uma criaturinha alada saiu, estendendo as asas e pousando na grama. Tinha o tamanho de um pássaro grande quando estava com as asas coriáceas fechadas. Completamente esticado, com as asas alongando-se, alcançava a estatura de um cão pequeno.

    - Nu kadisu ned da zirka… - grunhiu, num sibilo irritado, piscando os olhos verdes brilhantes e de pupilas verticais, observando seu companheiro com o focinho erguido. Mortred ouvira algo que se traduziria rudemente como a mochila ficando está pequena.

    Era um réptil alado, com a cabeça triangular e espinhos recobrindo suas costas e falava com a voz grave e quase humana; as escamas e o couro negros e opacos. Mortred rosnou:

    - Na minha língua - o guerreiro estava sem paciência. - Ou fala mais alto.

    - Cavaleiro imbecil… - a criaturinha retrucou. - Provocando os mor-zagul daquela forma… Se eles tentarem te atacar do limite da zona contaminada, provável que te peguem desprevenido!

    - Golens - o rapaz corrigiu. Mor-zaghul era o nome que o dragão dissera ser o correto, mas era difícil pronunciar e soava mal em enai, o idioma do reino. - E eles não vão arriscar. Matamos muitos monstros de olho amarelo naquele castelo para que as bruxas arrisquem perder o último por nos subestimarem de novo.

    Os golens não possuíam olhos, e a principal diferença entre eles e a criatura criada para matar Mortred era a presença de um imenso olho amarelo, que ocupava quase todo o crânio.

    O monstro rosnou e cuspiu uma nuvem de gás esverdeada na grama, fazendo-a apodrecer e derreter. Sua língua bifurcada saiu rapidamente, provando o ar, depois ele se deitou sobre a grama que dissolvera.

    - Chame-os do que quiser! É perigoso. Mamãe teria morrido do coração ao ver você fazer aquilo. Ainda mais com aquela coisa no meio deles.

    Mortred deu de ombros, sabendo que o dragão estava certo. Fora imprudente e sabia que poderia ter pagado com a vida.

    - E daí? Só queria dizer isso? Precisamos continuar.

    O lagarto grunhiu, soltando uma risada curta. Flexionando as asas, acrescentou:

    - A bem da verdade, eu queria esticar minhas asas um pouco. Podemos morrer hoje à noite…

    O cavaleiro lançou-lhe um olhar irado.

    - Espero que isso seja uma brincadeira.

    - Claro que não! - o dragão argumentou, sentando-se, lembrando uma miniatura de um respeitável monstro lendário.

    Mortred suspirou e apoiou-se em Vento-do-Norte.

    - Dois minutos. Vou começar a contar agora.

    Depois de um pouco de silêncio contemplativo, o dragão disse:

    - Mortred, acho que você deveria apanhar o diário da mamãe - o tom era quase otimista - e dar uma lida. Pode ser que desta vez dê certo.

    O cavaleiro desviou o olhar. O dragão insistiu:

    - Situação de pressão, estresse, luz natural… ambiente místico. O pior que pode acontecer é você não conseguir ler nada.

    O jovem respirou fundo, ciente de que o dragão era extremamente sábio, apesar de não parecer em alguns momentos. Suas mãos cheias de calos e cicatrizes afastaram o capuz. Seu cabelo era grande, negro como a noite. Seu rosto era duro, com o nariz lembrando o bico de um pássaro, os olhos circundados por olheiras, de um roxo tão profundo que assustava. A barba por fazer era rala e falha, e seu rosto era riscado por uma cicatriz fina, que ligava o canto do olho direito ao queixo na forma de uma meia-lua perfeita.

    Lançou um olhar magoado ao caderno de couro gasto e velho que estava em cima da sela, depois de cair de dentro da mochila quando o dragão saiu. Abriu-o e correu os olhos pelas páginas apenas para satisfazer a vontade da criatura, não sem antes dar uma olhada nervosa na direção de onde sabia que as criaturas viriam.

    - As palavras continuam sumindo da minha mente - ele disse, decepcionado, largando o diário em cima da sela. - Não adianta de nada continuar tentando.

    Mortred esfregou o rosto nas mãos.

    - Tudo bem… podemos tentar de novo o seu feitiço depois que conseguirmos livrar-nos desta situação.

    Os dois haviam experimentado um poderoso encantamento numa de suas caçadas às bruxas, que possivelmente serviria para traduzir um legado inestimável deixado para os dois pela mãe de Mortred.

    O pequeno lagarto alado ergueu a cabeça. Mortred sentiu um arrepio quando a mente do dragão lhe deu uma pontada, chamando sua atenção para a conexão que existia entre eles dois. Seu olhar foi quase que forçado a acompanhar o do dragão.

    - Há uma mulher no bosque - o réptil disse, antes de fungar, desviando totalmente do assunto. - Tem magia no bosque, e eu acho que vi… a nossa amiga de cara feia. E asas. A que estávamos caçando antes de essa situação toda sair do controle.

    - Não saiu do controle… - Mortred argumentou, com ar incomodado.

    O dragão olhou-lhe com tal ímpeto que ele suspirou, sentindo-se cansado e envergonhado. A situação estava tudo, menos sob controle.

    - Provavelmente é um dos colossos - a criatura cogitou -, vai levar algumas horas até ser convocado, mas a oferenda já está sendo feita.

    O rapaz afastou a capa e puxou um par de lâminas longas e curvadas com o metal levemente azulado, de bainhas em sua cintura, escondidas pela capa. Muito tempo atrás, essas eram apenas espadas comuns, e ele já combatia as bruxas com elas antes de se tornarem encantadas. Eram espadas curtas e leves, simples, sem adornos, com uma leve curvatura do meio para o fim da lâmina.

    - Uns cinco minutos andando para nordeste - o pequeno dragão disse, batendo as asas coriáceas e pousando em cima do cavalo depois de flutuar um pouco. As coisas da mochila ajeitaram-se sozinhas, como que guiadas por uma mão invisível, e o objeto fechou-se e amarrou-se sozinho. - Vai até lá?

    Mortred arreganhou os dentes, numa careta de raiva e frustração.

    - Acho que preciso, não é? Não é bem uma opção.

    Seu olhar foi atraído para onde os golens se moviam na estepe escura, aproximando-se, lenta e constantemente. Pontos de luz vermelha começaram a surgir, visíveis, entre as árvores do bosque próximo, nas estepes. As veias malignas pulsaram diante da visão melhorada, revelando-se para o cavaleiro.

    - A bruxa está querendo pegar pesado ― o dragãozinho avisou. - Não que houvesse muitos bosques nessas estepes. Elas acabaram de estragar de vez um deles.

    - Então, nós não temos escolha - o rapaz retrucou amargurado, alongando os braços. - Leve meu cavalo para a aldeia. Vamos lutar com o restante do que temos de luz do dia.

    O lagarto rosnou. Seu ar sarcástico desapareceu diante da fala de seu companheiro.

    - Vamos lutar?

    Mortred deu de ombros. Seu olhar de cor púrpura, o dragão pensou, às vezes era mais feroz do que o de qualquer dragão.

    - Mostrarei a esses monstros - o cavaleiro disse, num tom de voz baixo e irritado - que são eles que devem nos temer. Acelere com o cavalo, Vor Ghal. Temos pressa.

    O pequeno lagarto alado ganiu e mordiscou o cavalo na base do pescoço, deu uma ou outra ordem naquele idioma esquisito, cheio de consoantes e sibilos que havia usado anteriormente. O animal lançou um olhar tristonho ao dono antes de sair correndo, em direção ao vilarejo, obediente aos comandos do pequeno dragão. De modo geral, o dragão e o cavalo davam-se bastante bem.

    O caçador avistou o sol se pôr e sua luz findar sobre a terra. Seus olhos tornaram-se mais aguçados, seu nariz captava melhor o ar poluído com magia negra ao redor dele, e suas lâminas começaram a emitir um leve brilho esverdeado. Ambas vibravam, cantando uma canção suave e discreta que apenas seu portador ouvia: a música da guerra. Mortred apertou suas lâminas, uma contra a outra, com convicção e firmeza.

    - Amparado em asas de guerra - o pequeno monstro ouvia: Nu krasa ga noténi krazi ta niraga -, cortarei o mal com garras e o banirei com fogo! - nu shaku ga kruni ned di zakeshi, nu zakiri ga kruni ned di zakani.

    Embora ele se ouvisse em enai, ele falava na mesma língua do dragão. O idioma original da criatura, que o cavaleiro por algum motivo usava sem perceber e entendia inconscientemente.

    Os metais de suas espadas desfiaram, formando centenas de fios de metal brilhante, retorceram-se uns contra os outros, formando tranças maiores, e essas tranças, por sua vez, formaram lâminas, que se enroscaram numa espada bastarda bela e mortal, feita de metal trançado com o corte distribuído malignamente entorno das intricadas junções do aço que se tornara verde e com aspecto vítreo e opaco.

    - Vamos caçar…? - o cavaleiro convidou, a voz lembrando um rosnado.

    A voz do filhote de dragão, Vor Ghal, respondeu, saída da espada, mas apenas o cavaleiro conseguia ouvir, como se a criatura estivesse falando dentro de sua cabeça, soando acima do lamento musical que a espada entoava:

    - Caçaremos.

    Suas írises púrpuras foram cortadas por uma linha verde que emitia luz própria. O dragão enxergava através de seus olhos, e ambos enxergavam muito melhor juntos do que separados. Seu olhar melhorado varreu a estepe em busca da mulher que Ghal havia dito que estaria ali. Ele encontrou-a, deitada na grama, adormecida, em meio às primeiras árvores do bosque.

    Ele enxergava quase como uma ave de rapina, porém conseguia ver coisas que iam além da existência física. O corpo da garota emanava magia, como que para atrair as criaturas que a matariam e banhariam a terra com seu sangue.

    Aos olhos dele, ora as emanações mágicas lembravam névoa, comportando-se como fumaça, ora pareciam chamas, de cores variadas, dançando no ar ou ao redor de coisas. Em geral, eram azuis ou vermelhas, mas ele recentemente havia começado a perceber nuances diferentes de magia.

    A moça trajava roupas bastante peculiares. Armadura de couro, roupas de tecido resistente, botas de qualidade. Era bonita, cabelo cortado de forma irregular na altura dos ombros. Mortred não identificava nada diferente na aparência dela, exceto pela aura de magia que a cercava.

    - Salte - o dragão disse -, vou te segurar.

    Mortred concentrou-se, deixando sua mente relaxar enquanto o dragão assumia o controle de seus poderes e de seu corpo por um instante.

    Num piscar de olhos, o rapaz viajou até a árvore escolhida pelo dragão, sendo impelido por uma magia desconhecida a mover-se quase como se o tempo e o espaço não importassem. Surgiu já no bosque ao abrir os olhos, com o corpo frio e a sensação de que acabava de sair debaixo d'água num dia gelado, no fim de um salto mágico que ele tratava como uma ferramenta de caça, mas que o deixava ferido por dentro, no corpo e na mente. Seu corpo estava sendo guiado pela espada, com o dragão no comando de seus sentidos e ações enquanto ele estava inconsciente.

    Ghal mantinha-o bem enquanto ele se recuperava do impacto que os saltos místicos tinham em seu corpo. Mortred era capaz de fazer dois deles por dia e procurava usá-los para iniciar suas batalhas ou para escapar delas.

    Ao seu redor, nada se movia. Os golens e bruxas estavam longe, e o colosso adormecido embaixo da terra ainda estava longe de despertar. Quaisquer que fossem os feitiços lançados ali, agiam lentamente.

    De fato, o cavaleiro não conseguia sentir a energia do gigante em lugar nenhum por perto. Em geral, ele conseguiria identificar uma aura como a da moça, mas em tons de vermelho escuro, vibrantes e agitadas, além de proporcionais ao tamanho de uma criatura gigantesca. A melhor analogia que o cavaleiro teria para o que via quando tais gigantes estavam por perto era a de uma cidade inteira em chamas, emanando fumaça escarlate.

    A armadilha para tirá-lo da estrada ficou clara em um breve momento. Se um colosso estava para ser despertado, então a verdadeira oferenda estaria em outro lugar, protegida dele. O ritual para invocar o monstro gigante envolvia etapas complicadas, desenhos feitos com tintas especiais e cânticos longos e demorados que não poderiam ser interrompidos, além do uso de outras técnicas que ele não gostaria de rever.

    - Parece que fomos enganados - o dragão resmungou, sua voz saindo da espada.

    - Você foi - Mortred rebateu. - E agora não poderemos saltar mais.

    Ele olhou ao redor, observando os arbustos. Luzes acendiam-se neles, e o chão vibrava suavemente, o tremor cada vez mais alto.

    - Podemos não nos preocupar com o ritual e lidar com o colosso quando ele vier atrás de nós.

    Mortred tinha a expressão franzida e tensa.

    - Não. Pessoas vão morrer assim.

    O dragão rosnou.

    - Pessoas vão morrer de qualquer jeito. Desta forma, pelo menos conseguiremos derrubar o colosso.

    - Assumindo que não sejamos mortos durante esse plano - o cavaleiro rebateu, amargo. - Que seja. Não é como se tivéssemos muitas opções.

    O dragão direcionou seu olhar para a moça que estava deitada na terra.

    - Há algo esquisito nela. E, se ela não é a oferenda, o que diabos ela faz aqui? - o dragão disse com a voz saindo da espada.

    Seu olhar percorreu o rosto da moça, compartilhando internamente a confusão do dragão. Era uma jovem, com a idade bem próxima da dele. Lentamente, as emanações mágicas que ele enxergava começaram a manchar-se de dourado e branco. Ele soltou um suspiro e olhou para o céu, para onde as ondas de vapor brilhante se deslocavam.

    - Talvez ela seja como nós. Vou levá-la comigo. Qualquer que seja o truque, vamos descobrir mais cedo ou mais tarde.

    O dragão concordou com um grunhido. Mortred sentiu sua espada vibrar e ele desviou-se de um golpe mesmo sem vê-lo. Seu corpo impeliu-se para frente, desviando de uma lança de pedra que atravessou algumas árvores antes de bater estrondosamente contra o chão. Era uma novidade recente dos golens, utilizar armas de pedra, mas não o pegariam desprevenido.

    Algo grunhira do mato, avançando lentamente, mancando de uma das pernas. Era um dos golens que o rapaz já estava bastante habituado a enfrentar, os temíveis mor-zagul, mortos-vivos de pedra e carne, nos quais a minoria dos que morriam pela Febre Vermelha se transformava. Postando-se entre a moça e a criatura, Mortred disse:

    - Vocês têm muita coragem, de vir me emboscar de um em um - lentamente, escamas negras começavam a surgir ao redor de seus olhos.

    Ele conseguia enxergar a emanação mágica da criatura e de outras distantes. Sempre condizentes com as bruxas que as controlavam à distância, fluíam dos tumores pulsantes que eram sempre escarlates, da cor do sangue. Contando os inimigos que se aproximavam, o caçador de monstros preparou-se.

    A criatura lançou outra pedra sobre ele antes de avançar, movendo-se com uma precisão e velocidade incompatíveis com os tumores de pedra que a deformavam. Os mor-zagul eram grotescas massas de carne e pedra retorcidas, com tumores brilhantes e vermelhos pulsando em seus corpos, que pareciam estar em algum ponto entre o pedregulho e a carne de que foram feitos. Os tumores às vezes piscavam, emitindo luz quando as criaturas estavam interagindo entre si ou com suas mestras.

    Em alguns, faltavam-lhe pedaços de pele, nos braços e nas pernas, ou massas inteiras de carne, como nos rostos deformados e sem vida. A face era torcida para dentro, formando um simples rombo na carne parcialmente petrificada, de uma escuridão sobrenatural.

    Mortred desviou-se de um maciço punho de pedra que arrebentou violentamente a casca de uma árvore atrás dele, expondo o cerne do tronco. O cavaleiro ergueu a espada trançada e rebateu outro golpe vindo da criatura. Ele avançou, golpeando cuidadosamente, forçando o golem a afastar-se da moça adormecida.

    A voz do dragão soou, através da espada:

    - Destrua-o e saia logo daí. A magia delas parou de se mover.

    Dando uma olhada rápida na direção de onde os veios mágicos se moviam pela grama, era verdade, haviam estagnado como o dragão dissera. Vor Ghal temia que o monstro de olho amarelo viesse atacá-los ali. Separados, os dois não teriam muitas chances de enfrentar a criatura.

    As pálpebras do rapaz fecharam-se na vertical, com uma membrana reptiliana cobrindo seus olhos. Ele mal sentia essas reações, manifestações da concentração do dragão enquanto lutavam. Quanto mais concentrados os dois estivessem no mesmo momento e na mesma coisa, mais difícil era diferenciar quem era quem.

    - Tudo parece muito esquisito - os dois hesitaram por um momento.

    Um dos tumores do golem emitiu uma estranha luz azulada, incomum. Os tumores de pedra costumavam ficar num dos ombros, nas pernas e nas costas, fazendo dos golens criaturas corcundas.

    A bruxa encarava-o através de seu lacaio, usando a pulsação azul para perceber o ambiente, de maneira similar à que o dragão fazia com o cavaleiro. A voz que saiu da criatura arrepiou o cavaleiro pela ira e pela familiaridade.

    - Pequeno dragão - a voz da bruxa já era familiar ao guerreiro. - Você parece estar com um problema maior do que consegue abocanhar.

    A bruxa era o alvo do cavaleiro e do dragão. A administradora da doença mágica que enfraquecia a natureza e permitia à Febre Vermelha espalhar-se. Meiliak Sangue-Ardente, uma das bruxas da cúpula de comando da organização que causava a guerra civil.

    - Não é como se você estivesse preocupada - ele retrucou.

    Nas mãos de Mortred, a lâmina de caçar monstros vibrava, como se a arma quisesse atacar por vontade própria.

    - Não estou aqui para lutar hoje - a bruxa disse, com a voz ecoando através de seu monstro.

    Mortred avançou, os olhos e a espada brilhando, em púrpura e verde.

    - Que pena - ele sibilou, erguendo a espada mágica e atacando. - Eu sempre estou.

    A luz azul apagou-se, e o golem ergueu a cabeça deformada, algo que outrora já fora um rosto humano, e rugiu. Um brilho vermelho saiu do orifício de trevas sobrenaturais. Outros urros responderam ao longe, nas árvores. Mais luzes vermelhas piscando na noite.

    - Ela não está entre as bruxas que estão nos perseguindo? - o dragão indagou, curioso, enquanto o cavaleiro lutava. - Meiliak é poderosa demais para não participar desta caçada.

    Mortred avançou, estendendo a espada como se ela fizesse parte dele. A estocada abriu o crânio ao meio, derramando um líquido negro, e uma massa pútrida e fétida que poderia ter sido cérebro em algum momento. O segundo movimento foi um corte lateral, abrindo a massa avermelhada de cristal que movia a criatura. Mortred recuou um passo e brandiu a espada num arco amplo, enquanto se abaixava permitindo que Ghal enviasse seu poder para ele.

    O giro foi embebido magicamente com a velocidade e a força do dragão, fazendo um círculo perfeito na terra, cauterizando a grama e cortando tanto o golem quanto algumas árvores atrás dele ao meio. Troncos desabaram para trás, derrubando outras árvores.

    - Meiliak não estava entre as bruxas que nos perseguiam - o caçador de monstros comentou. - Então, o que ela faz aqui? Ela seria uma garantia de nossa derrota nesta noite.

    Focos de luz vermelha surgiram na floresta, mais longe. O olfato do cavaleiro, apurado pelos poderes do dragão, captou o cheiro característico de queimado que acompanhava o monstro de olho amarelo.

    - Mais inimigos do que eu gostaria de contar - o dragão resmungou. - Pegue a garota. Podemos debater sobre nossos perseguidores depois.

    - Sem Meiliak aqui, não estou mais tão descrente de uma vitória - ele rebateu, encarando as criaturas que se aproximavam à distância.

    Mortred deu de ombros e começou a andar rápido na direção da vila. Seus olhos brilharam em verde.

    - Puxe-me - o guerreiro pediu, cedendo ao pedido urgente do dragão de recuar.

    Antes de pegar a garota nos braços, ele separou sua espada encantada, numa explosão de luz branca que liberou partículas brilhantes, como faíscas, ao redor dele. O golem cortado em dois moveu-se uma vez, e o cavaleiro afundou a bota em cima de um tumor de pedra que ainda pulsava fracamente com sua luz vermelha.

    O rapaz saiu de perto do cadáver, a mente concentrada em dúvidas a respeito da bruxa misteriosa que ele caçava já fazia meses. Ele guardou as espadas nas bainhas, movendo a capa para escondê-las novamente. Pegou a garota nos braços e imediatamente se sentiu estranho, como se alguém o observasse muito de perto.

    - Segure-se.

    O cavaleiro engoliu em seco, fechando os olhos. Por um momento, Mortred sentiu como se caísse. Abriu os olhos, esperando o poder do dragão acontecer.

    Então, seus olhos arderam, e o mundo tornou-se um borrão de corres enquanto ele se movia velozmente de uma maneira sobrenatural até onde o dragão estava. O inverso do salto místico, no qual o cavaleiro ou o dragão se transportavam um até o outro. Mortred não sabia a qual a distância ele conseguiria ser puxado pelo dragão, mas os dois já haviam feito isso por muitos

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