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OS TONS DA CURA
OS TONS DA CURA
OS TONS DA CURA
E-book565 páginas9 horas

OS TONS DA CURA

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Sobre este e-book

Nas sombras da contristação, verdadeiramente afortunado é aquele que consegue ver a luz diante de si. Eu tive câncer e sobrevivi. A tormenta da dor causada pela doença pode ofuscar a fé na Divina Providência, os números são alarmantes, segundo a Organização Mundial da Saúde, a OMS, o câncer é a segunda principal causa de morte no mundo todo. Oriundo do latim “cancer”, que em português significa “caranguejo”, crustáceo que também simboliza o signo de câncer, o nome da doença é a imagem dos seus tentáculos, das suas ramificações, da força dilacerante impingindo dor e sofrimento. É uma verdade infeliz dizer que muitos de nós experimentaremos o câncer de alguma forma, seja em primeira mão como paciente ou no apoio a um ente querido através de seu diagnóstico e tratamento. Eu pensei que jamais teria. É verdade também que a doença cruel pode inspirar uma renovada empolgação pelo futuro, gratidão pela vida, desejo de alcançar novos objetivos e maior proximidade com as pessoas amadas. As mudanças são profundas, o mundo muda muito diante dos olhos de quem luta contra a doença. Cada dia vencido é uma grande vitória, ornada de luz. Não foi fácil, ninguém disse que seria. O que já era difícil ficou ainda mais difícil com a chegada do coronavírus, da quarentena e da pandemia, que por sua vez já seria difícil, mesmo sem o negacionismo, o terraplanismo, o geocentrismo, o autoritarismo, o radicalismo, o extremismo, o obscurantismo, o cinismo e vários outros “ismos” da penumbra que se abateu em cima das nossas cabeças e que jogou a favor da morte. Sob a égide das trevas engendradas pelo terror de Estado, preso dentro de um labirinto ornado de ódio e de ignorância, os dias tinham cara de travessia. Revisitando o meu passado, minha vontade de viver me fez superar todos os obstáculos que encontrei pelo caminho. Mais do que endireitar a mente, eu tive que aprender a usá-la a meu favor, sempre acreditando no final feliz. Não há no mundo remédio melhor do que a esperança. “A esperança é como o sol, que, quando caminhamos em sua direção, faz as sombras de nossos fardos ficarem para trás”, de Samuel Smiles, autor escocês do século XIX. Nos tons da crença, eu me curei. Apesar de tudo o que eu vivi, eu venci e sobrevivi para contar a história.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de abr. de 2023
ISBN9781526026170
OS TONS DA CURA

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    OS TONS DA CURA - FÁBIO FREIRE

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    SINOPSE

    Segundo a Organização Mundial da Saúde, a OMS, o câncer é a segunda principal causa de morte no mundo todo, cerca de um em cada seis habitantes morre devido à doença. O meu foi no intestino. Os números são assustadores, todo ano morre o equivalente à população de um pequeno país, do tamanho de Portugal. É uma verdade infeliz dizer que muitos de nós experimentaremos o câncer de alguma forma, seja em primeira mão como paciente ou no apoio a um ente querido através de seu diagnóstico e tratamento. Eu pensei que jamais teria. É verdade também que a doença cruel pode inspirar uma renovada empolgação pelo futuro, gratidão pela vida, desejo de alcançar novos objetivos e maior proximidade com as pessoas amadas. Num final de tarde de céu azul e inverno meramente protocolar, dia oito de agosto de dois mil e dezenove, diante do meu gastroenterologista, eu descobria que tinha câncer. Foi um susto, o maior de todos. Nada mais seria como antes, os meses seguintes transformariam a minha vida por completo, foram tempos de profundas reflexões. Renascendo a cada dia, eu mudava, e gradualmente me tornava o que eu precisava ser para vencer o câncer. Foi difícil, ninguém disse que não seria, enquanto eu convalescia à margem da sociedade, teve até a pandemia do coronavírus, uma loucura, a morte não dava trégua. A vida seguia assombrada, no fio da navalha. O mundo não deu uma pausa para que eu me tratasse e me curasse, longe disso. Tudo acontecia ao mesmo tempo, e quando parecia que iria acabar, acontecia tudo de novo. Enquanto isso, eu vivia, nas sombras da contristação, vencendo e sobrevivendo para contar a história.

    CONTRISTAÇÃO

    Agora folgo, não porque fostes contristados, mas porque fostes contristados para o arrependimento; pois fostes contristados segundo Deus - Paulo. (II Coríntios, 7:9.)

    Quanta vez se agitam famílias, agrupamentos ou coletividades para que a tormenta lhes não alcance o ambiente comum? Quantas vezes a criatura contempla o céu, em súplica, para que a dor lhe não visite a senda ou para que a adversidade fuja, ao encalço de outros rumos? Entretanto, a realidade chega sempre, inevitável e inflexível.

    No turbilhão de sombras da contristação, o homem, não raro, se sente vencido e abandonado. Todavia, o que parece infortúnio ou derrota pode representar providências salvadoras do Todo-Compassivo. Em muitas ocasiões, quando as criaturas terrestres choram, seus amigos da Esfera Superior se alegram, à maneira dos pomicultores que descansam, tranquilos, depois do campo bem podado.

    Lágrimas, nos lares da carne, frequentemente expressam júbilos de lares celestiais. Os orientadores divinos, porém, não folgam porque os seus tutelados sejam detentores de padecimentos, mas justamente porque semelhante situação indica possibilidades renovadoras no trabalho de aperfeiçoamento. Todo campo deve conhecer o tempo de ceifa ou de limpeza necessárias.

    Quando estiverdes contristados, à face de faltas que cometestes impensadamente, é razoável sofrais a passagem das nuvens pesadas e negras que amontoastes sobre o coração; contudo, quando a prova e a luta vos surpreenderem a casa ou o espírito, em circunstâncias que independem de vossa vontade, então é chegada a hora da contristação segundo Deus, a qual vos eleva espiritualmente e que, por isso mesmo, provoca a alegria dos anjos que velam por vós.

    Lição 153 do livro Vinha de Luz (pelo espírito Emmanuel) editado pela Federação Espírita Brasileira (FEB)

    PRÓLOGO

    A chuva não caía exatamente onde eu queria que ela caísse, mas caía onde lhe cabia cair. Fazia mais de um mês que eu não via aquela tão abençoada demonstração divina, em forma de gotas cristalinas, cheirosa, na dose certa, proveniente de um céu acinzentado com destino ao asfalto da Regis Bittencourt, de onde eu apreciava tudo, com cautela. A pista escorregadia fazia com que as minhas duas mãos tensionassem o volante do carro, sentindo muito mais o vigor da vibração e dos solavancos, proporcionando uma pegada mais segura, como tinha que ser. Os dias passados em Curitiba, junto do meu irmão e de sua bela família, haviam sido perfeitos, a viagem de volta para São Carlos, no interior paulista, levava com ela as boas lembranças de um tempo bem aproveitado na deslumbrante capital paranaense. Era quarta-feira, quinze de setembro de dois mil e vinte e um, dois dias após o aniversário de setenta e um anos da minha mãe, comemorado em grande estilo com porções de camarão, pastéis, também de camarão, doces que eu comi escondido, espumante, dois netos, uma cunhada, o filho caçula, eu e o meu pai. Enquanto Curitiba ficava para trás e São Paulo se vislumbrava adiante, os minutos dentro do carro passavam com a leveza de quem só tinha bons pensamentos na cabeça. Tudo era bom, a paisagem de vales verdes daquela região do Paraná sugeria uma suavidade que contrastava com o relevo irregular, tipo dente de serra. A paz de espírito inspirava múltiplos suspiros.

    Aquela ida para Curitiba foi a retomada de uma rotina interrompida pela pandemia do coronavírus e pelo meu câncer, que virava passado com a mesma sem cerimônia com que se fez presente pouco mais de dois anos antes. Desde que meu irmão se estabeleceu por lá, principalmente depois que vieram os seus filhos, meus sobrinhos Caio e Laura, ir e vir de Curitiba fazia parte da programação do mês, ou mesmo da quinzena de cada mês. Não bastassem os laços afetivos que me levavam para Curitiba, havia também os profissionais, pelos vínculos que eu mantinha com a UTFPR. Nos tempos das vacas gordas o meio de transporte era o avião, mas com as seguidas crises financeiras e o achatamento do meu salário de professor, o jeito foi encarar os setecentos quilômetros de distância com o carro que estivesse mais pronto na garagem. A verdade era que a viagem de carro me dava prazer, eu conhecia todas as retas e curvas da estrada, além disso, sempre gostei de dirigir, o problema era o trânsito, sempre muito pesado. E perigoso. Chovendo, então, era mais ainda. Já nos primeiros quilômetros, ainda bem próximos do nosso ponto de partida, vimos carros e caminhões acidentados por conta da pista molhada. Quando digo aqui que nós vimos, no plural, falo por mim e pelos meus pais, que me acompanhavam de volta para São Carlos. Para os velhos, a vida era isso aí, horas eles ficavam próximos ao meu irmão em Curitiba, horas comigo em São Carlos. Tudo lindo e maravilhoso.

    Tudo indo também. Adiante ficava o Posto Represa, na cidade de Campina Grande do Sul, Paraná, onde costumávamos fazer uma pausa para café com pão na chapa. Dessa vez não seria diferente, tradições boas devem ser mantidas, abrir mão de algo tão simples e bom, que dava tanto prazer, seria retroceder e não avançar. Sempre com as duas mãos firmes ao volante, olhava no retrovisor do carro uma paisagem que deixava gostosa saudade e belas recordações. Privilegiado é aquele que tem uma família boa para curtir, meu irmão é um grande amigo, nossos gênios tão diferentes nos uniram fortemente, sei o quanto foi importante para ele me ver inteiro e quase plenamente recuperado das três cirurgias, da trombose, dos sete meses de quimioterapia, das duas fortíssimas pneumonias, enfim, eu era um sobrevivente e queria mostrar isso. Os perigos da estrada, das curvas fechadas, da pista molhada, não tiravam o encanto da volta para casa, depois de muita curtição em Curitiba. Todas as dificuldades e desafios que eu vivi por conta do câncer que eu venci, transformaram um sujeito cheio de minhocas na cabeça em um tipo sem grilos. Lá estava eu, de máscara hospitalar na cara, balançando para um lado e para o outro dentro do carro, quilômetro após quilômetro, rumo ao Posto Represa, imaginando como estaria o café e o pão na chapa quase dois anos depois da última viagem que fiz para Curitiba. Natal de dois mil e dezenove. O tempo passava sem cara de espera, era bem aproveitado, a paisagem de tirar o fôlego fazia do deslocamento um belo passeio. Eu não tinha pressa para nada.

    Antes da metamorfose causada pelo câncer, com certeza eu estaria tenso e ansioso, dirigindo o carro envolto por uma nuvem de pensamentos pesados e dispensáveis, cheio de pressa para chegar logo a São Carlos, preparando mentalmente a aula que eu daria no dia seguinte, lamentando ao invés de aproveitar. Era assim, infelizmente. O tempo passava diferente, a qualidade não era a mesma, aliás, o tempo é um conceito muito mais subjetivo do que objetivo, nessa relatividade mal explicada, quem sabe viver vive um prazer mais prolongado, mais durador. Mais definitivo também. Acho que, de alguma forma, a sabedoria de viver bem está na simplicidade de encarar a vida com todas as cores e talvez muita musicalidade, pessoas felizes vivem assobiando e cantarolando, quanto mais descomplicado, melhor. Tem gente que nasce assim, outros penam para chegar lá. Há, entretanto, os que não conseguem e complicam tudo, eu fiz parte desse time, durante longos anos, intermináveis, até o dia em que me foi revelado um tumor maligno faminto para devorar o meu cólon e seus arredores. Quando a metástase entrou no meu dicionário, e também no meu histórico de vida, eu tive que mudar. O tratamento foi longo e penoso. Não havia outra alternativa, ou era isso ou a doença me trituraria até eu virar pó. Depois disso, passei a ter uma relação mais bacana com o tempo, olhando para o futuro sem criar expectativas que resultem em frustrações, pensando no futuro ciente da aleatoriedade que faz parte da vida de todo mundo. Não tem como sobreviver no passado, o presente, em compensação, acaba num piscar de olhos, enquanto que o futuro só existe no imaginário. Naquela viagem, dentro daquele carro, com o meu pai e a minha mãe de passageiros, deixando Curitiba para trás, adiante, o futuro era o Posto Represa, com café gostoso e pão na chapa quentinho.

    Aprendi a duras penas que o importante na vida é acreditar que o futuro vai chegar. Chegamos ao Posto Represa pouco depois das sete da manhã, a viagem estava mais lenta por conta da chuva, mas ninguém se importava com isso, era bom demais ver toda aquela água caindo, depois de tanta seca em São Carlos. A estiagem cobrava uma conta cara em todo o país, além do horizonte, a crise hídrica ameaçava o Brasil carrancudo e desidratado da extrema direita, todos pagavam essa conta salgada, mas a do interior paulista era ainda maior. Eu olhava para aquela paisagem molhada com vontade de lamber tudo. Por conveniência, parei o carro próximo a uma escada de acesso ao restaurante do posto, meu pai tem problemas de locomoção, sabia que cada degrau seria vencido com grande esforço. Motivação para estar ali, não faltava, além da boa comida, tinha ainda os queijos artesanais que a gente sempre comprava para levar na viagem. Um melhor do que o outro, a italianada daquela região não brincava em serviço. Minha silhueta mais volumosa a cada ida para Curitiba era o retrato de que se comia muito bem por aquelas bandas, mais do que culinária, uma famosa gastronomia de primeira. Hábil como um felino, quase vazando nas calças, corri para o banheiro enquanto o meu pai subia lentamente os degraus, apoiado pela minha mãe que cumpria as funções de esposa zelosa, cuidadora e companheira de cinquenta e três anos de casada. Meus pais se casaram exatamente uma semana e um dia após a edição do monstruoso Ato Institucional número 5, o AI-5, para não dizer que não falei das flores.

    Enfim, quase dois anos depois da minha última passagem por lá, o restaurante do posto estava a mesma coisa, tudo no mesmo lugar, o cheiro delicioso era o mesmo, os atendentes também, até a Anitta, uma papagaia sem papas na língua, continuava fazendo estrondoso sucesso, andando para um lado e para o outro no balcão de atendimento. Dava gosto ver tudo aquilo de novo, e um alívio danado em constatar que todos haviam sobrevivido à pandemia. Quase seiscentos mil brasileiros não tiveram a mesma sorte. O Brasil vivia o pesadelo de uma história sem fim, das ameaças sem trégua, das sucessivas loucuras de um desgoverno na acepção mais pura do termo, parecia castigo, mas não era, era aprendizado. A ignorância e a estupidez prevaleceram, foi feita a vontade do povo, o voto irresponsável não tinha cabimento no mundo civilizado, culto e letrado, mas fazia parte da democracia, estava previsto na constituição, estávamos a dois passos do abismo, independentemente de paixões políticas. Tudo estava pior, voltávamos para os índices da fome e da miséria, mas o Posto Represa continuava o mesmo, meus protestos contra a ultradireita eram infundados, pelo menos, naquele momento. A máscara hospitalar era obrigatória, ainda havia muito risco de contaminação, seria a primeira vez que comeríamos em um ambiente fechado fora de casa, ao som da escandalosa Anitta, que parecia mais surtada do que todos os moradores da Cracolândia unidos num uníssono de ensurdecer. Era o charme do lugar.

    Sei dizer que o café com pão na chapa foi um verdadeiro banquete, sob a minha nova ótica de encarar a vida, cada mordida no pão e cada gole de café tinham um significado que ia muito além do simples gosto pelo alimento. Havia um contexto naquilo tudo, um tempero a mais, um toque de magia que ia direto para o estômago e mexia com a mente. Difícil de explicar em palavras, mas fácil de se sentir, há momentos na vida da gente que precisam ser vividos, só isso. Era o que eu fazia, adoro manteiga, desde pequeno, meu colesterol já passou dos trezentos e trinta mg/dl, muito acima do normal, mas aquela manteiga que banhava o meu pão não me faria mal. Se fizesse, azar o dela, estaria lidando com o coração de um homem feliz. Verdadeiramente feliz, sem encenar a felicidade que sentia. Pas de mise en scène. A chuva aumentou, caía com mais força do lado de fora, mais barulhenta, entre goles de café e a boca cheia de pão, o tempo passou rápido e gostoso. Faltava só escolher dois queijos artesanais antes de pagar tudo e cair na estrada de novo. Eu estava nas nuvens, nada estragaria aquela alegria sincera, legítima, tão visceral quanto os berros da Anitta. O queijo da canastra fui eu quem escolheu, já o queijo de colônia foi uma sugestão da casa, prontamente aceita. Na hora de pagar no caixa, minha carteira não saiu do bolso, foi a minha mãe que passou o cartão, optando pelo crédito, sonhando com os pontos que mais tarde poderiam render a compra de uma passagem de avião.

    Foi aí que essa história que eu quero efetivamente contar começou. Na verdade, foi aí que eu notei, que uma nova história começava na minha vida. Ao tentar passar pela catraca de saída, meu pai de quase 80 anos se atrapalhou todo com o sistema e acabou dando um certo trabalho que pareceu irritar a moça do caixa.

    - Não é assim que se faz!

    Não era mesmo, nem era assim que um idoso deveria ser tratado. Nessa hora, meu sangue esquentou. Percebi uma certa falta de paciência da moça com o meu pai, achei que o jeito dela lidar com uma situação tão banal não foi o ideal. Fiquei por um triz de soltar os cachorros em cima da moça do caixa, mas algo me deteve. Sou descendente de árabes, antes do câncer, explodir era comigo mesmo. Eu não sabia, nem podia imaginar, mas aquele ocorrido foi para mim uma lição de vida que talvez me acompanhe até o túmulo. Sinais de um homem renascido. Externar a raiva é sempre muito mais fácil do que contê-la, autocontrole é sinal de evolução. Engoli seco, meio contrariado até, mas dominando os meus demônios, saí dali correndo da chuva, direto para o carro. Me molhei todo. No banco do motorista, antes de ligar o motor e seguir viagem, pensei nos prós e nos contras do meu silêncio, sem saber se fiz certo ou errado, em paz com a minha decisão. Assunto encerrado, achei melhor, então, eu me desligar daquilo tudo. Foi o que eu fiz.

    De volta à estrada, com direito a chuva forte e uma ventania danada, a viagem assumiu ares de aventura, de desafio. A quantidade de carros derrapando e saindo da pista me fez redobrar a atenção e usar ao máximo a minha experiência de motorista com muitos quilômetros no currículo. Curvas e baixadas eram um risco a mais, a água acumulava nos cantos aumentando as chances de aquaplanagem, mas eu sabia lidar bem com isso. Suavidade no volante, no acelerador e nos freios garantiam uma condução segura, o problema eram os outros motoristas, indiferentes às restrições impostas pela chuva na estrada. O papo dentro do carro era muito bom, ajudava a relaxar, meus pais estavam felizes pelo aniversário da minha mãe, bem comemorado em Curitiba. Dividir o tempo entre Curitiba e São Carlos fazia bem para os velhos, a pandemia havia mexido muito com isso. O período de isolamento foi comprido, cumprido sem questionamentos, se essa era a recomendação da Organização Mundial da Saúde, era assim que a gente fazia. Obediência total. Usar máscara hospitalar nunca foi um problema para mim, eu já estava bem acostumado, meus dias de mascarado haviam começado já na minha primeira sessão de quimioterapia, dia seis de novembro de dois mil e dezenove. Era fácil entender que o isolamento e o distanciamento eram necessários, principalmente no começo da pandemia, quando não se sabia ao certo a sua dinâmica, nem havia previsão de tratamento ou vacinação.

    A chuva dava sinais de que nos acompanharia até São Paulo, a capital, mas deixava de ser intensa sessenta e poucos quilômetros depois que saímos do Posto Represa. Com menos aguaceiro, o prazer na direção era maior, dava para apreciar a paisagem sem correr riscos desnecessários. Sentia os meus músculos dos braços e das costas relaxando gradualmente, um alívio que durou pouco:

    - Esqueci a minha carteira e o meu celular no posto!

    Meu pai é tão moreno quanto eu, aliás, sou muito parecido fisicamente com ele. Nessa hora ele se via mais pálido do que um lençol, ao perceber que havia esquecido a carteira e o celular no posto, já havíamos rodado uma distância significativa.

    - Vamos retornar, então

    Tem horas em que a gente funciona no módulo automático, sem pensar, quanto menos questionamentos, melhor. Não havia outra alternativa, assim que avistei o primeiro retorno, embiquei a frente do carro de volta para Curitiba, torcendo para que tudo aquilo tivesse um final feliz. Entendendo que o final feliz seria recuperar a carteira, o celular e continuar a viagem sem mais sobressaltos.

    Percorrendo o sentido São Paulo-Curitiba, aumentando a distância que nos separava de São Carlos, fomos logo tomados por um sentimento de solidariedade ao meu pai, um acadêmico respeitado, dono de uma carreira sólida, professor emérito da UFSCar. Não adiantava lamentar, eu também poderia ter prestado mais atenção, meu pai chegava a uma idade em que algumas limitações precisavam ser observadas, entendidas, apesar do excelente raciocínio que nunca o deixou na mão, as vezes a memória dava uma pipocada. Dureza era manter o bom equilíbrio emocional quando pequenos astros conspiravam contra. Menos de cinco quilômetros após acessar a alça do retorno, o trânsito diante de mim parou por causa de um grave acidente.

    - Agora lascou-se

    Foi o que pensei, mas não falei, nem falaria uma coisa dessas na frente dos meus pais. O monólogo comigo mesmo era interior, silencioso, inofensivo, não tinha como censurar. Aquele longo engarrafamento e os quilômetros a mais desafiaram virtudes que eu julgava ter consolidadas, mas eu não perdia a pose, mantinha-me firme, demonstrando uma tranquilidade cenográfica que fazia bem para os velhos. Tudo era falso, eu não estava calmo, tentava endireitar os pensamentos, mas o medo de que a carteira fosse roubada era uma tortura mental que eu não conseguia evitar. O celular não faria tanta falta, verdade seja dita, meu pai detestava o aparelho. Se tivesse esquecido só o celular eu diria que foi de propósito, mas a carteira tinha cartões e documentos, recuperar tudo daria uma dor de cabeça danada. Enfim, mesmo nessas horas, o ideal é evitar pensamentos infrutíferos, que não levam a lugar nenhum, o problema continuaria sem solução enquanto estivéssemos parados no engarrafamento. Lastimar só atrapalhava. O tempo não passava.

    Por falar nele, nesse tempo que é mais subjetivo do que objetivo, perdi a noção do quanto tivemos que esperar até receber uma chamada no celular da minha mãe, dizendo que a carteira e o celular haviam sido encontrados no posto. Que alívio! A moça do caixa havia se desdobrado para deixar mensagens de áudio em todos os contatos do meu pai, até o urologista dele foi avisado, uma loucura. Muito bem-vinda por sinal. Finalmente, fomos avisados por uma colega da UFSCar que também recebeu a mensagem sobre a perda da carteira e do celular. Logo em seguida, meu irmão também ligou, passaríamos o dia inteiro recebendo mensagens de gente conhecida, repetindo o mesmo mantra da carteira e do celular esquecidos no posto. Tão logo tive o primeiro alívio, veio o segundo. A imagem da moça do caixa passando o carão no meu pai por causa da catraca surgiu como um replay que eu precisava assistir de novo. Santa decisão de não bater boca com a moça, um anjo da guarda que fez de tudo para nos ajudar. Sua falta de jeito para falar foi na verdade o traço de uma personalidade, de uma pessoa bondosa que não merecia ouvir o que eu estava disposto a lhe falar. Puxa vida, como é bom ter razão! Eu agi corretamente! Não queria ignorar aquela lição, queria que ela entrasse de vez na minha vida, que fizesse parte do meu DNA dali em diante. Era sofrível imaginar o que teria sido se eu tivesse escolhido a raiva ao invés da calma, da serenidade. O fato era que se eu tivesse falado algo de ruim para a moça, eu estaria errado.

    - Deus livrou vocês de alguma coisa ruim na estrada, por isso vocês tiveram que voltar

    Olha só que lindo! De volta ao Posto Represa, foi assim que a moça do caixa nos recebeu, havíamos gasto mais de uma hora para chegar lá. O alívio foi imediato, e duplo também, um pelos itens recuperados e outro pela decisão acertada de não ter entrado em confronto com a moça. Só por causa de uma relação mal resolvida com uma catraca. Que lição! Saber escolher bem as batalhas do dia foi a arte do bom viver que a doença grave me ensinou, quase sempre, o ideal é cair fora de confrontos. Nada tão momentâneo pode demandar tanta energia vital e envolvimento emocional. A moça do caixa era boa e simplória, faltou jeito para falar com o meu pai, mas não houve nenhuma má intenção da parte dela. Eu vi uma coisa que não foi a realidade, há uma diferença muito grande entre a realidade e a percepção. Vou além, existe a realidade, a percepção da realidade e o que a gente quer ver. A grosseria da moça só existiu no meu imaginário! Acredito que houve uma intervenção divina que me fez ficar calado, optando pela paz ao invés da guerra. Sentia-me mais próximo de Deus.

    A viagem até São Carlos foi outra depois desse episódio contado, levamos mais de doze horas no total. O normal seria levar oito horas. O cansaço só não foi maior do que o bálsamo de tranquilidade pelo final feliz disso tudo, assim que estacionei o carro na garagem do prédio. O atraso causado pelo retorno forçado fez com que chegássemos à São Paulo, pela Regis e suas poucas faixas, em pleno horário de pico, levamos mais de uma hora para atravessar a cidade pelo Rodoanel. Nada disso, porém, importava, bom mesmo era que estávamos inteiros, com as respectivas carteiras e celulares nos bolsos, andando com segurança num carro que cooperou o tempo todo, enfim, não havia do que reclamar. Sem me dar conta, pensamentos positivos pipocavam na minha mente, eu nem me esforçava, era bom viver assim. Fiquei o tempo todo com a pulga atrás da orelha, meio encafifado até, feliz com a decisão acertada de ter deixado a moça do caixa em paz. Talvez nem fosse tão moça assim, mas isso não mudava em nada o enredo da narrativa e nem alterava o desfecho da história. Foi então que eu percebi quão profundas haviam sido as mudanças durante o meu tratamento contra o câncer. Eu era outro, dono de uma certa serenidade empírica, baseada em uma experiência dolorosa, mas que rendeu bons frutos. Estava curado, do câncer e, de quebra, de alguns vícios da alma. 

    Mas, e se o meu pai não tivesse esquecido a carteira e o celular no posto, isso mudaria tudo? Talvez sim, talvez não, como saber? Não foi assim que aconteceu, acho que tudo foi uma obra do destino endereçada para mim, que me fez pensar, que me levou a uma enxurrada de reflexões, todas válidas. Minha vida após a batalha vencida contra o câncer estava assim, cheia de sussurros soprados nos meus ouvidos, dizendo que eu tinha que continuar mudando. Que eu tinha que seguir naquele caminho para me reinventar, tornando-me, a cada dia, um homem melhor, mais evoluído, com mais humanidade no coração, de pensamentos nobres, edificantes. Ninguém passa imune pelo câncer, a experiência muda a pessoa, eu não fui uma exceção. Anos antes eu não teria pensado duas vezes para soltar os cachorros em cima da moça do caixa. Ela mesmo, a moça do caixa. Eis que surge em mim um freio para conter os meus ímpetos mais primários e insensatos, de um cara outrora insuscetível de arrependimento. Eu estava vivo, sofri como jamais imaginei sofrer, passei por um longo período em que senti dores que nunca havia sentido antes, acompanhei a morte de muita gente querida, das amizades que eu fazia na ala de quimioterapia da Santa Casa de São Carlos. As mudanças na minha vida foram profundas. Se houve dor e sofrimento, houve também alento, pela solidariedade, pela empatia, pela compaixão, daqueles que cuidaram de mim, que me deram força, que estiveram ao meu lado.

    Olhando para trás, para o susto do terrível diagnóstico do câncer, para a cirurgia de retirada do tumor, para os meses de tratamento quimioterápico, parecia que décadas haviam se passado. Envelheci vários anos. O tempo mudou de escala desde que descobri o câncer, os dias tinham cara de semanas, as semanas de meses, os meses de anos, de um instante para o outro, tudo mudou na minha vida. Antigos traços da minha personalidade pouco a pouco foram sendo substituídos, novos valores entraram em cena, foi como se eu passasse por uma nova gestação. Voltei para o ventre da criação, ou o lar da alma, tendo uma segunda chance de renascer, após um intenso aprendizado de vida, feliz por estar aqui, livre do câncer. Fazia planos para o futuro a medida em que eu me recuperava, o retorno à vida normal, plena, com todos os gozos que se pode desejar quando se tem saúde, trouxe de volta perspectivas que o câncer havia levado embora. De repente, de pés fincados no presente, vieram as novas projeções para o futuro, voltei a desejar, eu desejava tudo. Durante o tratamento, minhas projeções de vida eram todas para o passado, em busca de consolo, tentando encontrar forças para seguir em frente. O câncer faz isso com o paciente, lembranças dos dias felizes da infância, da adolescência, da juventude, passam a se misturar com o duro presente, dando um nó na linha do tempo. Revivi um monte de momentos de grande alegria como se estivesse diante de uma grande tela de cinema, assistindo cenas em que eu via como foi boa a minha vida até eu descobri que tinha câncer.

    Por falar na doença, eu tive câncer e me curei num período assombrado pela pandemia, um vírus mortal ceifava vidas enquanto eu buscava salvar a minha, o coronavírus pegou o mundo de surpresa, nada mais seria como antes. No Brasil, tudo ia de mal a pior, o país parecia naufragar nas trevas da ignorância, se o mundo sofreu muito nesse período, por aqui, os brasileiros sofreram muito mais. Lições foram aprendidas. A verdade é que tudo passa, tudo vira passado, nada é para sempre, coisas boas e coisas ruins não são eternas, pegando carona na história, sei dizer que termina uma e já começa outra. O passado não é aquilo que passa, é aquilo que fica do que passou, segundo palavras do célebre escritor Alceu Amoroso Lima. Do que ficou no passado, teve a minha história do câncer, que eu vou contar aqui. Uma história que terminou com final feliz, pela cura alcançada, pela batalha vencida. Não foi fácil, ninguém disse que seria, para mim, pareceu um longo período de travessia, em que eu encontrei forças que julgava não ter. Para vencer, tive que mergulhar em mim mesmo, cada vez mais fundo, muita gente me ajudou, muita gente cuidou de mim, mas tudo seria em vão se eu não fizesse a minha parte. Acima de tudo, houve a vontade de Deus que eu sobrevivesse, todo mundo tem a sua hora, parecia que havia chegado a minha, se foi assim, então ganhei uma sobrevida. Uma dádiva, ou uma graça, tão gratuita que as vezes eu tenho medo de não dar o devido valor. Na Santa Casa, enquanto eu me tratava, fiz muitos amigos que viviam os seus últimos dias, pessoas boas e cheias de histórias, vivas para sempre na minha memória. Por que eu fiquei e eles se foram? Por que eu sobrevivi? Se hoje eu conto essa história, mesmo sem saber responder a nenhuma dessas perguntas, é porque foram feitas algumas vontades, a minha, a dos meus entes queridos e a de Deus. Uma história feita de luta e de revelações, de verdades e de recordações, que na verdade começou solenemente dentro da minha cabeça durante a minha terceira sessão de quimioterapia, quando eu resolvi olhar para trás e me reencontrei com a minha primeira lembrança.

    A PRIMEIRA LEMBRANÇA

    A vida do lado de cá começa quando a gente deixa o calor do útero da mãe e encontra a luz fora do ventre. Um momento importante, o mais importante de todos, porém, para sempre esquecido. Eu saí por um corte feito na barriga da minha mãe, a tal da cesariana me trouxe ao mundo numa noite quente de três de fevereiro de mil novecentos e setenta e dois, uma semana antes do Carnaval. Isso foi em Rio Claro, no interior de São Paulo, nasci com praticamente quatro quilos e meio e o título de primeiro paulista da família. Um bebê grandão e bem mais moreno do que todos os outros no berçário. Assim me contaram, eu não me lembro de nada, uma pena, imagino como deve ter sido a percepção dos meus segundos iniciais. Pura magia, um verdadeiro mergulho no milagre da vida, ofuscado pelo intenso brilho da luz, um mundo de sensações novas, de frio, de sons, de movimentos num fluido diferente, menos denso, menos viscoso. Liberdade! Deve ter sido bom, assustador, marcante, definitivo. Sei lá, só posso especular. Minha mãe era uma jovem de vinte e um anos na época, meu pai tinha trinta e era professor na UNESP. Os dois ainda se lembram de detalhes daquele dia em que eu nasci, mas eu, que protagonizei tudo, não me lembro de nada. Enfim, o cronômetro já marcava o meu tempo, cortado o cordão umbilical, eu estava livre para começar a minha saga, sem me dar conta.

    Pois a primeira lembrança que eu tenho na vida, a que me acompanhou por décadas até a chegada dos meus cabelos brancos, a mais antiga de todas, é a de estar preso. Isso mesmo, preso dentro de um banheiro. Talvez a psicologia tenha uma explicação para os caprichos da memória, a personalidade do sujeito, isso e aquilo. Ou ainda, pode ser que a religião possua respostas. Não sei, só sei que eu fiquei preso no banheiro do apartamento em que passei a infância no Rio de Janeiro, e nunca mais esqueci. Antes disso, nada, nenhuma lembrança. Festinhas de aniversário, o primeiro Natal, os passeios de Fuscão, a primeira ida à praia, as primeiras palavras, o primeiro dia na escola, nada, nada. Fim de ano chegando, eu de olhos fechados, durante a minha terceira sessão de quimioterapia na Santa Casa de São Carlos, concentrado até o último fio de cabelo, focado na tarefa, em busca da minha própria retrospectiva, lá no começo, lembrei-me de estar preso no banheiro. Isso mesmo, não adiantava enganar a memória, fiquei preso no banheiro logo após uma ida à Niterói, pela ponte recém-inaugurada. Um passeio gostoso, com direito a um almoço delicioso, uma manhã que mereceria uma boa recordação, não fosse o xixi que me custou caro. Sempre tive muito pudor com relação a essas coisas, uma vez me chamaram de mijão na Praça da Ribeira, na Ilha do Governador, e, a partir desse dia, passei a trancar a porta do banheiro à chave. Essa última não era uma lembrança minha, mas dos meus pais.

    Ao longo dos vários meses de tratamento contra o câncer, no decorrer de um legítimo processo de mudança interior, frequentemente, fui projetado para o meu passado sem premeditar ou mesmo ter plena consciência do que fazia. Por vezes, deixei de existir fisicamente e virei meus pensamentos, vagando livremente na linha do tempo, revivendo momentos de felicidade, de ensinamento, não havia planejamento, isso simplesmente acontecia. Os baixos níveis de energia vital decorrentes da quimioterapia ajudavam, eu queria no futuro a mesma felicidade do passado, a alegria espontânea da minha infância, a leveza da minha juventude. Aquela terceira sessão de quimioterapia, quatro de dezembro de dois mil e dezenove, lançaria a pedra fundamental desse novo hábito de reconstruir, peça por peça, o meu passado. Nele eu me apoiaria para seguir em frente, nele eu encontraria o otimismo que eu precisava e a certeza de que depois da tormenta vem a calmaria. Se fiquei preso no banheiro quando ainda era bem pequeno, o deleite por ser solto, ao ver aquela porta se abrir diante dos meus olhos de criança, foi maior do que tudo. Estar do lado de fora foi como sair de um mundo em preto e branco e enxergar todas as cores de novo. Minha primeira lembrança. Após tantos anos, lá estava ela, batendo na porta da mente, ou da alma, pedindo licença para entrar. Tempos de encantamento no Rio de Janeiro.

    O exercício de memória foi mais ou menos assim. Nessa época a minha praia era o Aeroporto Internacional do Galeão, religiosamente aos domingos, o meu pai me levava para ver aviões decolarem e aterrissarem, era um barato. O ritual incluía um saquinho de batata frita, cheia de sal, inclusive no preço, de alguma lanchonete que não vem ao caso. Tanta coisa boa para se fazer no Rio de Janeiro da minha infância, mas o que eu gostava mesmo era de ir para o Galeão. Depois eu tinha assunto para a semana inteira na Escola Topo Gigio. A recordação dos pousos e das decolagens era boa, ótima, mas tinha lembrança mais antiga do que essa na minha cabeça e eu sabia disso. Vamos lá. Eu fui à inauguração do Museu Aeroespacial no Campo dos Afonsos, Vila Militar, no final de setenta e seis. Momento histórico para mim! A partir desse dia precisamente eu comecei a dizer a todos que seria piloto, seguro de mim, uma convicção que durou até a adolescência, quando passei a usar óculos e mudei de proa, embicando o nariz para outras profissões. Bacana, né? Outra lembrança boa, o problema é que ela não era minha, mas dos meus pais. Estava convergindo, em algum lugar do passado, entre as idas ao Galeão, e o museu no Campo dos Afonsos, eu fiquei preso no banheiro, legitimamente, a minha primeira lembrança. Havia um ingrediente importante nessa minha viagem no tempo, rumo a um sábado de calor escaldante no Rio de Janeiro, a ponte Rio-Niterói. Imensa, imponente, com o cheiro da Guanabara, por onde passei minutos antes de ficar preso. No banheiro.

    O recurso da memória seguia uma rota desconhecida, que nem a do cadáver de Paganini, fazia tempo que eu não olhava para trás em busca de lembranças. Muito pelo contrário, antes de descobrir o câncer, minha vida estava projetada para frente, para o futuro, para a mudança de apartamento, para o congresso em Belém, para a viagem de trabalho à Espanha, que eu conhecia bem, para os novos projetos. De repente, num belo dia seco de inverno, já no final da tarde, esse futuro deixou de ser o meu, não restava dúvida, o diagnóstico da doença foi claro, começava a minha corrida pela vida. Algum tempo depois, eu seguia as etapas do processo de cura. Naquela terceira sessão de quimioterapia, ponto de partida dessa minha viagem no tempo, eu só queria me desgarrar do presente e resgatar o meu passado. Parecía que mis recuerdos estaban simplemente condenados a perderse en el tiempo. Dentro de um galpão sem luz e empoeirado. Eu nunca soube dizer se a Capitu traiu ou não o Bentinho em Dom Casmurro, na minha juventude, eu morria de medo que essa questão caísse no vestibular. Ironicamente, olhava para a minha própria saga sem saber direito se eu gabaritaria, ou não, todas as perguntas, se eu, de fato, era o autor de cada linha, de cada parágrafo da minha biografia nanica. Nosso passado nunca vai embora, em outras palavras, a reconstrução do que ficou para trás serve para interpretar o presente. Quando pequeno, eu fiquei preso no banheiro. Nunca mais esqueci.

    Era a terceira sessão de quimioterapia, eu começava a me acostumar com a rotina do tratamento. O desconforto inicial gradualmente dava lugar ao sentimento de resignação e também de resiliência, eu tinha que aguentar aquilo tudo. Nem no pior pesadelo eu imaginei ter que encarar um câncer, para mim, essa era uma doença que os outros tinham, que a família dos outros tinha. Pois é, era assim que eu pensava, mas lá estava eu, perdendo os cabelos, sem vitalidade, sem grandes vontades, pensando no passado, recordando a minha própria vida até então, curtindo o momento. O câncer não me deixava olhar para frente, ele tomou posse do meu futuro e mexeu muito com o meu presente. Sou professor universitário, trabalho desde o final de dois mil e nove na UFSCar, uma instituição bem ranqueada, respeitada, onde a projeção para o futuro é muito importante, os próximos passos, o próximo desafio, os novos projetos, de repente, lá se foi o meu futuro. Numa única tacada. Só ficou o presente e o passado. Como foi bom ter vivido até ali! Que vida boa eu tive! De legado, um monte de lembranças boas, onde eu encontraria forças para seguir adiante, sem lamentos, sem revolta, tentando melhorar como homem, conseguindo alguma coisa nesse sentido. Muitos daqueles pacientes que dividiam a sessão comigo, ficariam pelo caminho, cada um deixaria algo de bom dentro de mim. Só que eu ainda não sabia disso, nem que vários dos meus amigos de quimioterapia morreriam, nem que eu sobreviveria.

    Enquanto os quimioterápicos me tiravam de órbita, era curioso e revelador olhar para o meu passado em busca da minha primeira lembrança. Pensava em mim mesmo como se estivesse imaginando uma outra pessoa, uma criança, um adolescente, um jovem, parecidos comigo, mas ao mesmo tempo, diferentes. Cada fase da minha vida teve um personagem mais ou menos criado por mim, com suas manias próprias, seus gostos e preferências, enfim, dois mil e dezenove chegava ao fim, o retrospecto de vida ajudava a amenizar os fortes efeitos dos medicamentos. Voltar no tempo me mostrava o quanto tudo foi diferente quando eu era mais novo. Mudaria o Natal, ou mudei eu? Assim meio como o homem do Soneto de Natal de Machado de Assis, eu viajava no tempo, esforçando-me para recuperar lembranças, transformando o soneto em prece. Fazendo da prece a luz do túnel para o passado, vendo cenas em que eu aparecia, degustando-as como se fosse um Château Latour envelhecido, encorpado, uma miríade de sabores diversos. Como eu era, quem fui eu? Quais foram os caminhos que eu percorri, que me levaram até ali onde eu estava, me tratando de um câncer? Perguntas sem respostas. O importante, porém, naquele momento, era a primeira lembrança, ocorrida num sábado de sol em que o menino vesguinho que queria ser piloto ficou preso no banheiro.

    Enfim, naquele sábado eu tinha entre quatro e cinco anos de idade, acho que já tinha cinco, vivíamos num confortável apartamento no início da Rua Gregório de Castro Morais do Jardim Guanabara, assim como a Praça da Ribeira, também na Ilha. O imóvel tinha um banheiro na área de serviço e eu fiquei preso nele. Foi assim, a extensa ponte Rio-Niterói, sem acostamento, havia sido impiedosa com a minha bexiga, cheguei de volta ao apartamento doido para ir ao banheiro. Esbaforido, entrei, bati a porta com força e passei a chave. Era meio caminho andado. Terminado o xixi, depois da descarga, ciente de que eu deveria lavar as mãos no tanque que ficava do lado de fora, tentei abrir a fechadura, mas vi que ela estava emperrada. Que desespero! Os detalhes do meu cárcere temporário não estão mais disponíveis, mas os meus gritos de pânico atravessaram os anos, eu chorava muito e batia na porta. Não consigo reviver aquele momento, lembro-me dele já adulto, meio coroa até, mas gostaria de poder ao menos imaginar como deve ter sido. Acho que foi traumático, tenho quase certeza, de legado, ficou uma certa paranoia com porta fechada à chave. Eu gritava feito um bicho, vomitei o almoço todo, não adiantava pedir calma. Eu não estava e nem fiquei calmo, muito pelo contrário, estava preso e queria sair. Meus pais, do outro lado da porta, sofriam comigo. Meu irmão pequeno não entendia nada. Acho que o prédio inteiro, de poucos andares, me ouvia.

    Por fim, não sei exatamente quanto tempo isso tudo durou, só sei que num determinado momento, meu pai perdeu a paciência, a cabeça e as estribeiras, meteu o pé na porta com força, e ela se abriu. Um legítimo super-herói! Eu estava apavorado. Para mim, terminava o drama. Não me lembro de ter saído, aos prantos, do banheiro, mas foi o que aconteceu. Fiquei mole o dia todo. No exercício de memória, minha primeira lembrança foi essa, cheia de gritos e de lágrimas, quase um parto. Era onde eu conseguia chegar na minha linha do tempo, meados da década de setenta, trancado no banheiro, desesperado para sair. Sei dizer que depois desse dia, até hoje, antes de trancar uma porta eu verifico se a fechadura está funcionando direito. Um hábito estranho para uma criança, mas nem tão estranho assim para um adulto. Eu faço isso, antes de fechar, dou umas voltas na fechadura com a porta aberta, escancarada. Ecos de um passado distante, o mais distante de todos. Enquanto os medicamentos da quimioterapia circulavam dentro de mim, mexendo com cada molécula do meu corpo, meus pensamentos viajavam no tempo, de volta ao passado, sempre em busca de consolo para os dias que eu vivia. Preso no banheiro ou solto por aí, meu histórico de vida era recheado de bons momentos, um melhor do que o outro, o xilindró sanitário foi uma exceção. Foi também, a primeira lembrança. Seguindo as etapas da vida, subindo os degraus da idade, tomando injeções para me curar de um câncer, havia uma certeza na minha cabeça. Eu fui feliz.

    OS PRIMEIROS AVISOS

    Assim, eles surgiram, todos os relógios do mundo, todos eles, em um enorme, ou melhor, imenso hangar. Antigos, contemporâneos, barulhentos, silenciosos, analógicos, digitais, prateados, dourados, de plástico, de parede, de pulso, de bolso, usados, novos, sujos, limpos, lá estavam eles, amontoados entre si, todos os relógios do mundo. Eram todos mesmo? Sim, eram todos, ninguém me dizia nada, eu simplesmente sabia. Não faziam nenhum sentindo onde estavam, armazenados dentro de um hangar escuro, filas e mais filas, jogos de prateleiras para todos os lados, não via onde começavam e nem onde terminavam. O breu e a tranquilidade do lugar davam um toque de mistério à experiência, como se algo fosse acontecer de repente. Eu caminhava lentamente, sem pressa, medindo os passos, olhando para todos os lados, contemplando os relógios, esperando o sobressalto.

    Em módulo de espera, seguia ouvindo o gostoso tic-tac, só os digitais estavam em silêncio. Todos funcionavam, marcavam as horas, um trabalho incessante, cumpriam com a sua função, mas nem todos faziam barulho. Tic-tac, tic-tac, quebrando o silêncio, deliciosamente, era muito gostoso ouvir os tic-tacs dos relógios, assim mesmo, no plural. O tempo parecia não passar, a não ser para os ponteiros que seguiam adiante, dando suas voltinhas, com um misto de tédio e eficiência, e delicada precisão. Displays também não perdoavam, chegando e partindo, segundos eram devorados, ficavam para trás sem dó nem piedade. Para mim, não havia tempo, ele não significava absolutamente nada. Dentro daquele hangar, vencendo aquele espaço sombrio com passos curtos e pausados, eu vivia uma experiência atemporal, uma coisa mal explicada, como um feitiço da noite. Tudo acontecia, realidade ou não, o tempo era abstrato, vagando como um náufrago. Um conceito e nada mais.

    A medida em que eu seguia em frente, comecei a notar uma certa pressão nas minhas costas, vindo da altura dos ombros e descendo até a lombar. Alças de palha sustentavam um enorme cesto que eu carregava como se fosse uma mochila, a princípio, sem notar. Segui caminhando, sem olhar para trás, era o que eu tinha que fazer, com um cesto nas costas, entre todos os relógios do mundo. Alguns deles eram lançados ou se lançavam para dentro do cesto, o peso não me incomodava, mas passei a sentir algo. A iluminação era péssima, uma leve névoa impregnava o ambiente, a paz de espírito me fazia muito bem, o frescor do lugar combinava com o pouco que eu via. As batidas do meu coração seguiam o ritmo dos tic-tacs dos relógios, irmanamente sincronizados, parecia que algo iria acontecer. O cesto dava suaves solavancos, mas eu não me assustava, havia uma harmonia celestial e um sentido naquilo tudo. Um episódio que eu vivia sem saber o porquê, mas que me fazia bem.

    Lá estavam eles, todos os relógios do mundo, e eu levando alguns para passear em um cesto, dentro de um hangar sombrio. A mensagem não estava clara, tempo, presente, passado, futuro, tudo junto, difícil decifrar. Meu diálogo com todos os relógios do mundo era silencioso e cheio de indagações, cheio de questionamentos dos mais variados, os tic-tacs não me diziam nada, mas me faziam bem, só isso. Por que tantos relógios? Por que alguns pulavam para o cesto? Eu estava ganhando tempo? Por que eu estava ganhando tempo? Os relógios pareciam indiferentes a mim, até mesmo os que pulavam para dentro do cesto que eu carregava nas costas. Na verdade, eu nem os via, só sentia a presença. E a enorme indiferença. Estava no ar. Ali, naquele lugar, eu era uma sombra, uma silhueta na penumbra, caminhando, quase flutuando. Não sentia meus pés no chão.

    O corredor parecia não ter fim, nem começo. Mas tinha ambos. Havia vários corredores lado a lado, paralelamente arranjados, entre as prateleiras de relógios. Decidi andar para a frente, seguindo um único corredor.

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