POR DENTRO DA OPERAÇÃO PALMARES
De FÁBIO FREIRE
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POR DENTRO DA OPERAÇÃO PALMARES - FÁBIO FREIRE
PRÓLOGO
Desisti várias vezes de contar essa história, sobre a minha participação na Operação Palmares do Projeto Rondon. Desisti de desistir outras tantas vezes. Foi muito bom ter ido junto com os alunos para o interior de Alagoas, como sempre, uma aventura. As atividades extensionistas foram um sucesso, vinte dias de ações altruístas através do trabalho voluntário, buscando formar multiplicadores de conhecimento aqui e acolá. Tudo valeu a pena. Enquanto trabalhávamos dia e noite, noite e dia, rolava no Brasil a conturbada e ofensiva campanha presidencial de 2018, uma verdadeira batalha campal ao nível da sarjeta, trazendo consigo novidades que mudariam drasticamente os rumos do país. Indiferentes à efervescência das eleições que se aproximavam, rondonistas de várias universidades se empenhavam em uma missão que, de certa forma, dadas as devidas proporções, resgatava um pouco do espírito de integração que o marechal Rondon levava em suas viagens pelo interior do país. Quase um século depois dessas viagens, na pequena Coité do Noia, a pouco mais de 20 quilômetros de Arapiraca, alunos e professores da UFSCar e da UNISUL passavam os dias com o sentimento coletivo de dever cumprido, pelas metas alcançadas.
Após o término da Operação Palmares e a minha volta para casa, em São Carlos, no interior de São Paulo, algum tempo transcorreu até que a inércia da escrita fosse rompida e as primeiras linhas pipocassem na tela do computador. O livro havia sido uma proposta aprovada pela Pró-Reitoria de Extensão (PROEx) da UFSCar, não havia escapatória, eu tinha que escrever. Num primeiro momento, foi muito fácil transformar em texto as anotações que eu religiosamente fiz enquanto estive envolvido com o Projeto Rondon. Era a minha terceira participação nessa bela iniciativa do Ministério da Defesa com o da Educação. A escrita era quase convulsiva, rictos encarnados em palavras recriavam cenas felizes que eu vivi e que revivia à medida em que a história era contada. Ainda havia contexto e inspiração para aquilo tudo, sob a égide das ações e das relações sociais entre pessoas civilizadas, a história pouco a pouco deixava o campo da abstração e ganhava ares de realidade. Como tinha que ser. Veio então o domingo que mudaria tudo, dia 7 de outubro, primeiro turno das eleições presidenciais.
A despeito do que eu via, ou imaginava ver, brilhava no Brasil a insígnia do ódio e do autoritarismo, ia para o segundo turno das eleições um extremista de direita notório por sua carreira política raquítica e por suas inúmeras declarações boçais e polêmicas. Nunca fez absolutamente nada, a não ser, controvérsias. Uma atrás da outra. Parecia que o complô de ignorantes havia somado forças junto dos eleitores desqualificados, dando voz a políticos igualmente desqualificados. O resultado do primeiro turno das eleições foi o primeiro susto. Para mim, independentemente do que viria no segundo turno, aquele resultado representou a derrota da democracia, tão duramente reconquistada. O candidato da extrema-direita tinha como marca de campanha a arminha que fazia com as mãos, usando os indicadores como cano e mira. A retórica conservadora e retrógrada era só um verniz para ocultar as intenções golpistas que faziam parte de sua agenda paralela. Dava medo, nem tanto do extremismo radical da ultradireita ultraconservadora e reacionária, mas sim, do candidato irresponsável, inconsequente, inconstante, leviano, burlesco, boçal e despreparado que se encaminhava para o segundo turno.
O supremo despautério se concretizou na noite do último domingo de outubro. A extrema-direita vencia a corrida presidencial no Brasil miscigenado, de caboclos, cafuzos e mulatos, como o que vos dirige esse texto. Nada mais seria como antes, a roda do tempo passaria a girar no sentido anti-horário, cada giro reverenciaria o negacionismo, o terraplanismo, o geocentrismo, o autoritarismo, o radicalismo, o extremismo e vários outros ismos
característicos do retrocesso. Por coincidência, nessa mesma época eu lia um livro do respeitado jornalista Fernando Pacheco Jordão, sobre o assassinato, nos porões da ditadura, do também jornalista Vladimir Herzog, então diretor da TV Cultura. De repente, o enredo repugnante daquele livro virou realidade de novo, voltava a ser notícia, a linha dura dos anos de chumbo retornava triunfante ao governo federal, com outros nomes, mas com os mesmos personagens. Era simplesmente inacreditável, o único candidato sem mínimas condições para governar vencia uma eleição democrática, a escolha do povo era a escolha da maioria. Virei estrangeiro no meu próprio país. Cientistas políticos compartilhavam o mesmo auspício de que tempos terrivelmente difíceis viriam pela frente. Todos estavam certos.
De repente, eis que uma imensa e tenebrosa cumulonimbus invadiu os céus do país, anunciando o período das trevas que viria pela frente. Voltamos aos tempos de barbárie, num claro retrocesso histórico, o presidente eleito comportava-se como um Napoleão de manicômio, alguns meses após a sua posse, o Brasil já era outro país, artistas, jornalistas, ambientalistas, acadêmicos, somente para citar alguns, eram duramente atacados e perseguidos pela política vigente. A destruição das artes, do meio ambiente e do ensino seguiu a mesma cartilha da extrema-direita de qualquer canto do mundo. As universidades federais definhavam, profético e sempre atual, Darcy Ribeiro disse certa vez que a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto
. Vivíamos essa triste realidade enquanto eu corria para finalizar logo o livro, ainda decepcionado com o equívoco eleitoral, por assim dizer, dos brasileiros. Eufemismos à parte, naquele momento, a perspectiva de disponibilizar um livro sobre Projeto Rondon, extensão universitária, ações sociais, me embrulhava o estômago, porque simplesmente já não havia mais ambiente para isso. Parcelas da sociedade que viviam em uma semi-clandestinidade, escondidas em subterrâneos desde o fim dos anos de chumbo, destilavam veneno despejando ódio e rancor sem trégua. O Brasil se tornava um país polarizado e triste.
As boas lembranças da Operação Palmares eram inconciliáveis com o que se via nas ruas, tempos de perseguições e de censura. Começava uma história interminável, rumo ao fundo de um poço sem fim, ninguém sabia onde ela ia dar. Era uma loucura de manhã, outra à tarde, só para encerrar o dia com uma outra maior ainda à noite. Eu via tudo com tremendo pessimismo, respaldado por setores mais intelectualizados da sociedade, o Fulano eleito atropelava tudo como se fosse um rolo compressor, parecia querer destruir todo e qualquer resquício de onde pudesse haver traços da esquerda. A tal da iminente ameaça comunista, que em 75 resultou na morte do Herzog, renascia do esquecimento de carona na inútil e patética verborragia palaciana brasileira. Ter que aguentar quatro anos daquela farofa toda parecia uma prova olímpica das mais duras, ou um castigo infelizmente merecido pelo culto à falta total de inteligência. O eleitor pacóvio que havia metido todo mundo naquela tremenda encrenca, resignava-se a olhar para o chão, a ficha não tardou a cair. A nova velha política brasileira parecia ser aquele lodo fétido que não servia para nada, a não ser poluir. A fedentina incapacitante servia de estímulo para que eu escrevesse sem parar, com um misto de alegria e de tristeza. Alegria pela lembrança, tristeza pela saudade, de tempos recentes que já pareciam distantes no passado. Foi difícil, ninguém disse que não seria.
Até onde ia a hipocrisia de uma nação? De acordo com o escritor francês Honoré de Balzac, é nos costumes que ela se revela, a chegada do Beltrano à presidência sublinhava essa frase com caneta marca texto fluorescente. Quem se dizia ambientalmente consciente nas sondagens, elegia o mais tóxico de todos os candidatos. Aqueles que bradavam aos quatro ventos a favor das instituições e da democracia, do ensino público de qualidade, da cultura ampla e diversa, apoiavam o político mais contrário a isso tudo. Da boca para fora, o Brasil exaltava as virtudes das relações civilizadas e honrosas, baseadas em princípios de ética e de cidadania. Era tudo pura fachada, um monte de falácias lançadas a esmo, jogadas ao vento, espalhadas por aí como sementes de falsidade. Vencia as eleições presidenciais o político mais delinquente que já chegou a Brasília, o cidadão que nunca seguiu regras, cujo histórico de homem público era recheado de sucessivas e subsequentes estupidezas e quebras de decoro. Personagem criado pelo Satanás, de acordo com uns, ou ungido de Deus, de acordo com outros, havia no atual presidente uma sensibilidade de paquiderme e uma inteligência de azêmola com encefalite crônica, como manter um perfil desses jogando dentro das quatro linhas? Acho que só a história dirá. Eu não votei, nem jamais votaria no Sicrano, como minoria, tive que engolir o gosto amargo da derrota, dividindo a conta salgada da escolha estapafúrdia com os verdadeiros culpados.
A falta de visão holística da extrema direita indicava para um retrocesso já a curto prazo. Eu tenho uma teoria para o resultado, a meu ver, catastrófico, ou melhor, apocalíptico das eleições presidenciais de 2018. Na verdade, as minhas teorias costumam ser furadas, mas essa é a percepção de um eleitor de meia idade. Para boa parte dos brasileiros, tudo começou nas eleições de 89, vencida pelo fenômeno midiático Fernando Collor de Melo. Um desastre, por agir com perfídia ao confiscar a poupança do brasileiro, após ter jurado de pés juntos que jamais faria isso, em pouco tempo o rei ficou nu. Sem a maquiagem da mídia, sem lenço e sem documento. Eu não votei nele, muito pelo contrário, fui para as ruas, de cara pintada, para derrubá-lo. Já em 94, foi fácil eleger o super ministro da fazenda Fernando Henrique Cardoso, pai do exitoso plano real. Também foi fácil reelegê-lo em 98. Só que o FHC não fez herdeiro político, longe de sua índole fazer isso. Sobrou então uma larga avenida para Luiz Inácio Lula da Silva ser facilmente eleito em 2002. Diga-se de passagem, não restava dúvida, reeleger o Lula em 2006 também foi moleza. Diferentemente do FHC, o Lula fez um herdeiro político, a Dilma papou as eleições de 2010 facilitando a vida do eleitor brasileiro. Idem, mas não muito, para as eleições de 2014. Foi apertado, mas reeleger um presidente não pode ser considerado uma tarefa difícil. Aí vieram as eleições de 2018, difíceis, um cenário mais exigente para o eleitor brasileiro, demandando algo que ele simplesmente não sabia fazer. Desconhecendo totalmente qual proa tomar, mais perdido do que surdo em bingo, o eleitor apostou no que as vísceras diziam, houve um apagão mental de proporções bíblicas e acabou sendo eleito um político extremista, antidemocrático e, acima de tudo, despreparado. Talvez esse tenha sido o maior ato de loucura coletiva já praticado na história da humanidade. Uma aposta de risco sem cabimento, ousada até mesmo para os nossos padrões de imprudência eleitoral. Sentia-me prostrado diante disso tudo.
Cruzar os braços, porém, seria dar a vitória de bandeja para o protofascista e seus súditos apoiadores. Na noite de 10 de abril de 2019, terminava para mim a mais longa operação do Projeto Rondon, a única que eu havia vivido duas vezes. A primeira, quando de fato fui para Alagoas e trabalhei manhã, tarde e noite nas oficinas do Rondon, e a segunda, quando escrevi cada linha desse livro, revivendo de novo a experiência em sua plenitude. Com a mesma emoção. A Operação Palmares havia durado longos quinze meses, desde a nossa aprovação, junto ao Ministério da Defesa, em dezembro de 2017, passando pelas duas semanas em Coité do Noia, até a quarta-feira de chuva forte em São Carlos, quando digitei o ponto final em Por dentro da Operação Palmares
. Estava ansioso para concluir logo o texto, faltava pouco, mas quanto mais eu me aproximava do mencionado ponto final, mais distante ele parecia de mim. Boa parte do texto havia sido escrita durante as minhas férias, tranquilo e longe das aulas, mas o semestre letivo de 2019 já estava em sua segunda semana, e nada de terminar a primeira versão do livro. Já próximo de esgotar o prazo dado pela PROEx, pouco após a minha aula de Desenvolvimento de Processos Químicos, no período da manhã, tranquei a porta da minha sala, me armei de café bem forte, e digitei o que faltava. Feliz com o resultado final e mais ainda com a tarefa concluída.
Participar do Projeto Rondon é ter uma experiência que fica em nossa história para o resto da vida. Na minha terceira participação, resolvi relatar como foi, passando para o papel um pouco do que é viver essa atividade com ares de aventura. Entre a vontade de participar, e a participação propriamente dita, foram vários meses. Entre a participação e a conclusão do livro, foram outros tantos. Nesse ínterim, o Brasil virou do avesso, comandada pela figura grotesca e vulgar de um presidente sem escrúpulos, Brasília se tornou um verdadeiro ninho de carcará, com perdão à analogia com a bela ave do sertão nordestino. Perdi o contexto de antes, tive que reparametrizar a escrita, silenciando algumas passagens, impondo-me uma incômoda censura prévia, como aquela que foi instrumento de repressão e de intolerância nos idos da morte de Vladimir Herzog, um jornalista que gostava de cinema. Tirei do texto algumas conversas que nós tivemos, todas estimuladas pelas eleições que se aproximavam. Não consigo prever até quando durará esse clima hostil de terror contra as universidades públicas que hoje encontro ao digitar essas linhas, ninguém estava preparado para o nível rasteiro das agressões. Não adiantava lamentar e nada fazer, quando a universidade extrapola as próprias fronteiras e estende a mão para a sociedade, ela encontra um Brasil que clama por socorro, que precisa ser ouvido. Esse país não pode e nem deve ficar calado. Falta-me a carga ideológica suficiente para a coragem de dizer tudo o que eu gostaria. Talvez os ventos mudem de direção e esse prólogo até perca o sentido. Assim espero. Fica registrada, porém, a conjuntura histórica, de quando a extrema-direita se elegeu nos trópicos.
Enfim, muito mais do que um simples desabafo, esses parágrafos iniciais servem especialmente para besuntar o conteúdo que vem a seguir. O mês de