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Cá entre nós
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E-book228 páginas2 horas

Cá entre nós

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Sobre este e-book

Cá entre nós resgata não só as vivências de uma octogenária, mas, principalmente, faz o retrato de uma época. Nele coloque a menina, a irmã, a esposa, a mãe, enfim todas as mulheres que foi e sou neste mundo. Resgato aqui as minhas raízes interioranas, sertanejas, trazendo-as à tona ao longo dos anos desde o momento em que fico órfã de mãe na infância.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de dez. de 2021
ISBN9781526029263
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    Cá entre nós - Bernardina Gonçalves Cordeiro

    cover.jpg

    A morte de mãe não doeu. Ah... Mas como doeu sua ausência! Em meu cavalo alazão, galopava terreiro afora à margem do mundo adulto. Minhas pernas magricelas corriam e corriam. Lá ia eu, com a imaginação à solta: meu cavalo era o mais veloz. Meus gritos de alegria perdiam-se em meio à algazarra dos sobrinhos com idades próximas à minha de seis anos.

    De súbito, esgotou-se a minha energia. Senti um mal estar estranho que me obrigou a encostar o cavalo de pau numa parede e sair de fininho para ir deitar. Não sei o quanto dormi, nem se os anjos me acalentaram naquele 24 de agosto (era o ano de 1943). O fato é que minha sobrinha Lena, mais velha que eu quatro anos, com olhos plenos de lágrimas, acordou-me e revelou - a mim, criatura inocente, sem a menor noção do conceito de morte - que mãe tinha falecido. Ao tocar-me, Lena percebeu que eu queimava em febre. A doce letragia voltou, abrigando-me, novamente, os braços de Morfeu.

    Quando acordei, a casa tinha um zum...zum...zum... abafado. Sim, era isso! Havia gente conversando em voz baixa. Encontrei na sala vários dos meus doze irmãos com diversos outros parentes. E mãe? Ela simplesmente dormia no banco. Fui imediatamente acordá-la. Barraram meu caminho. Voltaram a pronunciar o conceito vazio da palavra morte.

    Assim, fui olhar a doçura que minha irmã Faustina trouxera ao mundo no dia anterior. Nem ela, nem o neném estavam no quarto. Perguntei ao Nequim - Manoel, marido dela - e este me falou que ela estava na casa de tia Adelina, irmã do meu pai. Eu quis ir lá, pois estava encantada com o neném. Era Rosa que tinha nascido. Nequim foi lá me levar. Era uma pessoa muito gentil. Seu filho Sílvio teve a quem puxar.

    Quando cheguei da casa da tia Adelina, já era noite. A casa estava cheia de gente. Começara uma cantoria esquisita que só dava trégua para a reza. Os cânticos persistentes deixaram-me com um medo frio, captando pela primeira vez na vida o sentido do termo fúnebre.

    Outra manhã de sol se impõe, sem notar a penumbra que ronda os homens. Minha mãe foi carregada numa rede, como era o costume da gente humilde daquelas bandas. Dinha Santa - minha irmã e madrinha - carregando no barrigão sua filha Nana, corria na frente a chorar com as mãos na cabeça. E qualquer outra lembrança desse dia virou pó. Não me lembro dos outros irmãos. Não me lembro de ter ido ao enterro.

    Conta meu irmão, Marciano, que ele foi aos Pandeiros para avisar dinho Livino, mais um dos irmãos. Oh, pobre coitado! Nem um cavalo conseguiu. A pé, percorreu por volta de nove léguas, o que na nossa medida atual corresponde a quarenta quilômetros. Tirou a roupa e, com esta na cabeça, atravessou o rio Pandeiros. Chegou a casa, bateu na janela, deu o recado, voltou. Suas pernas finas trotaram sem descanso as mesmas léguas em retorno.

    Eu me lembro das minhas irmãs, dias depois, tingindo as roupas com tintol preto. Guardamos todos, como era de praxe, Cá entre Nós -15- um ano de luto fechado. Com as roupas tingidas, tal qual aves agourentas, ficamos à mercê da sorte.

    Nossa irmã Josina, a Jusina, tomou para si o papel de mãe. Que espírito de contraste! Tanta força e tanta coragem para enfrentar a lida! E tanta delicadeza e tanto carinho para distribuir entre as tantas crias menores!

    Ela vivia querendo que a alma de mãe aparecesse para ela. À medida que Jusina ia para o quintal invocar mãe em voz alta, o medo de almas cantando aquelas músicas fúnebres do velório ainda vibrava em minhas entranhas.

    Certa vez, alguns meses depois da morte de mãe, eu estava dormindo na casa da tia Luíza, em um quarto que dava abertura para a sala. Era de lá que vinha uma luz estranha e iluminava uma boneca de papelão, pertence da minha prima Honorinda. Desprovida de brinquedos, porém armada de sonhos e devaneios infantis, eu era encantada por aquela boneca. E aquela luz lançada sobre aquele objeto exercia um fascínio ainda maior em mim. De repente, dei-me conta de que eu estava com a cabeça no colo da minha mãe, com ela catando cafuné em minha cabeça. Uma sensação de pavor inundoume, fazendo-me gritar pela tia Luíza. Ela correu ao meu encontro para ver o que havia acontecido:

    - Que foi, menina??? Por que é que cê tá me gritano???

    - É minha mãe que ta'qui, tia Luíza!!!

    - É bestage sua, sua mãe já morreu! Cê tava era sonhano!!!

    - Não, tia Luíza, eu tava acordada!!! Na hora que eu chamei a sinhora foi que ela sumiu... E a vida se entrelaça em nós

    Eu devia ter uns quatro anos, estava numa esteira no chão, com a cabeça no colo da minha mãe e esta me fazendo cafuné, quando gritaram:

    - Ô de casa!

    Minha mãe respondeu:

    - Ô de fora!

    Eu fingi estar dormindo. Minha mãe pegou-me, levantou na maior dificuldade, levou-me para cama, para depois atender ao chamado.

    De outra vez, por volta dos meus cinco anos, estava aproximando a data da celebração da missa e minha mãe ia a Januária comprar tecido pra fazer nossos vestidos. Eu, toda eufórica com a novidade, ficava pedindo pra mãe:

    - Mãe, a sinhora trais uma fita pra mim pô no cabelo?

    - Trago, caçula.

    Fiquei tão alegre porque ia ganhar uma fita, que dependurei num pilão na sala. E ela, absorvida, fiando as linhas, não viu que eu estava com as mãos lá. Aquela monstruosidade caiu em cima de mim, quase me matando.

    Lá foi minha pobre mãe, correndo comigo nos braços, até o arraial pra ser socorrida por seu Antônio, que se achava um conhecedor da medicina. Fiquei toda machucada, com o rosto inchado.

    As primeiras chuvas depois da morte de mãe ainda não haviam chegado. Nenhuma folha se movia. Além do lamento da rolinha fogo-apagou, nenhum pássaro chilreava. Acocorada junto ao riacho, curtia minha letargia após o almoço. Iam se misturando os grãos da areia que eu volvia lentamente com um graveto.

    - Dina! Quedê ocê? Dina! Era a voz do meu irmão,

    Joaquim.

    - Diiina!

    - Tô aqui, J'uaca, de junto do riacho! - gritei de volta.

    - Num tô veno, minha irmã.

    - Destrás do pé de cagaita.

    Desengonçado feito graveto de pequi, trazia na mão um pedaço de rapadura.

    - Dá um pedaço, J'uaca! Só um naco! - implorei com a boca salivando.

    - Morde só um tiquim!

    - Tá bom, home! Dá'qui.

    Rapadura era o mais próximo de bala doce que a criançada das Gerais conseguia.

    - Dina, cê já tá sabeno?

    - Sabeno de quê?

    - Cê vai morar no comércio.

    - É mermo, J'uaca? Cê num tá mangano d'eu, não?

    - Tô não, minharimã. Juro por essa luz que alumia.

    - Cuméquelá?

    - Tem casa tudo imendada na outra. E onde a gente caminha chama rua e passa berano as casa.

    - E tem muita casa?

    - Dimais! Tem um lote de casa, minina.

    Que alegria!!! Tomei ares de importância. Ia não só conhecer, mas morar no comércio - na verdade, era como chamávamos a pequena cidade ribeirinha de Januária.

    E os dias marchavam lerdos me enchendo de ansiedade.

    Finalmente, de cima do cavalo, único meio de transporte por aquelas bandas, despedi-me de todos com um sorriso de orelha a orelha.

    Eu, Dina,... somente eu, ia morar no comércio.

    Conheci não só Januária, mas também o monstro da raiva. Conheci tia Maria Gobira e seu fiel escudeiro, o relho.

    Quisera voltar pro meu Riacho! Quisera mergulhar em suas águas infestadas de esquistossomose. Quisera ouvir o riso dos meus sobrinhos misturando-se ao meu. Quisera chapinhar incansável pelas águas procurando piaba. Quisera sentir Jusina pentear delicadamente meus cabelos e encher meu rosto de beijos.

    Fogo'pagô... Fogo'pagô... Fogo'pagô... Ainda consigo escutar as rolinhas. Fogo'pagô... Fogo'pagô... Fogo'pagô...

    Tia Maria, uma versão mais rude de Cruela, impunha autoridade pelo medo, sem jamais dirigir-me um olhar de carinho.

    Já na primeira semana, o medo me invadiu. Fiquei um dia inteiro escondida de tia Maria. Fui me esconder numas moitas do quintal, o qual era muito grande (tinha mais ou menos um alqueire; até pasto pra alugar!). Percebi sua tensão com meu sumiço. Rodava toda aquela área e, muitas vezes, passava perto de mim, me chamando. Nesses momentos, meu coração acelerava feito coração de beija-flor. Estava apavorada com a possibilidade de a fera conseguir farejar meu medo. Fiquei o dia todo ali. Anoitecia e o medo de almas do outro mundo ficou maior que o medo do monstro que habitava o mundo meu. Fui vencida...

    Na primeira vez em que entrei na igreja, fiquei anestesiada com tanta beleza. Tudo era novidade para mim. Aquela parede alta, com desenhos de santo lá no teto... eu só faltava quebrar o pescoço de tanto olhar pra cima. Aquele tanto de santo no altar, aquele tanto de banco, um tanto de gente. Nem desconfiava que alguém pudesse estar me observando e até admirando tanta ignorância. No dia que fui confessar pela primeira vez, o padre me deu a maior bronca porque perguntou os meus pecados e eu não soube falar. Mas, também, qual seria o pecado? Apanhar sem necessidade? Ser motivo de zombaria para todos? Porque eu falava tudo errado? Ou porque eu era a mais pobre e humilhada?

    Só sei que, na época, meu maior pecado foi fazer a primeira comunhão com o vestido mais feio do mundo.

    Meu português lamentável: - Ur minino, cuma é qui chama essa fulô?

    - É margarida e não é fulô, burra! É flor!

    - Mode que qui chama flor?!

    -Mas é burra que chega mesmo! É porque é FLORRRR!

    E eu ficava baratinada sem entender o porquê.

    Tia Maria me mandava chamar seus netos pra jantar e eu abria a boca, pois eles estavam na tia Rosa e era bem longe: Ur miniiiino, vem comê o dicumêêê!...

    Naquela casa morava Dinha Vanju, filha de tia Maria, cega desde o início da adolescência. Fui levada para servir-lhe de guia.

    Um dia, fiquei muito alegre. Dinha Vanju comprou um tamanco para mim. Aos sete anos, pela primeira vez na minha vida, coloquei em meus pés um calçado. Fiquei encantada. Agora, meu desejo era ter um vestido de crepe (crepe era seda). Será, meu Deus, que vou ter esta sorte?

    Um dia a minha tia Maria adoeceu. Ela tinha uma saia de crepe. A imaginação criou asas: se essa véa morrê, eu vou pegar aquela saia e mandá fazê um vistido pra mim. E o diabo da velha não morreu. Não herdei a saia e continuei sofrendo naquelas garras.

    Joanita era a filha caçula de tia, nova e muito bonita, separou-se do marido que não prestava, por isso morava na casa da mãe.

    Logo, o prefeito e manda-chuva de Januária, casado, mas muito mulherengo, se interessou por ela. Insistiu tanto, que ela terminou caindo na lábia dele. Começaram os encontros no maior sigilo. Só à Pipiu, negra que morava na casa, ela confiava seus segredos.

    Um dia, não sei como, tia Maria ficou sabendo de tudo. E, por diversas vezes, levou Joanita para o quarto. Batia-lhe tanto que fazia dó.

    Às vezes, chamava o filho João Gobira, para ajudar bater. Ele era uma prova viva de como a beleza pode mascarar o mal. Sovava a irmã até que esta ficasse acamada, cheia de hematomas.

    Numa dessas surras, tia Maria começou a passar mal. Acho que devido ao cansaço de tanto bater na coitada da Joanita. Chamaram um médico às carreiras, a casa encheu de gente. Ouvi falar que foi por causa de um menino que tinha caído da mesa. E eu tão burra, que pensei comigo mesma: Ué... Não vi ninguém cair!...

    Um dia, Joanita ia passando pela casa de João Gobira, mas do outro lado da rua. Era daquelas típicas ruas da época: muito larga. João Gobira já ficava com o revólver na venda que ele tinha em frente a sua casa. Descarregou o revólver na direção da irmã. Ela saiu em disparada, ilesa, mas em justificado pânico.

    Para não morrer, Joanita foi para Belo Horizonte com uma mão na frente e outra atrás. Ainda bem que não tinha filho. Depois arrumou uma pessoa lá e teve três filhos. Daí, eu não soube mais dela.

    Quando eu cheguei, morava uma ex-escrava na casa de tia Maria, a Pipiu. Era a prova viva de que no Brasil a escravidão não havia realmente terminado.

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