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Os lindeiros
Os lindeiros
Os lindeiros
E-book281 páginas3 horas

Os lindeiros

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Sobre este e-book

A saga de "Os lindeiros", o segundo romance de Henrique German, apresenta uma escrita estrutural similar aos clássicos. Duas famílias dividem terras num sertão de séculos atrás, onde uma serra, de riqueza mineral ímpar, é a protagonista.

A disputa se dá entre os Vidais Medeiros e os Souzas Aragãos. Se no início do romance prevalece a ordem no limite das posses, um acontecimento jogará a narrativa para eventos sanguinários.

Os brancos, senhores das terras e das minas, oprimem negros e indígenas, mas estes não são secundários na história, alcançando suas vitórias em um quilombo e na aldeia Tapuia. Conheça a história de Miguel Carlos e acompanhe, num fôlego só, esta obra literária.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de nov. de 2021
ISBN9786550790981
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    Os lindeiros - Henrique Germann

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    Textos: Henrique German

    Ilustração capa: Délcio Almeida

    Edição: Cláudia Rezende

    Revisão: Leida Reis

    Capa, projeto gráfico e diagramação:

    Deborah C. G. Rodrigues

    Catalogação na Publicação (CIP)

    Bibliotecária responsável: Cleide A. Fernandes CRB6/2334

    Este livro não pode ser reproduzido, no todo ou em partes,

    sem a prévia autorização do autor.

    Belo Horizonte — 2021 — 1ª edição.

    www.paginaseditora.com.br

    contato@paginaseditora.com.br

    Em memória de Henrique e Helena,

    pais meus tão amados.

    Ao valente povo brasileiro.

    Prefácio

    J. Afrânio Vilela

    Desembargador do TJMG

    Prezados leitores,

    Quando Henrique German me incumbiu de fazer o prefácio de Os lindeiros, sua mais recente obra, disse-lhe, com pureza d’alma, não ter competência para tanto. Justifiquei-lhe que prefaciar um livro equivale a batizar um filho: é muita responsabilidade! Inegociável, ele retrucou. Aceitei a honraria, imerecida, e, com alegria, tornamo-nos compadres ainda sem nos conhecer pessoalmente.

    Na ocasião, pensei: "lerei Os lindeiros com vagar…". Porém, já na primeira assentada devorei a metade da obra! O tempo passou rápido, e fiquei prisioneiro das letras de Henrique, que tem, característica sua, um modo especial de inserir o leitor no ambiente, projetando personagens e cenários no âmago dele, e não apenas os descrevendo. Apercebi-me de que ele imagina o que cada leitor sentiria se vivenciasse a situação apresentada.

    Henrique German tem uma sensibilidade diferenciada para construir enredos, de modo que, apesar de serem criações imaginárias, as cenas, os diálogos, os trejeitos verbais são pontos relevantíssimos e agradáveis.  O mesmo ocorre com a descrição dos trejeitos físicos das personagens que ficam alocados em nossa mente numa clara expressão de ideias e informações. Para mim, seus personagens são seres vívidos, modelos que foram pintados pela sua escrita. Os panoramas que os envolvem, os fatos que revelam idiossincrasias, temores e amores rudes, vibrantes ou intensos — tudo isso são pinceladas vigorosas de suas tintas.

    A cultura geral invejável que Henrique possui emana dele com simplicidade e fluidez, o que aumenta o prazer de ler seus textos. Henrique é capaz de projetar a história em nossas mentes como fosse um holograma situado à frente de nossos olhos, com imagens em terceira dimensão; assim o leitor quase consegue tocar os objetos, as pessoas. Em uma passagem na qual os grupos adversários lutam no alto de uma serra, o leitor sentirá medo de cair do penhasco, tão palpável se torna a ficção contada.

    German acentua essas partes com naturalidade, porque usa palavras certas, oportunas e dimensionadas para cada diálogo, para cada descrição, para cada momento. Parece, até, combinar a fonética das palavras com o ritmo da cena na medida precisa para conduzir o leitor ao sofrimento ou à felicidade, envolvendo-o emocionalmente com o desenlace do imbróglio. É expressão que flui de sua arte de dizer o causo, estruturar os personagens, criar o ambiente, montar uma trama repleta de expectativas, que se mantêm e se renovam com o desenrolar da saga de duas famílias, cujas propriedades lindam próximo à Serrania Azul, em busca de ouro e diamantes.

    Essa clareza de imagem que ele transfere ao leitor é de uma suficiência de convencimento que equivale a estar dentro daquele ambiente, coparticipando da trama, em face da riqueza de detalhes. Não sei se agrado o autor com esse comentário. Porém, sinto-o assim: transparente ao expressar o que pensa a cada cena, usando uma construção gramatical escorreita, mas sem burocracias; é como ler uma fotografia, em vez de palavras organizadas.

    Antes de conhecer Henrique pessoalmente, conheci-o pela sensibilidade que, ouso dizer, possuímos em relação às coisas do interior das Minas Gerais: o jeito do povo do sertão, a simplicidade das pequenas comunidades, a fazenda, a roça, a capacidade de admirar as serras, seus cumes e o vale cortado por um rio. É nesse tipo de paisagem que ele insere um belo texto, com concatenação de ideias que nos leva da fruição estética à reflexão sobre a realidade do tema escolhido por ele. Henrique nasceu na capital e percorreu as regiões das Minas Gerais enquanto membro do Ministério Público. É como ele gosta de dizer: Sou mineiro, mineiro demais!.

    Henrique possui excelentes publicações. Porém, se superou em Os lindeiros! Nas primeiras linhas, tive a sensação de transpirar como os homens que ele descrevia vestidos socialmente, e que, assim como os jagunços, portavam faca e revólver na cintura, sob o sol escaldante da tarde num sertão imaginário, de um nordeste qualquer. Regozijei-me com as mulheres em vestidos de festa, cujas leveza e pureza refrescavam aquela terra de brutamontes. Lendo Os lindeiros senti-me no solar dos Vidais Medeiros. A pormenorizada descrição do local e da cena que introduz a narrativa, marca indelével do estilo que Henrique usa como ninguém, coloca-nos dentro da história, permite-nos tocar os detalhes e enxergar as rugas nos rostos crispados sob o sol; os trejeitos dos personagens entram em figuras pelos olhos e ganham nosso imaginário. É como se estivéssemos partilhando da rudeza daquela situação.  

    Germam brinca com o sentir do leitor; com suas reminiscências. Estrutura nosso pensamento no enforcamento de um homem, na brutalidade do desmembramento de seu corpo pelo carrasco e o espalhamento das partes, desde aquele ponto até além serra, rasgada de mil despenhadeiros, com cristas de pedras irregulares, eriçadas como as de um galo alvoroçado. E daquela cena brutal, a narrativa enleva-nos e nos faz admirar, quase acariciando, a ternura benfazeja, qual a visão de uma fada, ao nos apresentar Malvina, capaz de desfazer a ferocidade do patriarca que mandava ceifar vidas ao transformá-lo em um suave pai que se acalma ao sentir a carícia da moçoila em sua barba.

    Outro ponto marcante, e que nos coloca dentro do enredo, como se lá estivéssemos, é o casamento de Anacleto Vidal com D. Inês. A riqueza dos detalhes na descrição é lida e sentida como se imagem fosse. Pode-se, por exemplo, contemplar a beleza da noiva, em seu vestido riquíssimo e com sua tiara a despertar invejas às outras moças casadoiras. A atmosfera fica densa ao apresentar Inês e Aurélia, e a ambiguidade dos dois maridos: Anacleto sem amor para com Fernão, o filho; Carlos Otaviano, feliz com o Miguelzinho. E é assim que se desenvolve, após uma tragédia, a vida desses dois jovens: unidos pelo destino, separados pelos acontecimentos; depois de criados como irmãos, são distanciados pelo ódio entre as famílias.

    Ao vincular os personagens por várias gerações, Henrique evoca as fases históricas da ocupação das Gerais, num sertão com aspecto quente e agreste na planície. Em dissonância, naquele local ermo, ficam as serras com suas brisas e flores; nessas paisagens estão os amores que o autor escreveu. Na outra perspectiva, há a ambição e o jogo de poder entre famílias dinásticas. Contudo, em ambas, a agressividade sobressai! Assim eram os Vidais Medeiros, ambiciosos e ricos, e os Souza Aragão, também ricos, porém mais importantes pelos títulos de marques e barões.

    É isso! O homem briga por causa de três barras: de ouro, de terra e de saia, esta no bom sentido do amor; e também por prestigio que, naquelas paragens, era mais valioso que o diamante e o ouro!

    Esses são os ingredientes que fazem o leitor ficar preso às páginas de Os lindeiros. É, literalmente, de época! O romance mostra a crueza do cotidiano nas terras das riquezas, das Minas lavradas com sangue, contrapondo a ganância que escravizava à amizade de infância que libertou. E não é alheia à trama a união entre negros fugidos de seus donos, indígenas e brancos para se livrarem da opressão de patrões violentos, na busca pela igualdade num tempo e região em que a lei não chegara, e a Coroa queria tão somente receber altos tributos. Nesse contexto, a vingança podia ser saboreada com gosto e vagar.

    Em Os lindeiros a mulher é concebida como frágil e meiga, mas, ao mesmo tempo, forte e condutora das famílias em conflito. São, portanto, seres elevados, quase sublimes. Talvez seja a religiosidade do escritor que tenda a representar as mulheres como mães e protetoras. São várias e diferentes; todas especiais.

    Há, efetivamente, uma sucessão de histórias muito bem concatenadas dentro da principal. Os pontos de articulação são vários: ora ódio passado de geração em geração, ora amores proibidos. Todos esses fatores perduram no enredo e provocam grandes emoções ao leitor.

    É imaginação do autor; é criação. Porém, fatos históricos são evocados, como os interesses comerciais da época, os mecanismos da extração do ouro e das pedras preciosas e, quando diminuída a produção dessas, a introdução do gado como atividade econômica naquela região, que pode ser a das Minas. É efetivamente uma trama bem urdida na realidade humana em que amor, vingança, poder, riqueza e miséria são ocorrências episódicas em meio às dinâmicas de sobrevivência e progresso.

    O desfecho, condizente com o enredo, é surpreendentemente criativo, histórico e civilizatório. E, por isso, há de ser lido tendo-se em mente que o relacionamento social, individual ou de grupos, começa, avança, retrocede, gera expectativas de melhora, modifica-se ou esvai-se. A condição essencial para sua existência são finitude e descendência. A vida e a história conduzem sempre a um novo começo. E é para lá que os convido, caros leitores.

    Desfrutem da leitura de Os lindeiros, este espetacular romance com que Henrique German nos presenteia.

    Sumário

    Prefácio

    Parte 1: Origens

    Capítulo I

    Capítulo II

    Capítulo III

    Capítulo IV

    Capítulo V

    Capítulo VI

    Capítulo VII

    Capítulo VIII

    Capítulo IX

    Parte 2: Fernão e Miguel

    Capítulo I

    Capítulo II

    Capítulo III

    Capítulo IV

    Capítulo V

    Capítulo VI

    Capítulo VII

    Parte 3: Joaquim e Malvina

    Capítulo I

    Capítulo II

    Capítulo III

    Capítulo IV

    Epílogo

    parteum

    Capítulo I

    Ia alta a tarde quente no arruado, naquele dia engalanado, com vistas às tristes cerimônias de havia muito traçadas e ansiadas.

    O povo do lugar já se ajuntava, suando em bicas, sob os trinta graus reinantes. Os homens transpiravam debaixo dos coletes de couro, ensopando as grossas camisas de algodão cru, costuradas, invariavelmente, à mão, com linhas gordas e fortes. Nos cintos largos das ancas dos homens, a faca ou o punhal, o facão e a pistola. As botas de couro, todas elas, da cor do chão duro e poeirento, pintadas, dos canos aos tacões de madeira, do rico pó daquelas bandas.

    Até as fitas, bem como as bandeirolas coloridas, esticadas em varais improvisados, pareciam suar no ar tépido, imóvel, abraçado pelas serranias azuis ao fundo. As pedras do calçamento, onde havia, por sua vez, também lançavam, vingativas, calor a toda parte, como que a devolverem um presente indesejado, incômodo mesmo.

    As mulheres, nos vestidões rodados, embora sob muitas camadas de pano, pareciam sofrer menos com a canícula, por alguma razão misteriosa. É bem verdade que a maioria das senhoras concentrava-se debaixo da coberta de palha estendida por sobre o caramanchão que se espichava da lateral maior do Solar dos Vidais Medeiros, privando elas ali, animadas, da companhia do próprio Fernão Antônio Alcântara Vidal Medeiros, senhor das terras e das gentes dali e para além dos montes azulados.

    De fato, o velho dono de meia sesmaria, naquela tarde tórrida, encontrava-se no caramanchão, em meio às senhoras das melhores famílias de seus domínios, metido em um jaquetão preto português quentíssimo, de pura lã, com duas fieiras de botões ao par, que subiam quase ao pescoço, ocultando parcialmente o laço da fita de seda cinza que ostentava.

    Em um canto do caramanchão parco de flores, rico, porém, em sombra, via-se uma mesa forrada com toalha de cambraia, na qual se deitavam jarras de refresco, gamelas de frutas e, mais à margem, algumas garrafas de cachaça e respectivos copos. O clima geral era de festa e alegria, com as crianças a correrem, livres para todos os lados, inclusive nas escadarias da frente do nobre solar.

    A imponência do casarão, o qual dominava o largo à frente, como, de resto, o arraial inteiro, contrastava com a precária construção provisória, equilibrada sobre os pés-de-moleque, erguida em madeira e ferro, de propósito, em lugar de destaque, bem à vista, mesmo de longe. Tratava-se de um tablado tosco de tábuas retas, aberto no centro em um vão oco, a mais de metro do calçamento, sobre o qual pendia uma trave de pau com uma corda amarrada forte. Na ponta solta da corda, a qual balançava sempre que se caminhava nas pranchas, via-se um interessante nó espiralado, que deixava frouxa, em círculo, uma abertura razoável de laço.

    Do alpendre-mor do solar, no alto das escadas de pedra, outros cavalheiros encasacados punham-se em roda de conversa, destacando-se, entre eles, o filho mais velho da casa, João Fernando Borba Vidal Medeiros, o qual, olhando o cadafalso, dizia ao magistrado da província, a seu lado:

    — O patíbulo aguentará bem o peso, creia-me. A madeira é boa e, no mais, as estacas estão postas entre as pedras do chão, não terão como moverem-se. A estrutura é segura, bem posso ver, ainda que o bruto a ser pendurado seja grande. Aposto que poderíamos dependurar lá um boi a ser carneado, que a coisa suportaria.

    — Sim, sim, meu caro João Fernando, tem razão. A forca é mesmo sólida o suficiente. E tem que ser, porque o condenado é como o boi a ser esquartejado, pelo menos, no tamanho e na força. Fiquei impressionado com a figura, quando o interroguei.

    — Prezado amigo magistrado, não há nada naquele homem que possa impressionar gente como nós; não passa de ladrão e assassino, ele e todos os dele. Laia maldita! Ele há de ser somente o primeiro, os demais, a seu tempo, haveremos de condená-los também ao mesmo destino.

    João Fernando falava com calma, porém, não sem demonstrar um tal desagrado que o magistrado, cauteloso, achou por bem logo atalhar, concordando.

    — Tem toda a razão, amigo João Fernando, toda a razão. Toda aquela família de facínoras, mais cedo ou mais tarde, deverá pagar por seus crimes.

    — Antes cedo que tarde, meu caro, que seja cedo. A propósito, essa execução sai ou não?

    O magistrado consultou maquinalmente o reloginho de bolso, o qual trazia ao colete e, guardando-o, disse ao amigo:

    — São quatro em ponto agora. É chegada a hora. Veja lá, João Fernando, que o pelotão já se movimenta.

    João Fernando acompanhou o olhar do outro, como, de resto, todos os circunstantes, tal qual orquestrados por mão invisível. Em verdade, a rua inteira parou, homens, mulheres e crianças, em silêncio todos, puseram-se a olhar o pelotão militar que avançava a pé, batendo os tacões na terra e nas pedras. Eram oito homens fardados, em alinhamento a dois de fundo, com o comandante à frente, dois passos adiante do grupamento, a espada ao ombro. Marchavam a passo largo e, entre as linhas, no meio, seguro por cordas e correntes, andava um homem enorme.

    O homem imenso, alto como uma árvore e de constituição semelhante, caminhava como podia, amarrado como estava, mal seguindo o ritmo daqueles que o puxavam sem dó. O homem ostentava muitas marcas, hematomas e esfoladuras, no rosto, nos braços e no torço nu, sinais evidentes das mais cruéis sevícias. Ele trazia os pés descalços, escalavrados e em sangue; à boca, como um animal, tinha um freio de metal, que lhe constringia violentamente as bochechas, colocando-se por entre as arcadas, a mostrar a dentição também forte, apesar das falhas feitas a alicate.

    À vista e ao som marcial dos soldados em marcha, o arruado inteiro fez-se arco, pondo-se em torno da forca como meia lua. Os do solar, subindo ao alpendre, tomaram posição para melhor divisarem o espetáculo. Somente a meninada, com olhos enormes e bocas abertas, ousou aproximar-se mais do palanque sinistro

    De repente, eis que saiu da igreja, ao lado esquerdo do solar, formando com este um ângulo quase reto sobre a esplanada, o padre Ricardo de Montemor, trazendo consigo uma cruz alta, carregada diante do peito, e um viático, preso à batinona negra. O padre vinha a passo rápido, transpirando tanto que os parcos cabelos brancos se lhe colavam à cabeça. Ele não tardou a alcançar o pelotão e a colocar-se ao lado, no compasso da marcha.

    Sob o sol senegalesco das Gerais daquele século, seguia o funesto cortejo da morte. À passagem da cruz elevada, dobravam-se por terra os joelhos, persignavam-se todos os viventes. Sobre o patíbulo, então, um homem solitário aguardava, impassível, dentro do seu casacão preto. O carrasco viera com o magistrado, da capital da província.

    Ao pé do grande estrado de tábuas, bem à frente de uma escadinha formada por duas delas, o pelotão, o condenado e o padre estacaram. A um gesto do comandante, os soldados, a pontaços de baioneta, fizeram o gigante preso ajoelhar-se. O magistrado, atravessando a multidão, postou-se ao lado do pelotão e pediu ao comandante que procedesse à leitura da sentença do condenado, na qual vinha expressa a pena aplicada e o meio de execução. A leitura deu-se dentro do mais profundo silêncio, como que se o próprio sol se tivesse detido para escutá-la. A voz de trovão do comandante se fez ouvir longe, reboando contra os costados das serranias de fundo, cortando os ares parados, como faca. A lista dos crimes imputados era longa, a reprimenda, severíssima; que servisse de aviso e exemplo aos malfeitores, disse o juiz, ao fim da proclamação lida.

    O magistrado, então, afastou-se, arrastando-se de volta à benfazeja sombra do solar. O lugar do juiz foi ocupado, em seguida, pelo padre Ricardo de Montemor, o qual recitou uma infinidade de orações em latim, terminando por aspergir, sobre tudo e todos, algumas gotas de água benta, que trouxera em um dos bolsos da batina. Uma das gotinhas santas, por capricho, caiu no olho esquerdo do verdugo, o qual praguejou baixinho.

    O padre solicitou ao comandante que mandasse tirar o freio de ferro da boca do réu, a fim de que pudesse ouvir-lhe a confissão e ministrar-lhe os derradeiros sacramentos. O comandante deu a ordem e um dos soldados arrancou a peça, rasgando a face do condenado; o sangue jorrou no chão, o homem, contudo, apenas soltou um gemido brando. O padre ajoelhou-se ao lado do preso e colheu-lhe, ao ouvido, a confissão sussurrada depressa. Após escutar aquele que ia morrer, o sacerdote absolveu-o, nos termos do cânon próprio e deu-lhe a comunhão. Por fim, já de pé, o clérigo deu a cruz ao prisioneiro, para que a beijasse; ele assim o fez, o sangue do rosto escorreu no madeiro do Cristo.

    Imediatamente, retirado o padre, o homem foi posto em pé, aos safanões, e empurrado degraus acima. Sempre ladeado pelos soldados, o preso recebeu a bofetada do carrasco, o qual, de pronto, colocou-lhe o laço ao redor do pescoço possante. O carrasco, então, ordenou ao condenado, em voz que todos ouviram:

    — Diga, se quiser, pela última vez, algumas palavras!

    O prisioneiro, então, com o laço apertado ao pescoço, o olhar desassombrado, virou a face à esquerda e, mirando o solar, bradou a plenos pulmões:

    — Viva Antônio Carlos de Souza e Aragão! Morte aos bandidos Vidais Medeiros!

    O homem mal gritara e já balançava, debatendo-se no ar, pendurado pelo pescoço. As últimas

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