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Contos da meia-noite
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E-book219 páginas2 horas

Contos da meia-noite

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Sobre este e-book

Em nove inesquecíveis contos que beiram simultaneamente o fantástico, o macabro e o cômico, MARIA LUCIA VICTOR BARBOSA, a eminente socióloga e autora dos consagrados 'O Voto da Pobreza' e a 'Pobreza do Voto e América Latina – Em Busca do Paraíso Perdido', faz sua estreia na ficção dentro da melhor tradição das grandes contistas brasileiras da dimensão de Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles.Começando por A Criatura, em que um misterioso ser assedia uma pacata cidadezinha, seguindo por Buchada de Bode, retrato satírico da mal-assombrada política nacional, depois pelo apavorante Retrato a Óleo e partindo em viagem rumo ao desconhecido, ao passado e ao destino, respectivamente, em Bolão, Colégio Interno e Estação de Águias, passando pelo delicioso painel da devoção popular que é Castigo do Santo, para encontrar, por fim, a redenção em O Pedido, estes 'CONTOS DA MEIA-NOITE' parodiam nada menos do que a realidade brasileira, tão assombrosa e inacreditável quanto a mais delirante fantasia.“Imersa no escuro a casa estalava, como se criaturas invisíveis passeassem por seus longos corredores. De vez em quando, uma janela entreaberta deixava jorrar a claridade da lua sobre tapetes e móveis, e nos singulares coágulos de luz que se formavam, os objetos pareciam espreitar-se uns aos outros como se tivessem vida própria”.A literatura é o esforço do homem para indenizar-se pelas imperfeições de sua condição. - EMERSON
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de mar. de 2022
ISBN9786588436202
Contos da meia-noite
Autor

Maria Lucia Victor Barbosa

Maria Lucia Victor Barbosa é mineira de Belo Horizonte (MG). Com relação aos seus estudos, fez o curso primário no Colégio Sion de Belo Horizonte (MG), o ginásio no Colégio Sion de Campanha (MG), o curso Clássico no Colégio Estadual (MG) e graduou-se em Sociologia e Administração Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Após o casamento veio residir com a família no Paraná, primeiro em Maringá, depois em Londrina, cidades onde exerceu o magistério nas seguintes instituições de ensino: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Maringá (PR), hoje Universidade Estadual de Maringá – UEM; Universidade Estadual de Londrina, UEL; Centro de Estudos Superiores de Londrina – CESULON; e Universidade Norte do Paraná – UNOPAR. Em Londrina, trabalhou também no Jornal Panorama, como editora de pesquisa. Na Companhia de Habitação de Londrina – COHAB-LD, como socióloga criou o Departamento de Desenvolvimento Social e, a partir da criação de associações de moradores, juntamente com

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    Contos da meia-noite - Maria Lucia Victor Barbosa

    Capa.jpg

    Prefácio de

    Déa Alvarenga

    in memorian

    © 2019, MARIA LUCIA VICTOR BARBOSA

    2ª edição – Setembro de 2021

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009

    Editora e Publisher

    Fernanda Emediato

    Capa e Diagramação

    Edinei Gonçalves

    sobre pintura de Henry Fuseli (Johann Heinrich Füssli) (1741-1825) The Nightmare

    Revisão:

    Josias A. de Andrade

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

    Barbosa, Maria Lucia Victor.

    Contos da meia-noite

    Maria Lucia Victor Barbosa - São Paulo: Troia Editora, 2021.

    202 p. : epub ; 3 MB.

    Epub

    ISBN: 978-65-88436-20-2

    1. Contos Brasileiros. I. Título.

    CDD-B869.3

    TROIA EDITORA E DISTRIBUIDORA LTDA.

    Avenida Mofarrej, 348 | cond. 1308 | Vila Leopoldina

    www.troiaeditora.com.br

    11. 3256-4444

    PREFÁCIO

    ADVERTÊNCIA

    A CRIATURA

    BUCHADA DE BODE

    RETRATO A ÓLEO

    BOLÃO

    COLÉGIO INTERNO

    CASTIGO DO SANTO

    OS MANEQUINS

    ESTAÇÃO DAS ÁGUAS

    O PEDIDO

    BIOGRAFIA DA AUTORA

    LIBERTAS QUAE SERA TAMEN – MARIA LUCIA VICTOR BARBOSA POR ELA MESMA

    Celebração da palavra e da vida, o livro Contos da Meia-Noite, de Maria Lucia Victor Barbosa, abre caminho à leitura do ficcional e do existencial. Há imbricação dos processos de vida e morte e suas pulsões. Assim, sob imperativo da paixão, o fascínio da leitura e a força da escritura se enlaçam.

    Maria Lucia é impulsionada a escrever ficção, por ser leitora maior de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade, Julio Cortázar e tantos outros; mas a luz do seu talento a conduz a um estilo, o seu estilo.

    Além do mais, ela é socióloga, dotada de consciência crítica, professora universitária, autora de quatro livros, analista do poder político, em suas aulas e em seus artigos da Folha de Londrina, Gazeta do Povo e de outros jornais. Dignidade para se conduzir, responsabilidade, estudos, leitura, pesquisa, mineiridade no cultivo do humor e amabilidade marcam seu modo de ser.

    O livro Contos da Meia-Noite contém unidade centrada em índice temporal (meia-noite); índice espacial (cidades pequenas do Brasil/mundo); o inusitado índice de percepções olfativas (cada um dos nove contos é marcado por odores, dos mais fortes aos mais sutis aromas). Percepções visuais e sonoras se entrelaçam. Riquíssima paleta a colorir os Contos da Meia-Noite: cor da miséria, tons gritantes, matizes os mais delicados e esmaecidos, o negro e o branco, céu de abril, cores do entardecer…

    A narrativa de Maria Lucia é vivaz em tons intermitentes. Tom coloquial, humorístico, tragicômico, poético, confessional, insólito, sinistro. O ritmo da frase acelera-se à medida que a personagem penetra no labirinto do medo, enquanto autor e leitor vivem o paroxismo das tensões. Se analisarmos bem alguns contos de Cortázar e certos contos de Maria Lucia, notaremos que as personagens são marionetes curvando-se à ação fantástica. O narrador é onisciente. As ações dos nove contos estão vinculadas ao tempo: cronológico, das emoções e das visões (… o tempo era devassado para frente e para trás).

    Em seus textos, a autora insere a onomatopeia, os processos de zoomorfização e coisificação a qualificar os tipos criados. Brincando com palavras, nomeia personagens e topônimos; constrói imagens poéticas: metáforas, metonímias…

    Verificam-se ainda, em sua narrativa, riqueza de tempos verbais, flash-back, o insólito, o imprevisível no desenlace do conto. A recorrência é mais um recurso estilístico usual em sua frase: palavras, o perfume das camélias, detalhes do portrait de Beatrix, dotada de superpoderes.

    No seu approach ao universo, Maria Lucia Victor Barbosa inventa personagens de uma ingenuidade comovente (a exemplo de Rosalina, in Bolão); outras personagens são dotadas de um sinuoso contorno psíquico, beirando o patológico (ex.: Gilvásio, o torturador, in Manequins). Algumas personagens de Maria Lucia podem ser comparadas às de Beckett in Esperando Godot, a grande metáfora do desejo e do ideal de cada ser, a saída em cada segmento do viver.

    A escritora usa, em seus textos, palavra-grão; jamais palavra-palha. De conto em conto, ela vai afirmando a ficcionalidade até atingir sua criação suprema: Retrato a Óleo.

    No conto Colégio Interno, narrado em primeira pessoa, a redescoberta do tempo processa-se mediante a saudade a perfumar os frames da menina e adolescente; perfume a envolver a mulher e o texto literário.

    Constante é o riso no conto Buchada de Bode, onde o humor e a caricatura são vetores de protesto. A leitura de A Criatura é partilhada entre o riso e o medo em tom tragicômico. Mesmo sendo implacável na denúncia da irresponsabilidade e da vilania, o lirismo incontido da contista aflora em sua narrativa. Modula em voo a frase poética…

    A autora dedica à cidade balneária de Araxá um carinho especial; ali, nas termas do Barreiro, inspirou-se para debutar no conto ao compor Estação de Águas. À meia-noite.

    Aplicando as teorias da Linguística Textual de Mikhail Backhtin, poderá ser feita uma análise fundamentada em polifonização cultural in Castigo do Santo. O tema da redenção em O Pedido, contraponto: a multiforme Graça de Deus e o homem.

    Um momento a registrar é o enlevo (transfiguração?) entre Rosalina e Jossumar in Bolão. Funcionário de um circo, está Jossumar a recolher dejetos de elefante, quando seu raio visual atinge Rosalina. Basta o entrecruzar de olhares do homem e da mulher para levitar o coração dos dois! Levita a pipoca próxima à boca de Rosalina… Jossumar se desvencilha do carrinho de mão, coração em festa, segura uma flor… René Char, poeta francês contemporâneo, afirma que o ser é eterno romântico, o devaneio, sua maior qualificação.

    Agraciado com o dom da ubiquidade dissolvente, o escritor vivencia o processo de despersonalização. Assim, Maria Lucia Victor Barbosa, criadora também de portraits interiores, plurifica-se em cada personagem de seus contos.

    Que ela continue a se plurificar ao infinito…

    DÉA ALVARENGA

    in memorian

    Não aconselho os caros leitores que se debrucem sobre estas páginas quando soar meia-noite. Pois meia-noite é limite, brecha, ruptura, passagem, intervalo do nada. É quando muda o dia, o ano, o século, o milênio. Coisas sérias acontecem à meia-noite, como o nascimento de Jesus. Coisas da imaginação também funcionam nesse instante mágico: Papai Noel desce pela chaminé, Cinderela volta a ser Gata Borralheira, Drácula levanta-se do túmulo e são soltas as criaturas da noite quando retumbam no escuro as 12 badaladas. Ninguém pode negar, portanto, que há nesse instante uma conjugação de forças desconhecidas, na qual ou se cria ou se destrói. E, como nos contos que vão ler existem constantes passagens, fazendo cruzar dimensões da vida e da morte, não posso me responsabilizar pelo que poderia se soltar por essa brecha do tempo.

    M. L. V. B.

    O cheiro de fritura de torresmo percorria o ar na quase noite, significando que mais um dia de labuta terminara e que não haveria mais nada a fazer a não ser mirar o horizonte descambando nas profundezas do rio, dar dois dedos de prosa se houvesse o que falar, assistir no máximo até o Jornal Nacional e desabar no sono isento de sonhos, pesado de canseiras.

    Aquele cheiro gostoso ia longe, cortando por entre os tufos de bananeiras, chamando para a mesa de tábuas compridas. Era melhor que badalada de relógio ou sino de igreja, e Zeca Mata Boi vinha em passo batido se juntar à mulher, Serafina, e às filhas Rosicleide e Miralice para a refeição de costume, feita sempre e regularmente há mais de 30 anos na cozinha da casa de pau-a-pique construída por ele mesmo à beira do rio Turvo do Embaré Quase.

    Não tinha aroma mais persuasivo naquele lugar em termos de culinária. Ia de casa em casa. Fustigava o padre recolhido em orações da ave-maria. Atormentava a velha doente da quinta casa da rua, que tossia a noite inteira. Acendia a gula dos que até melhor tinham diante de si, tal qual um franguinho, guisado com quiabo e angu ou feijão-tropeiro completo com linguiça, couve e ovo frito.

    Diga-se de passagem que, se o cheiro de torresmo das seis horas da tarde e até outros perfumes mais refinados, como o do sabonete do banho vespertino de Marilinda, se espargiam com tal perfeição, isso se devia àquele tipo de vento constante, persistente, que assobiando de mansinho penetrava em todos os cantos e recantos, sendo encanado e sujeitando a gripes e pneumonias no inverno. Por isso, o lugarzinho foi batizado de Venteiros.

    Sim, no frio era demais aquele vento, tornando o ar mais gelado do que devia, fazendo os cachorros uivarem para a lua com mais empenho que de costume, enregelando bichos e gentes que se ressentiam do alvorecer que os obrigava a sair dos seus quentinhos para as asperezas do tempo. Como era duro o inverno em Venteiros! Não só na rua única, onde a construção que valia a pena era a igreja, ladeada pela quitanda, pelo armarinho, pelas casas melhorzinhas de dois andares e pelo posto de gasolina, como também nos pra lá que desmaiavam nas ladeiras salpicadas de casinhas simples, como a de Zeca Mata Boi.

    No verão, entretanto, o vento de Venteiros era, digamos assim, um certo alívio. Nas épocas medonhas do calor, quando o insuportável suor das criaturas se alia a certos fedores multiplicados, o vento se tornava brisa fraquinha, mas reconfortante, condutora do perfume dos jasmineiros sob a lua cheia e do aroma dos sorvetes de baunilha que Quincas fabricava tão direitinho por volta das três da tarde, atração da meninada desvairada de recreio que vinha aos tropéis da escola de Maria Eremita só para desfrutar o geladinho da hora.

    Venteiros, pacato lugarejo de uma rua só, sendo o resto desordem semiurbanizada. Poucos habitantes, que de tão poucos enfaravam em se conhecer, sendo que a maioria dos venteirenses havia se evaporado para centros maiores com cinemas, discotecas e todas as sem-vergonhices modernas que só as cidades grandes sabem ter. Ali, de típico, só os muitos cheiros que se evolavam no vento distraindo as pessoas: cheiro de compota de goiaba, de pão de queijo, de lombo assado ou mesmo os mais delicados, da alfazema ao alecrim, sem falar nos que não se deve mencionar por serem fedores, que de quando em vez escapam de lugares nada poéticos da vida humana.

    Nesse recanto do mundo de muitas tranquilidades e rotinas rituais, às vezes o tédio batia mais forte, principalmente nos moços e moças que lá restavam, nos quais a expectativa de existir vinha somada a imaginações e desejos que muitas vezes, por infundados que fossem, não deixavam de atormentar.

    Sem dúvida, me dão razão nessa questão que acabo de mencionar, por exemplo, as filhas do Zeca Mata Boi, mocetonas sacudidas, de saúde e intelecto quase animal, explodindo em perplexidades na aurora dos seus 17 e 19 anos, respectivamente. Elas nunca haviam passeado seus olhares além da rua única de poucos atrativos, das bananeiras que circundavam toda Venteiros, do galinheiro no fundo do quintal e, naturalmente, do rio Turvo do Embaré Quase, local de lavar roupa e sempre propício ao atendimento de outras necessidades humanas, da pesca aos banhos e aos etc.

    Os nove irmãos de Rosicleide e Miralice tinham ido buscar um destino mais adequado a homens em algum lugar onde os prédios tocavam as nuvens e os trovões não eram nada se comparados ao ronco dos motores dos carros que trafegavam aos montes por ruas largas e cheias de gente de sapato e tudo. Pelo menos foi o que contou o caçula dos irmãos, o Godomides. Só ele apareceu numa Semana Santa na casa de pau-a-pique. Contou e voltou para não dar mais notícias, como os outros que haviam se tornado indiferentes a ventos, bananeiras ou cheiro gostoso de torresmo frito às seis horas da tarde.

    Zeca Mata Boi deixara os filhos irem na maior das naturalidades. Mas as meninas ele retinha por companhia da mãe nos cuidados da horta e da cozinha, na esperança de que um dia alguém lembrasse delas para se casar nos conformes do vestido branco, véu e grinalda. E justo esse se alguém lembrasse é que deixava uns travos amargos e umas inquietudes naquelas moças que não conheciam, naqueles ermos, quem pudesse levá-las ao altar segundo as praxes do costume e da decência.

    Naturalmente, não eram só as filhas do Zeca Mata Boi que se enfastiavam naquele grotão cheio de ventanias. A pacatez local incomodava muitos dos habitantes do lugarzinho; e fora as costumeiras maledicências que existem até nas melhores famílias, nada acontecia de excitante. Nem uma violenciazinha. Nem um estuprozinho. Nem um assassinatozinho. Nem uma galinhazinha furtada. Muito menos aquelas catástrofes em que morre gente aos montes nas fendas dos terremotos, nas águas revoltas das enchentes ou sob as lavas dos vulcões e que podiam ser vistas na televisão de maneira tão empolgante. Pois ao menos televisão Venteiros tinha, o que se por um lado permitia contatos visuais com o mundo externo e vasto, por outro estabelecia contrastes de doer entre a vida passada nas novelas da Globo, nos filmes americanos, naqueles lugares de gente poderosa e chique, e a existenciazinha de mequetrefe do povo de Venteiros, sempre a falar mal uns dos outros no ruminar de suas invejas e frustrações.

    Lógico que a televisão servia de divertimento, de companhia e consolo aos venteirenses. Quem vive sem ela hoje em dia? Nem eles. Mas ficavam meio jururus ao se compararem, no vestir e nas estrepolias, aos viventes de outros lugares que lhes apareciam tão nitidamente em plena sala de visitas, diante dos seus sofás. Aquelas extravagâncias passadas na telinha fraterna faziam com que no fundo de cada um brotassem desejos inconfessáveis e uma ansiedade imensa, como se aguardassem alguma coisa que estivesse por vir. Algo que sacudisse a mesmice abafada, tão parecida com o ambiente dos galinheiros no seu aspecto de eterno cacarejar e ciscar. E desse modo, quando o sol se adentrava pelo rio Turvo do Embaré Quase no fim das tardes, se via umas gentes cismarentas em Venteiros,

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