História de uma Coleção Invisível: Narrativas e Liminaridade da Coleção Brazil's Popular Groups da Library of Congress
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História de uma Coleção Invisível - Rafaella Bettamio
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
Para Tomás, pelo mundo que no amor revelado se desvela.
AGRADECIMENTOS
A minha entrega a esta obra é resultado de experiências vividas durante os anos dispensados à pesquisa, especialmente relacionadas à passagem de pessoas que deixaram algo de si e transformaram a mim e ao texto.
Agradeço, primeiramente, à Prof.ª Luciana Quillet Heymann. Sinto-me privilegiada por contar com a sua orientação durante a jornada do doutorado. Fonte de grande inspiração e de eterna admiração, devo a ela o meu olhar mais atento e sensível às práticas, narrativas e interações que envolvem e projetam as coleções.
Ao professor José Reginaldo Gonçalves, pelo olhar apurado e pelos apontamentos fundamentais ao desenvolvimento da pesquisa.
Às professoras Tânia Maria Bessone e Ana Paula Sampaio Caldeira e ao professor Alexandre Moreli, pelo privilégio da interlocução com a investigação e o texto.
À Fundação Biblioteca Nacional, por ter propiciado minha dedicação exclusiva à pesquisa que resultou neste livro e, sobretudo, por ter inserido ao meu cotidiano pessoas especiais, cujas trocas foram fundamentais durante o seu processo de produção. Meus sinceros agradecimentos à Luciana Grings, pelo pronto compartilhamento de informações sobre a BPG, à Renata Cavalcanti, pelo valioso trabalho de digitalização dos microfilmes desta coleção, a José Augusto Gonçalves, pela gentileza, esclarecimentos e fotografias, e à Lia Jordão, pela revisão precisa de partes do texto, mais um importante episódio da linda parceria iniciada ainda nos nossos primeiros dias de BN.
À Fundação de Amparo à Pesquisa (Faperj), pela bolsa de doutorado sanduíche.
Ao professor Bryan McCann, pela generosidade em me acolher na Georgetown University e por todo o suporte recebido no período em que estive em Washington, D.C.
Ao Center for Latin American Studies (Clas) da Georgetown University, pela recepção calorosa e pelos grandes ensinamentos.
À Library of Congress, por disponibilizar fontes essenciais à pesquisa, pela hospitalidade e dedicação de seus funcionários, pontos marcantes na memória.
À Hanne Kristoffersen, pela recepção e compartilhamento de informações sobre a BPG. Agradeço também à Debra McKern, Carla Maia e Pamela Howard-Reguindin, por me permitirem conhecer um pouco mais sobre o Rio office da Library of Congress e suas experiências profissionais.
À Carmen Muricy e Lygia Ballantyne, meu especial agradecimento por aceitarem dividir memórias tão caras a esta obra, por toda a atenção despendida e disposição em colaborar.
Agradeço a todos os amigos com os quais venho compartilhando as alegrias e as angústias de crescer
. Especialmente à Alejandra Estevez, ao Marco Antônio Teixeira e à Priscila Cabral, pelas ideias e incentivos, e à Joana Fróes, Letícia Froés e Manuela Dias, por permanecerem presentes e essenciais há mais de duas décadas.
Aos meus pais, irmãos e sobrinhos, cujas existências me preenchem com amor, coragem e esperança.
Ao meu companheiro Raul Cordeiro, por seu amor, estímulo, cumplicidade, por partilhar dos mesmos sonhos e não medir esforços para torná-los realidade.
Ao Tomás, meu filho, o sentido real e o real sentido de tudo.
De modo algum a aquisição de livros se resolve apenas com dinheiro ou apenas com o conhecimento de perito. Nem mesmo estes dois fatores juntos bastam para o estabelecimento de uma verdadeira biblioteca, que sempre contém, ao mesmo tempo, o inescrutável e o inconfundível.
(Walter Benjamin)
APRESENTAÇÃO
Mais de 30 bibliotecas dos Estados Unidos, além de instituições de memória e pesquisa da Europa e do Brasil — entre elas a Biblioteca Nacional —, possuem microfilmes da Brazil’s Popular Groups: a Collection of Materials Issued by socio-political, Religious, Labor and a Minority Grass-roots Organizations, ou simplesmente BPG. Produzida e microfilmada pela Library of Congress — a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos da América —, essa coleção reúne uma variedade de materiais efêmeros, impressos por diversas organizações e grupos populares brasileiros
¹, publicados da década de 1960 até o ano de 2016.
Constituída por folhetos, pôsteres e publicações seriadas com pequena tiragem e curta duração, produzidos no Brasil a partir da década de 1960, a BPG começou a ser estruturada somente na década de 1980, quando esses documentos passaram a ser colecionados pelo escritório de representação da Library of Congress no Rio de Janeiro, o Rio de Janeiro Overseas office². Entretanto, a primeira parte da coleção tem periodicidade estipulada entre 1966 — ano em que a Library of Congress fixou na cidade do Rio de Janeiro sua representação na América Latina — e 1986 — quando se encerra a coleta de materiais desse primeiro conjunto.
Após a reunião e a organização da primeira parte da BPG, o Rio de Janeiro Overseas office continuou a reunir os materiais efêmeros relativos a grupos populares brasileiros, produzindo, assim, duas séries suplementares: uma referente ao triênio de 1987 a 1989 e outra ao de 1990 a 1992. De 1993 em diante, a coleção teve sua continuidade assegurada, passando a produzir suplementos anuais. O último suplemento refere-se ao ano de 2016, uma vez que, no ano seguinte, o colecionamento da BPG foi encerrado.
Vasta coleção, organizada anos a fio por renomada instituição de memória internacional, a BPG foi o objeto da pesquisa que originou a minha tese de doutorado Brazil’s Popular Groups: história e significados de uma coleção da Library of Congress (BETTAMIO, 2018), cujo texto adaptado imprime forma ao presente livro. Mas, por que a análise dessa coleção mereceria uma tese de doutorado e, além disso, renderia uma publicação?
Analisar a BPG a partir de sua relação com contextos políticos norte-americanos e brasileiros, atentando para distintas temporalidades e subjetividades que marcaram a sua produção, bem como sua circulação, contribuiu para uma melhor compreensão sobre a importância das condições sócio-históricas para as coleções que possuem dimensão pública e dos lugares que esses artefatos ocupam na sociedade. Observar a BPG enquanto coleção possibilitou imprimir visibilidade à sua historicidade, à construção narrativa de seu colecionador e a alguns dos significados e lugares que lhe foram atribuídos ao longo de sua existência.
Desse modo, a pergunta que impulsionou a pesquisa e direciona a presente obra é: quais condições sócio-históricas permitem a constituição de coleções que ganham dimensão pública e que narrativas tais coleções enunciam?
Decorrentes dessa questão principal, quatro são os objetivos específicos deste texto, que reserva a cada um deles um capítulo, respeitando a seguinte ordem:
analisar a morfologia da BPG, sua formatação e materialidade, a fim de compreender fatores que conferem identidade ao conjunto;
investigar a relação entre contextos sociopolíticos norte-americanos e os procedimentos colocados em marcha pela Library of Congress, por meio do processo de internacionalização que culminou na abertura de um Overseas office no Rio de Janeiro e, posteriormente, na organização da BPG;
compreender as distintas temporalidades e subjetividades que presidiram a produção da coleção; e
analisar o lugar da coleção em um de seus destinos
, a Biblioteca Nacional, no Brasil, revelando como vem sendo produzida a sua mediação na instituição, os tipos de apropriação e ativação que vem recebendo ao longo do tempo.
A partir desse desenho, a narrativa sobre a BPG aqui apresentada se propõe a lançar luz sobre como certos sentidos e significados são produzidos e atribuídos às coleções ao longo do tempo e seus materiais ressignificados no decorrer de todo esse processo.
Rafaella Bettamio
Prefácio
Os últimos anos viram crescer o interesse por análises que tomam artefatos culturais — objetos, documentos, arquivos, coleções — como objeto de pesquisas interessadas nas condições sócio-históricas de sua produção, circulação e institucionalização. Frutos de um movimento de crítica que perpassou por várias disciplinas, da antropologia aos estudos arquivísticos, tais análises vêm desempenhando papel importante na elucidação de processos de consagração, de silenciamento, ou de subversão, dos sentidos atribuídos àqueles artefatos. Além disso, têm contribuído para refletir sobre as condições de produção do conhecimento, ao problematizar o lugar que ocupam em museus, arquivos, bibliotecas e outros espaços dedicados ao patrimônio e à memória.
O livro de Rafaella Bettamio é uma contribuição valiosa para esse campo de estudos. Fruto de sua tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas, o texto articula de maneira potente e inovadora as três dimensões que conformam a proposta do Programa investigando a trajetória de uma coleção de documentos efêmeros intitulada Brazil’s Popular Groups (BPG). Pouco visível e prestigiada no universo das coleções que compõem o magnífico acervo da Biblioteca Nacional (BN), condição para a qual contribui a particularidade de tratar-se de uma coleção microfilmada, a BPG chamou a atenção de Rafaella, pesquisadora que integra os quadros daquela instituição. O fato de reunir folhetos, panfletos, jornais, e outros documentos sobre movimentos sociais brasileiros, e de ter sido produzida e doada à BN pela Biblioteca do Congresso dos EUA despertou o interesse da historiadora que até então havia se dedicado ao estudo de aparatos repressivos da ditadura militar brasileira. A primeira hipótese que animou a pesquisa sugeria que a coleção, cuja produção teve início nos anos 1980, fosse instrumento de monitoramento norte-americano dos movimentos sociais que se articulavam no país desde os anos 1960, data dos primeiros documentos microfilmados.
Essa hipótese foi redimensionada quando o objeto da pesquisa foi situado no contexto de sua produção. O investimento nas lógicas e dinâmicas institucionais do colecionador
, vale dizer, da própria Biblioteca do Congresso, especificamente no que diz respeito a seus Overseas Offices
presentes em vários países, permitiu recuperar a relação entre a constituição de campos intelectuais voltados para o estudo de determinadas regiões do planeta e os processos de aquisição, catalogação e divulgação de materiais bibliográficos relativos a essas regiões. Financiamentos públicos para o desenvolvimento de acervos, por um lado, e para a realização de pesquisas, por outro, foram responsáveis pela expansão dos centros de estudo sobre a América Latina em várias universidades norte-americanas, em um processo que retroalimentou a demanda por novos materiais e a continuidade da coleta de documentos, não apenas no Brasil. A bolsa-sanduíche junto à Georgetown University, concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), permitiu que Rafaella realizasse entrevistas com funcionários da Biblioteca do Congresso, fundamentais para o conhecimento mais profundo da cultura institucional dessa biblioteca que se pretende universal.
No estudo da entidade produtora da BPG, Rafaella não descurou das práticas cotidianas e dos agentes individuais que, com suas subjetividades, moldaram a coleção. Nesse sentido, condicionantes históricos, de natureza conjuntural ou institucional, aparecem entrelaçados a condicionantes mais concretos, mas nem por isso menos importantes, que configuraram o artesanato
da coleta dos documentos. Todos esses planos de análise são contemplados na pesquisa, que demonstra claramente o caráter contingente e a historicidade da BPG, produzida ao longo de cerca de 30 anos — já que a maior e primeira remessa de microfilmes foi alimentada com novas remessas até o ano de 2016. A atenção aos temas privilegiados ao longo dos anos, à natureza e ao volume dos documentos microfilmados e à terminologia utilizada na identificação desses materiais permitiu à autora recuperar o que ela própria designa como as narrativas
da coleção, apontando para a memória que ajudou a construir acerca dos movimentos sociais brasileiros.
No último movimento analítico do livro, Rafaella traz para o centro da cena a própria Biblioteca Nacional. Ao chamar a atenção para o lugar de sombra ocupado pela BPG na instituição, antes de se tornar objeto da pesquisa, a autora ilumina a relação diferencial que cada instituição de guarda estabelece com os materiais que abriga e preserva. Essa relação determina o grau de visibilidade desses artefatos e, por conseguinte, seus usos. Ao final do percurso, e por meio da trajetória da BPG, é a própria BN, suas práticas e hierarquias que se tornam objeto da investigação.
Ao recuperar a biografia
da coleção Brazil’s Popular Groups, Rafaella chama atenção para a dimensão contingente de todas as coleções, das mais prestigiosas às mais obscuras e singelas, bem como para a importância de conhecer a história desses artefatos e as relações sociais nas quais estão imbricados, não apenas para lançarmos mão deles, com propriedade, em nossas pesquisas, mas também para problematizarmos a dimensão sempre contingente de nossas próprias investigações. Por todas essas razões, este é um livro indispensável para leitores interessados nas relações entre artefatos, instituições e produção do conhecimento.
Luciana Heymann
Prof.ª Dr.ª do Programa de Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz)
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Sumário
INTRODUÇÃO 23
CAPÍTULO I
A BPG ALONG THE GRAIN 35
1.1 Sobre a BPG 37
1.2 A BPG em partes 46
1.3 A formatação geral da BPG 60
Capítulo II
Library of Congress: a invenção de uma biblioteca
universal 79
2.1 O processo de internacionalização da library of congress: influências do
panorama mundial a partir da Segunda Guerra 89
2.1.1 Os escritórios da Library of Congress no exterior 94
2.2 Os Overseas offices remanescentes 121
2.2.1 O Rio de Janeiro Overseas office 133
CAPÍTULO III
A BPG AGAINST THE GRAIN 143
3.1 A narrativa do colecionamento 154
3.2 O artesanato
da narrativa 174
Capítulo IV
A Biblioteca Nacional como destino 185
4.1 Os caminhos da BPG na Biblioteca Nacional: identidade
institucional e ativações
192
CONSIDERAÇÕES FINAIS 219
Entrevistas 227
Fontes 229
Fotografias 231
Referências Bibliográficas 233
INTRODUÇÃO
Desde a produção da primeira parte da coleção Brazil’s Popular Groups (BPG), os materiais eram reunidos, selecionados e organizados no Rio office, hoje localizado no edifício do Consulado Geral dos Estados Unidos da América, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. De lá, o corpo documental, selecionado, organizado e catalogado pela equipe, era remetido para a sede da Library of Congress, em Washington, capital dos Estados Unidos, onde, desde 1988, o Library of Congress Preservation Microfilming Office — atualmente Library of Congress Photoduplication Service — é responsável por seu processo de microfilmagem e reprodução de cópias. Sem dúvida, a disponibilização por meio de microfilmes possibilitou maior divulgação e acesso ao conjunto da BPG, permitindo que essa coleção se espalhasse e continue a se espalhar por várias instituições de ensino e pesquisa dos Estados Unidos e do mundo.
O Library of Congress Photoduplication Service produz e vende cópias da coleção para as instituições interessadas em seu conteúdo desde que o primeiro conjunto de microfilmes da BPG foi por ele produzido, em 1988. Dessa maneira, a BPG se encontra atualmente em dezenas de universidades e institutos de pesquisa dos Estados Unidos que optaram por comprar, da Library of Congress, cópias do todo ou de parte de seu conjunto geral.
Quadro 1 – Bibliotecas dos EUA que possuem a primeira parte da BPG (1966-1986) em microfilme
Fonte: Library of Congress. WorldCat Database³
As 32 instituições norte-americanas listadas no quadro possuem cópias microfilmadas da primeira parte da BPG (1966-1986), mas nem todas possuem os suplementos (referentes aos anos posteriores a 1986 até 2016). Nos Estados Unidos, uma parte dessas e de outras bibliotecas tem alguns dos suplementos da BPG isoladamente, uma vez que a compra do conjunto de microfilmes correspondente a cada um deles está condicionada ao interesse de pesquisa, bem como ao orçamento das instituições. Dessa forma, além da Library of Congress, poucas bibliotecas possuem a coleção completa, entre elas a University of Texas e a Princeton University (Library of Congress. WorldCat Database).
O expressivo interesse dessas instituições pela BPG se relaciona com o movimento de busca por fontes sobre a América Latina, África e Ásia desenvolvido nos Estados