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Exercícios críticos: Gestos e procedimentos de invenção
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Exercícios críticos: Gestos e procedimentos de invenção
E-book589 páginas8 horas

Exercícios críticos: Gestos e procedimentos de invenção

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Sobre este e-book

É acerca de exercícios críticos brasileiros, mais especificamente durante as décadas de 1960 e 1970, que este livro deposita seus interesses e se espraia. Não se trata de um esforço de recuperação da expressão crítica, nem de refazer a história da crítica brasileira. Trata-se da tentativa de adentrar os muitos modos de agir desses sujeitos autores, evidenciando, a partir de perspectivas processuais, a possibilidade de uma tarefa também autorreflexiva e que se fundamenta, prioritariamente, no fazer artístico e nos percursos de percepção traçados diante da obra por meio da palavra.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de jan. de 2022
ISBN9788528305746
Exercícios críticos: Gestos e procedimentos de invenção

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    Pré-visualização do livro

    Exercícios críticos - Galciani Neves

    Capa do livro

    PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery

    EDITORA DA PUC-SP

    Direção: José Luiz Goldfarb

    Conselho Editorial

    Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)

    José Luiz Goldfarb

    José Rodolpho Perazzolo

    Ladislau Dowbor

    Karen Ambra

    Lucia Maria Machado Bógus

    Mary Jane Paris Spink

    Matthias Grenzer

    Norval Baitello Junior

    Oswaldo Henrique Duek Marques

    Frontispício

    © Galciani Neves. Foi feito o depósito legal.

    Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP

    Neves, Galciani

    Exercícios críticos : gestos e procedimentos de invencão / Galciani Neves. - São Paulo : FAPESP.

    Originalmente Tese de Doutorado - PUCSP, 2014, sob o título Crítica como criação : procedi-mentos e estratégias comunicacionais dos exercícios críticos no Brasil

    1. Recurso on-line: ePub

    Exercícios críticos : gestos e procedimentos de invencão / Galciani Neves. - São Paulo : FAPESP, 2016. ISBN 978-85-283-0541-8.

    Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.

    Acesso restrito: http://pucsp.br/educ

    ISBN eletrônico 978-85-283-0574-6

    1. Crítica de arte - Brasil. 2. Criação (Literárias, artísica, etc.). 3. Arte brasileira. 4. Estética. 5. Comunicação na arte. I. Título.

    CDD 701.15

    701.18

    709.81

    EDUC – Editora da PUC-SP

    Direção

    José Luiz Goldfarb

    Produção Editorial

    Sonia Montone

    Edição de texto

    Ananda Carvalho

    Preparação

    Eveline Bouteiller

    Revisão

    Siméia Mello

    Design gráfico de capa e miolo

    Vitor Cesar

    Editoração Eletrônica

    Gabriel Moraes

    Waldir Alves

    Capa

    Imagem: Jorge Menna Barreto

    Desleituras, 2015

    Foto: Patrícia Araújo

    Administração e Vendas

    Ronaldo Decicino

    Produção do ebook

    Waldir Alves

    Revisão técnica do ebook

    Gabriel Moraes

    Rua Monte Alegre, 984 – sala S16

    CEP 05014-901 – São Paulo – SP

    Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558

    E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ

    sumário

    prefácio

    Quando é preciso o desvio

    por Ronaldo Entler

    introdução

    paisagem de uma pesquisa

    parte 1

    De cá para lá: por uma narrativa possível acerca dos exercícios críticos no Brasil

    Estratégias e debates da crítica de arte no Brasil

    Anos 1960 e 1970: pontos de inflexão

    Escritos de arte, sobre arte, contra arte no Brasil

    parte 2

    Crítica de arte no Brasil: como apalpá-la, vesti-la, cheirá-la e devorá-la. E vê-la também¹

    A crítica de arte impregnada de pesquisa – a trajetória de Aracy Amaral

    Criar é libertar. Julgar é oprimir: a nova crítica de Frederico Morais

    A crítica de arte em sua dimensão poética/política com Ronaldo Brito

    Relações entre teoria e história da arte no exercício crítico de Paulo Sergio Duarte

    As articulações entre história e crítica de arte para uma experiência estética no percurso crítico de Annateresa Fabris

    A crítica como limite e desafio diante da obra, segundo Paulo Venâncio Filho

    Da produção artística à crítica de arte como experiência: o percurso de Fernando Cocchiarale

    A crítica de arte como entrefala, segundo Glória Ferreira

    Da mobilização à razão, o fazer crítico de Tadeu Chiarelli

    parte 3

    Maneiras de fazer

    Exposição e compartilhamento de critérios, de modos de agir, de recursos

    Aproximação aos processos de criação: interação, diálogo e troca

    Entrevista e arquivos – usufruto da palavra do artista

    Experiência diante, com, sobre e além da obra

    Questionar e duvidar, como exercícios da ação crítica

    Traçando relações

    Prolongamento da obra

    Difundir e comunicar – ações de compartilhamento com o leitor

    Enlaces com atividades teóricas e procedimentos de pesquisa

    Das possibilidades de transitar por entre a(s) história(s) da arte brasileira

    Crítica à crítica

    parte 4

    Exercício crítico: uma prática lúcida/lúdica de tradução

    referências
    posfácio

    Procedimentos da crítica de arte em debate

    por Cecilia Almeida Salles

    prefácio

    Quando é preciso o desvio

    Ronaldo Entler

    ¹


    1. Pesquisador e crítico de fotografia e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Faap.

    Nossa civilização soube imaginar em suas mitologias uma palavra capaz de tocar com precisão o cerne de cada coisa. Esse teria sido, segundo certa interpretação do Gênesis, um dom que Deus ofereceu àquele que criou à sua imagem e semelhança. Mas essa criatura logo se revelou humana e quis jogar com a linguagem. Expulsa do paraí­so, foi condenada à errância e ao desentendimento: desde então, ao dizer uma coisa, diz várias. Cabe à arte, segundo a interpretação de Benjamin (2011), o esforço de aproximar a linguagem dos homens dessa linguagem originária da natureza. Espelhando esse raciocínio, podemos dizer que a arte só existe na fissura que se abre entre uma e outra, entre o esforço humano de libertar as potências da linguagem e esse paraíso criado pelo idioma perfeito daquele que tudo pode. O desejo de religar essas instâncias coloca nossa palavra numa intensa peregrinação. Ela passeia pelo mundo em busca de um sentido pleno e, mesmo que jamais o encontre, permanece incansável porque toma gosto pelas imagens que encontra no caminho.

    Aquilo que aparece como castigo nesse mito de criação é, no final das contas, um privilégio. É na imprecisão de sua linguagem que o ser humano se torna, também ele, um criador. Faz isso à sua própria maneira, não com o poder da palavra precisa de Deus, que faz a luz ao dizê-la, mas com aquilo que ele teve de assumir ao abrir mão do paraíso: a imprecisão de sua fala, o suor de seu corpo. Nas mãos humanas, criação é desvio e, por isso mesmo, é trabalho contínuo. É esse fazer incerto e surpreendente que, desde então, temos chamado de poesia.

    #

    Às vezes, projetamos em certa autoridade o dom de resolver essas fissuras. Imaginamos alguém que, com capacidade de discernimento superior a dos mortais, poderia resolver a falibilidade daquilo que expressamos. Tantas vezes o crítico é colocado no lugar de alguém que possa, com o rigor de seus critérios, aliviar a crise instaurada em nossas linguagens. Sabemos que essas palavras – crítica, critério, crise – têm uma origem comum, mas a relação que se estabelece entre elas chega até nós com certo jogo. Fiéis à ambiguidade a que fomos condenados, somos aqui convidados a decidir se a crítica que interessa à arte do nosso tempo é aquela que restitui a ordem das coisas ou, ao contrário, que instaura disrupção.

    Neste trabalho, Galciani Neves recusa a visão do crítico como uma autoridade apaziguadora. Não reconhece em sua atividade aquela certeza da palavra divina, do mesmo modo que não vê no trabalho de criação artística nada de demiúrgico. Ambos participam de uma gênese que é processo laborioso, extenso, muitas vezes infinito, porque deriva de um gesto – para citar de uma só vez Marcel Duchamp e Cecília Salles – definitivamente inacabado. O papel do crítico não é o de resolver, mas o de testar, ecoar e renovar as tensões das linguagens. Longe de um escrever certo por linhas tornas, ele busca um caminho coeso para tocar o que permanece incerto no trabalho do artista. A retidão de sua tarefa – se assim podemos falar de seu compromisso e de sua assertividade – tem a ver com a necessidade de explorar e garantir as aberturas de sentido que as linguagens humanas oferecem. Com a leitura que se segue, aprendemos que, como o guia que tantas vezes esperamos que ele fosse, a tarefa do crítico é fazer andar produzindo descaminhos.

    Não devemos esperar deste livro uma definição simples e funcional do que é a crítica de arte. O percurso proposto não é o mais fácil nem o mais curto: visualiza-se a crítica de arte sob o caráter de um exercício em pleno movimento de complexidade, transformação e desenvolvimento, portanto, de natureza mutante e afeita a imprevisibilidades e inventividades, e em sua ‘emergência sistêmica’, na qual estão envolvidos em pactos e fluxos outros subsistemas sígnicos – a cultura, a arte, o público, a política, a história, o contexto social, as percepções, os agentes, as instituições – que se conectam, colidem, partilham saberes e experiências (p. 278). Galciani fará esse alerta um tanto mais adiante, quando os diálogos com diversos críticos atuantes no cenário brasileiro já tiverem demostrado, por si mesmos, a amplitude de procedimentos que esse exercício abrange. Um trajeto longo de reflexão se faz necessário justamente onde a abstração sintética do dicionário e da enciclopédia mostra sua insuficiência. Como veremos, será preciso reencontrar algumas trilhas da história, e será preciso percorrê-la muito próxima aos acontecimentos.

    O livro começa relatando o debate da crítica brasileira, nas primeiras décadas do século XX, em torno do modo como nossa arte deveria dar conta de uma identidade nacional. É nesse contexto que os artistas e os intelectuais esboçam uma interação maior na busca de um modelo próprio de agenciar as tradições e as rupturas. A ideia de antropofagia surge como uma resposta que não é nem de recusa, nem de subserviência às tendências europeias. Antropofagia é um modo de fazer sua a força do outro. Esgarçando um pouco essa metáfora, podemos tomá-la como um princípio de complexidade que permite entender outros agenciamentos. Por exemplo, o próprio modo como artistas e críticos passam a explorar um o território do outro e a se alimentar reciprocamente das tensões que essa relação produz. O crítico que se forma nessa espécie de experiência antropofágica é o avesso do estereótipo do crítico gastronômico, que preserva sua identidade e sua autoridade, que se mantém distanciado, que desfruta daquilo que julga com expressão impassível para, no dia seguinte, decretar se o público deve ou não degustar o alimento que já lhe chega mastigado. Na perspectiva que aqui interessa, e que se consolida na segunda metade do século XX, artista e crítico podem manter seus lugares de preferência, mas sentam-se confortavelmente à mesma mesa e se olham de frente, a partir de uma mesma estatura.

    Diante de todas as aberturas promovidas pelas manifestações artísticas nas décadas de 1960 e 1970, o exercício da crítica se confunde em boa medida com o fazer do filósofo, do historiador, do educador e, ainda, aproxima-se intensamente do fazer do artista. No caso particular do Brasil, onde a disciplina da crítica de arte nunca foi exatamente uma instituição com sede própria, tanto mais se conseguirá demonstrar que ela existe e que tem força, quanto mais se puder observar sua complexidade. Como veremos neste livro, imprimir à crítica uma forma poética não significa, como antes, querer estabelecer um gênero literário autônomo, mas impregnar-se dos processos e da matéria artística que propõe analisar. Privilegiando justamente esse período, Galciani assume um desafio: buscar as formas mais plurais da crítica e, ao mesmo tempo, reconhecer os contornos mínimos que identificam esse fazer. Porque só é possível localizar uma atuação transgressora quando ela não se dissolve totalmente no território sobre o qual avança. Se a autora tenta responder à afirmação ressentida de que não há crítica de arte no Brasil, seria insuficiente tratá-la como uma postura reflexiva corriqueira que se manifesta no trabalho de todo artista ou de todo pensador que observa o campo da arte. O ser da crítica existe, mas é constituído daquilo que ele é capaz de tornar-se.¹ A crítica que interessa a esta pesquisa é feita de matéria permeável e relativizada, mas ainda tem seu corpo próprio.

    O exercício da crítica é visto aqui em seu papel comunicacional e age para ampliar o território partilhável entre artista e público. Cabe considerar os limites e os riscos dessa atuação diante dos efeitos ambíguos gerados pelas experimentações artísticas desse período: de um lado, elas investem numa aproximação com o público apropriando-se de objetos que habitam sua vida cotidiana e buscando alternativas de circulação além dos espaços institucionais de arte. De outro, deixam nu o olhar de um público minimamente erudito, vestido dos critérios formalistas já disseminados que, até então, permitiam uma razoável identificação com a arte moderna. Nesse momento de desconforto, a crítica deve decidir entre aproveitar-se uma demanda de explicações para repor a erudição perdida e afirmar a suposta dependência que o artista têm de sua palavra certeira (aquela palavra divina concedida à Adão, que lhe permitia dar o nome certo a cada coisa recém-criada). Ou, em vez disso, pode preferir contaminar sua escrita desses acontecimentos tão novos quanto fugidios, para construir ou ampliar um espaço em que possam ser efetivamente experimentados, mesmo quando ainda não foram nomeados. Nesta última condição, os discursos e as narrativas que antes pareciam perturbar o silêncio da contemplação se tornam matéria integrante da obra de arte. Em momentos cruciais como esse, o crítico, a quem muitas vezes atribuímos o papel de facilitador, tem a tarefa de garantir a complexidade daquilo que ajuda a comunicar.

    Como em toda boa pesquisa, os problemas aqui propostos não surgem da oportunidade que a universidade oferece de jogar com as ideias. Antes disso, esses problemas já se faziam legíveis nas marcas que a convivência com os artistas havia deixado no corpo. Por isso mesmo, as respostas esboçadas seguem transbordando na direção de um cotidiano de trabalho da autora. Sabemos que, em sua atuação como crítica – que se traduz nesta e em tantas outras escritas, mas também em curadorias, no trabalho em sala de aula e nos grupos de acompanhamento –, Galciani tem articulado seus pensamentos muito rente à produção de jovens artistas.

    O valor deste livro está no fato de Galciani buscar entender o trabalho de críticos brasileiros investindo numa proximidade semelhante à que mantém com os artistas. O olhar distanciado não lhe interessa nem dentro nem fora da academia. Além das tantas leituras que acumula, este trabalho se construiu a partir de entrevistas e conversas diretas com importantes pensadores da arte no Brasil: Aracy Amaral, Frederico Morais, Ronaldo Brito, Paulo Sergio Duarte, Annateresa Fabris, Paulo Venâncio Filho, Fernando Cocchiarale, Glória Ferreira, Tadeu Chiarelli, que têm em comum o fato de terem vivido de perto a efervescência artística das décadas de 1960 e 1970. Apoiou-se também em diálogos com Maria Amélia Bulhões, Mônica Zielinsky, Marcio Doctors, Cristina Freire e Sônia Salzstein. E, mesmo quando a distância já estava imposta, soube construir uma escuta muito viva e atenta das vozes de Sérgio Milliet, Mário Pedrosa e Walter Zanini.

    Há um outro lado dessa abordagem que permite tomar como objeto uma história que permanece em curso e na qual se está profundamente implicado. Quando a análise e o gesto se tornam inseparáveis dentro de uma pesquisa, ela revela sua potência política. Essa dimensão parece interessar particularmente à autora e está claramente presente na atuação dos críticos e artistas com que dialoga: quando os ateliês, as salas de aula, as redações de jornais estão sob vigilância, artistas e críticos saem a campo e buscam novas formas de colocar seus pensamentos em circulação para responder às urgências de seu tempo. Esse momento em que todas as liberdades são negadas é para artistas e críticos a ocasião de criar formas que permitam expressá-las ainda mais intensamente. Quando os direitos são restituídos e as coisas parecem calmas, baixamos a guarda e demoramos a perceber como as formas históricas de violência também se reinventam. Relembrar o papel da crítica naqueles tempos turbulentos não constitui uma oportunidade de celebrá-la, de oferecer a ela um monumento. É também uma forma de manter de prontidão as forças transformadoras que a arte é capaz de mobilizar. A memória convocada por esta pesquisa é intensamente política e está dedicada ao que vem adiante.

    Referência

    Benjamin, Walter (2011). Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo, Ed. 34 / Duas Cidades.


    1. A expressão é adaptada do poeta Píndaro: torna-te o que tu és; lembrado por Nietzsche no título de sua obra: Ecce Homo: ou como se chega a ser o que se é (1908).

    introdução

    paisagem de uma pesquisa

    Após repassar este texto e também compartilhá-lo para edição, quando se sobrepuseram leituras que tornaram possível a empreitada de transformação de uma tese de doutorado¹ em livro, ainda me escapa a pergunta: que interesse pode ter a escritura, qualquer que seja ela, senão o vento? Embora ciente dessa condição, e, mais que isso, ciente de que este livro é quase mesmo uma garrafa lançada ao mar, acredito insistir na tentativa de conversa um tanto incerta estimulada por alguns exercícios críticos, incansáveis por natureza e em permanente fluxo com a produção artística, e pelos esforços de seus autores em provocar mobilidades perceptivas, perguntas, mudanças de atitude, enfim, encontros em torno e a partir da arte que aumentam a potência do existir, para citar Espinoza. Assim, suponho que este é um livro feito de muitos personagens: críticos, artistas, curadores, pesquisadores, professores, alunos, enfim, companheiros de jornada.

    Em tempo, cabem comentários que introduzam esta pesquisa. Ressalto que as investigações aqui presentes seguem os percursos labirínticos dos exercícios críticos no Brasil, quando passaram a negar os procedimentos descritivos, o mero papel de julgamento qualitativo, os modelos assegurados pelas definições de arte e as categorias puramente formais. Ou seja, observando uma espécie de esgotamento dos procedimentos artísticos que emergia por volta das décadas de 1960 e 1970, foi possível revisitar quais reflexões traçaram os críticos de arte brasileiro acerca do surgimento de práticas e pensamentos livres de preconceitos historicizados e tradicionais, aliados a um despertencimento a tudo que pudesse limitar a produção artística, formatar com exatidão categorias de linguagens ou legitimar uma apreensão normativa, valorativa e singular. Este livro se atenta também ao fato de que as linguagens artísticas, assoladas por tantos paradigmas estéticos, ampliaram-se transdisciplinarmente e aglutinaram aspectos como transitoriedade, efemeridade, imaterialidade, reprodutibilidade, acaso e uma não delimitação entre as esferas da arte e da vida. Os artistas expandiram suas investigações e anularam as possibilidades de uma essencialidade da arte, enquanto a história da arte perdia seu rumo linearizado, na medida em que se tornava inviável acompanhar todas as mudanças e os caminhos que antes eram trilhados pelos estilos que se substituiam e eram narrados quase que linearmente.

    A arte contemporânea não rivaliza com períodos históricos, não pretende se encaixar neste ou naquele estilo. Os artistas liberam-se da obrigação com a tradição, mirando a história da arte como forma de conhecimento a seu dispor, apropriando-se, refazendo, visitando conceitualmente obras de arte e aventurando-se em usos e transformações de toda natureza e temporalidade. Enquanto isso, críticos de arte elaboram, a partir das mais diferentes estratégias metodológicas e tendências teóricas e filosóficas, meios de aproximação aos acontecimentos artísticos. Estimulados pelas questões propostas por projetos artísticos, convocam o público/leitor a outros olhares. Discutem componentes estéticos e poéticos, enlaces com a cultura e o cotidiano, relações entre poéticas, possíveis significados suscitados pelas práticas dos artistas, procedimentos criativos, impactos nos contextos históricos, políticos, culturais e mesmo institucionais. Assim, percebem e narram como o significado de um projeto poético não é um conteúdo necessariamente autocontido, mas antes almeja constituir processos de percepção múltiplos que emergem em uma intensa relação com o contexto em que foi produzido, exibido, em que circula. Essas e outras tantas ações da crítica de arte sugerem leituras e perspectivas de compreensão, pois atuam formulando modos de ver e pensar acerca de uma obra de arte.

    Das tantas polêmicas que rondam esse cenário, uma diz respeito à própria noção de crítica – sua função, a natureza da atividade, seus métodos – a que Zielinsky (2003, p. 10) afirma corresponder um sintoma identificável em muitas áreas de pesquisa e de produção: o esfacelamento dos parâmetros para a avaliação crítica, esta que não pode mais situar-se sob qualquer perspectiva universalizante; exige cada vez mais uma visão de alteridade, da contextualização e do relativismo. Somam-se a isso as relações – descompassadas e/ou confluentes – entre produção artística, crítica e história da arte, ou seja, entre a existência da arte e os discursos sobre arte. Tendo isso em mente, este livro propõe que se evitem os chavões – não há mais críticos ou a a crítica morreu, buscando discutir inquietações provocadas por uma transgressão de limites conceituais, mas que ainda denotam claramente a existência de exercícios críticos sobre arte e seus agentes. Também constata, por meio das mais distintas vozes, a ausência de um único e eficaz modo de ação que abarque por completo o terreno em expansão de atuação dos artistas; a instabilidade conceitual da noção de arte; a perda de autoridade da história como suporte e como lugar de identidade e incessantes mutações da percepção sobre arte que acabam por transformar os métodos de análise da crítica de arte. Com o fim da era dos manifestos, como nomeia Danto, a questão o que é arte passa a conjugar-se em sua forma mais radical e livre, destituindo qualquer imperativo poético ou estilístico e desconfigurando as narrativas que teimam em organizar as produções artísticas com o passar do tempo. Em um exame acerca das relações e adequações entre a arte e suas narrativas, Belting (2006) afirma que se torna inviá­vel perpetuar um modelo de história pautado somente pelos estilos e suas sucessões lineares. Ao passo que o fim ou a superação desse modelo não significa o fim da arte ou, consequentemente, da crítica de arte, mas aponta para o fim de uma tradição canônica, em que um estilo artístico dominante pode ser representativo de um período. Sem um princípio obrigatório para direcionar as condutas, tanto a produção artística quanto a crítica de arte passaram a aderir a outros campos do saber e da experiência, questionando-se a si próprias acerca da natureza de seus ofícios. Segundo o autor, somos liberados de um conceito verdadeiro de arte e mesmo da exigência em constituí-lo a todo custo.

    Enquanto os artistas nem reconhecem nem pretendem estabelecer uma identidade estática para suas atividades e procedimentos, o desafio da crítica de arte parece estar em negociar com as possibilidades que explicitam a transitoriedade dos conceitos e o fim de regulamentações. É o próprio Danto (2002/2009) que afirma que a única coisa que o crítico de arte pode fazer nesse momento é comentar o que está vendo, ao invés de contrapor modelos, negá-los ou julgá-los inapropriados. A crítica contemporânea vê-se em estado de modificação, sem dúvida, pela ausência de orientações unificadas e de uma noção de arte estabilizada às quais recorrer. Assim, não só a história dos estilos artísticos e a análise das técnicas bastariam à crítica, mas se constata a demanda de se inserir no campo híbrido de construção dos significados artísticos, considerando e aderindo aos comentários e relações sobre os processos, identificando-os e promovendo enlaces com outras disciplinas, com as atividades desempenhadas na vida, com a teia político-histórico-sociocultural.

    O mundo da arte pluralista exige uma crítica de arte pluralista, e isso significa, em minha concepção, uma crítica que não depende de uma narrativa histórica excludente, mas que toma cada obra em seus próprios termos, em termos de suas causas, de seus significados, de suas referências e do modo como esses itens são materialmente incorporados e como devem ser compreendidos. (Danto, 2006, pp. 166-167)

    Há tempos, tornou-se urgente alongar a vista para além das narrativas hegemônicas, embora se reconheçam toda elas. E exatamente onde tudo vale (portanto, nada vale), em território de ninguém, parece que a profissão do crítico perde sentido. Mas, ao contrário, adquire mais sentido (Justino, 2005, p. 30). Como conciliar-se com este sentido e exaltá-lo na prática crítica? Como é possível conviver e avaliar as pluralidades artísticas em metamorfose e suas constantes indagações? À crítica tornou-se impossível voltar atrás: desmantelaram-se os parâmetros dos espaços para exposição, na medida em que a circulação e a distribuição de experimentos artísticos romperam com os cubos brancos; a indiferenciação entre obra, documento, registro e ação desestabilizou as legitimações provenientes das instituições e de seus agentes (críticos, curadores, diretores de museus, galeristas); o público passou a engendrar, participar, constituir a obra, enquanto o artista não era mais o autor, mas um propositor de situações; o ambiente de criação e percepção não era exclusivamente artístico, mas reconstruía-se em relações com os campos cultural, social, antropológico, político, econômico.

    Talvez tenhamos que admitir que tanto a crítica como a história e a própria prática artística apresentam repertórios cada vez mais amplos e complexos, e por isso exigem relações mais profundas, ressonâncias em seus exercícios e associações mais coesas. Para Venturi, o caos metodológico em lidar com os aspectos artísticos e a falta de entendimento entre essas disciplinas dificultam o embate fértil: a crítica, muitas vezes, limita-se a aceitar a história como catalogação de fatos e dados, mero esquema museográfico; ao passo que a história não admite compactuar com os critérios críticos construídos para tratar os acontecimentos. O eco em seus afazeres se faz necessário.

    A história da arte precisa igualmente de uma consciência da natureza da arte e de uma experiência concreta da arte para distinguir se um quadro ou estátua são obras de arte, criações artísticas ou apenas factos racionais, económicos, morais ou religiosos. Por outro lado, como poderia um crítico compreender uma obra de arte sem enquadrá-la na actividade do seu autor, sem relacioná-la com as outras obras de tendência afim ou oposta, sem fazer, enfim, história? (Venturi, 2007, p. 27)

    Os nós dessa trama seguem alimentando tanto de desafetos quanto de desafios esses processos de conhecimento – arte, crítica e história. Diante das crises epistemológicas tão alardeadas no mundo contemporâneo, pode-se pensar que a crítica de arte enfrenta relativo descrédito e que em muitos momentos aporta em dificuldades, a correr em desvantagem atrás das frequentes e abruptas mudanças e avanços conceituais da arte. Cada vez que há uma mudança na arte, os conceitos mais ou menos estabilizados, empregados por críticos para a arte vigente, começam a ficar ineficientes, mostrando-se estreitos ou incapazes para assimilar a novidade² (Schultz, 2005, pp. 47-48; tradução nossa).

    As páginas a seguir não pretendem responder a indagações como estas, mas são antes relatos de um ser e estar em interrogação. Vibram de inquietações, dúvidas, curiosidades – berço da pesquisa, diria Flusser. São páginas dedicadas ao exercício crítico no Brasil e atentas ao fato de que a crítica de arte brasileira foi definida como descrição, avaliação, judicação, mediação, formação de público, reportagem – denominações um tanto ralas e inférteis, que fizeram avançar uma fácil premissa sobre a crítica de arte no Brasil, contestando sua função e existência. Isso para não citar os comentários sobre seu discurso redundante em relação à obra ou, contrariamente, sobre sua linguagem inacessível e rebuscada. Falar da ausência de crítica no Brasil, sobretudo no que tange às artes visuais, já se tornou quase uma verdade – proposta encantadoramente incontestável. Há algum tempo, sua crise é alardeada e nessa assertiva se concentram outros tantos clichês tão infrutíferos e esvaziados quanto. E assim, a par do peso dessa propagada inutilidade e da frequente associação a uma linguagem hermética, pareceu importante, para esta pesquisa, investigar como as intensas transformações vivenciadas por artistas surtiram efeitos nos gestos dos críticos que se viram diante da urgência de questionar os instrumentais pelos quais a crítica de arte habitualmente se valia.

    Como investigar a atividade crítica brasileira? Que possíveis olhares podem ser lançados a esse terreno de ação? Se o crítico tem acesso e, mais que isso, profunda intimidade com os processos dos artistas, se age colaborativamente, se claramente seu trabalho se impregna do contato com o artista, sua tarefa se transformou? E como e por que isso ocorreu? No Brasil, durante as últimas décadas, tem-se assistido a uma espécie de sobreposição dos fazeres de críticos, historiadores, pesquisadores, curadores, professores. Assim, é possível avistar uma compreensão do campo de ação da crítica enquanto se efetivam férteis trocas com outras práticas? E mais, tais reflexões podem implicar outras novas problemáticas à crítica de arte brasileira?

    É acerca de exercícios críticos brasileiros, mais especificamente durante as décadas de 1960 e 1970, que este livro deposita seus interesses e se espraia. Não se trata de um esforço de recuperação da expressão crítica, nem de refazer a história da crítica brasileira. Trata-se da tentativa de adentrar os muitos modos de agir desses sujeitos autores, evidenciando, a partir de perspectivas processuais, a possibilidade de uma tarefa também autorreflexiva e que se fundamenta, prioritariamente, no fazer artístico e nos percursos de percepção traçados diante da obra por meio da palavra. Nesse sentido, este livro se engaja ao que propõe Certeau (2007, p. 37): uma pesquisa não precisa sanar os problemas conceituais que circundam seu objeto, (...), trata-se de torná-lo tratável, ou seja, fornecer, a partir de sondagens e hipóteses, alguns caminhos possíveis para análises ainda por fazer.


    1. Defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semió­tica da PUC-SP, em 2014, sob a orientação de Cecilia Almeida Salles. A banca de defesa era formada por Agnaldo Farias, Cauê Alves, Miguel Chaia e Ronaldo Entler.

    2. "Cada vez que hay un cambio en el arte, los conceptos más o menos estabilizados, empleados por los críticos para el arte vigente, comienzan a dar turbos. Se muestran estrechos o incapaces para asimilar la novedad".

    parte 1

    De cá para lá: por uma narrativa possível acerca dos exercícios críticos no Brasil

    É a própria vida transitória que estabelece os elementos relacionais para os julgamentos de valor. E no caso, essa vida é o Brasil. Mas o Brasil, entenda-se: não só o que ele foi, tradicionalmente, o que ele é racialmente, mas também no tempo de agora, como assimilação do espírito do tempo.

    Andrade (1977)

    Este livro pretende lançar uma visada sobre a crítica de arte brasileira, afastando-se dos pressupostos mais frequentes e um tanto esvaziados de considerações mais profundas, que vagueiam por entre dilemas infrutíferos, como: não existe crítica de arte no Brasil; ou que, por se tratar de uma prática de natureza idiossincrática, seria, portanto, impenetrável; ou que se vive a aridez e a crise da crítica. Para amenizar a inoperância dessas declarações, esta primeira parte propõe uma visita à história da crítica de arte brasileira, examinando o exercício dos críticos, suas experiências e as experiências artísticas que acompanharam e debateram.

    De início, surge uma indagação tão incisiva quanto coerente: se a noção de crítica – tão comumente associada aos aspectos manifestos nos Estados Unidos e na Europa – apresenta-se ampla, complexa, mutante, mas passível de se efetivar observações sobre tendências, atitudes, abordagens, quais possíveis conjugações sobre o conceito de crítica se efetivam no contexto brasileiro? Disso ainda derivam outros questionamentos: que aspectos acerca do exercício crítico brasileiro devem ser investigados? E mais: se o crítico de arte, que, notoriamente no cenário internacional, alia-se às raízes da atividade crítica ao tecer comentários e reflexões a fim de adensar os efeitos de uma obra em um plano cultural e social e constituir outras possibilidades de percepção da linguagem artística, entre outras tarefas; quais são as práticas dos críticos no Brasil?

    Se ainda restam incertezas, que vão desde a sobreposição/diferenciação entre as atividades do crítico, curador, pesquisador ou historiador, enfim, dos profissionais atuantes no sistema artístico brasileiro, à indeterminação do gênero de textos por estes produzidos – crítica, ensaio, artigo, resenha, texto curatorial, reportagem cultural, pesquisa acadêmica – não cabe aqui frear a dinâmica heterogênea do contexto nacional. Pretende-se evitar conceituações a priori que engavetem em classificações estanques a multiplicidade de estratégias, de modos de ação e a diversidade de propostas e abordagens que se diferenciam, entre outras características, pelas relações com o cenário artístico, social, midiático, cultural, político em questão. Busca-se, antes, perscrutar os alinhavos, os percursos e os fluxos de transformação da crítica brasileira; quais os conceitos utilizados pelos críticos e como se dão as ressonâncias entre o público e as atividades dos artistas, instituições e meios de comunicação (revistas, jornais, publicações, livros, catálogos).

    Busca-se, assim, percorrer alguns momentos significativos da crítica de arte exercida no Brasil, discutindo os diálogos, as trocas e as experiências de compartilhamento entre críticos e artistas, recorrendo às distintas estratégias de publicação, abordando textos, debates, exposições, quando, a partir do começo do século XX, pareciam iniciar-se as discussões abordando a necessidade por uma identidade tanto da produção artística quanto da cultura brasileira. Serão comentados eventos, exposições, obras, textos críticos, embates que figuraram no contexto artístico brasileiro ao longo do século XX, para se compreender a atuação dos críticos de arte. A seleção desses instantes históricos tenta privilegiar picos de transformações na arte e direcionamentos conceituais, teóricos, sociais, culturais, enfim, cuja intensidade reverberou em realinhamentos nos processos, abordagens e métodos do exercício crítico. Assim, propõe-se observar na história da crítica brasileira questões detonadoras de mudanças e tendências que guiaram os modos de fazer de alguns dos principais críticos de arte do Brasil e o que suas discussões incentivaram no cenário artístico e no debate sobre arte.

    Entende-se nesta pesquisa que, para se pensar a crítica brasileira, torna-se necessária também a compreensão de alguns aspectos acerca do debate sobre a modernidade no país. A discussão tem início tratando brevemente de um contexto histórico que se desenrola a partir dos fins do século XIX e de alguns dos mais imediatos precedentes modernistas no início do século XX – quando se torna um pouco mais frequente a organização de exposições, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, comentadas, sobretudo, nos jornais de maior circulação. Assim, observa-se a virada do século para compreender alguns princípios da primeira vanguarda, as discussões que suscitaram, seu processo inundado de contrastes: entre a vontade de renovação do panorama artístico, a euforia pelo progresso e pela expansão da industrialização.

    Por meio de uma compreensão contextualizada, serão estudadas as principais problemáticas relacionadas ao exercício da crítica de arte no Brasil. Serão destacados alguns momentos em que as tendências de cunho antiacadêmico, principalmente a partir da década de 1920, contaram com o incentivo e a participação de críticos de arte e de intelectuais que fizeram emergir novas questões; bem como os acontecimentos da década de 1940, que, conforme afirma o crítico de arte Sérgio Milliet, foi palco da falibilidade da arte moderna; e, principalmente, os debates e formas de abordagem à arte experienciados durante as décadas de 1960 e 1970.

    Certos processos como as rivalidades entre academicismo e naturalismo, a busca por uma brasilidade na arte, o rompimento com a reprodução do real, as vanguardas europeias como referência à produção nacional, as reações ao modernismo forasteiro, os trâmites da figuração à abstração, a tradição construtiva e seus efeitos no concretismo e no neoconcretismo, a arte como participação, a figuração de tendência pop, o experimentalismo conceitual, a utilização dos meios de comunicação de massa e de matérias primas efêmeras, enfim, serão tratados aqui em distintos graus de profundidade. Pretende-se discutir os horizontes variáveis da arte brasileira, como a crítica de arte conviveu com esses distintos processos e o quanto participou e interviu no campo da arte. Para tanto, tem-se em vista algumas das reflexões sobre a história da arte brasileira comentada por Zanini na década de 1980:

    (…) a variedade de tendências que aqui se sucederam nos últimos 30 anos [estavam] em correspondência com as diretrizes dominantes da arte contemporânea internacional. Desde os anos 70 as dicotomias diacrônicas cederam a uma situação que se define pela simultaneidade de múltiplos vetores de grande determinação. (…) Produzida num quadro próprio das nações deste e outros hemisférios em luta contra o subdesenvolvimento, a arte no Brasil evoluiu ligada à internacionalidade que começara a marcá-la mais profundamente a partir da década de 1950. (Zanini, 1983, p. 812)

    Essa visão panorâmica, ainda que resumida, vai abordar os processos e os modos de ação dos principais críticos do Brasil, as questões que consideravam como essenciais ao desenvolvimento e os debates sobre artes visuais no país que residiam em suas análises. Serão discutidas quais as suas referências e de que instrumentais se valiam.

    De primordial importância para este estudo são os textos produzidos pelos críticos de arte e publicados nos mais diferentes meios e jornais sobre artistas, exposições, questões relativas ao sistema da arte, como também textos reflexivos sobre a atividade crítica e sua função, enfim, textos críticos que propuseram pensamentos profundos que discutiam seu contexto de ação e que na atualidade podem também ser avistados como documentos, registros, testemunhos de momentos da arte e da crítica brasileiras. Dessa maneira, vislumbra-se uma compreensão acerca da diversidade de posturas, de abordagens, dos meios de publicação e de constituição das análises da crítica brasileira durante o século XX.

    Em tempo, é preciso esclarecer que o esforço, que se inicia aqui, está em traçar relações entre a crítica de arte brasileira e o contexto de produção artística, os escritos e obras de artistas, os percursos dos críticos, suas mais distintas metodologias, abordagens e as reflexões que geraram para a construção do debate artístico. Relações estas que, acredita-se, podem colaborar para uma compreensão acerca de tais experiências críticas como expressões consistentes para o pensamento sobre arte no Brasil.

    Estratégias e debates da crítica de arte no Brasil

    No fim do século XIX, o estado de São Paulo lançou programas de bolsas de estudos de arte no exterior, que garantiam a artistas uma formação e possível especialização fora do país, já que por aqui pouco acontecia além de experiências de ensino muito tímidas, como, por exemplo, o Liceu de Artes e Ofícios, que formava, sobretudo, artesãos e de onde alguns poucos artistas se sobressaíram, como Hugo Adami e Mário Zanini. Pouco se sabe sobre os artistas que residiram no exterior, a não ser que predominava entre eles a pintura de paisagem de caráter naturalista, com pouco ou nenhuma aderência às correntes vanguardistas já experienciadas na Europa, entre os fins do século XIX e início do século XX. Ainda assim, o retorno desses artistas ao Brasil, principalmente por conta da Primeira Guerra Mundial (1914), ampliou em certa medida o debate artístico-cultural – dinamizando o surgimento da crítica de arte de caráter nacionalista. Não havia grande efervescência cultural ou artística. E as tendências dominantes provinham do impressionismo e de um espírito academicista, como possível estratégia para enquadrar-se entre as noções consideradas mais cultas e civilizadas. Nesse momento, alguns intelectuais que escreviam em meios como O Estado de S. Paulo e a Revista do Brasil eram unânimes ao decretar em seus textos um cenário ainda bastante indiferente em relação à cena artística de São Paulo. Chiarelli, em Um Jeca nos Vernissages (1995), apresenta uma designação das perspectivas críticas nas quais os críticos se engajavam em São Paulo: a crítica de arte de serviço e a crítica de arte militante.

    A crítica de arte de serviço tinha como principais intuitos informar sobre as obras de arte em exposição, apontar caminhos de apreciação dessas produções e também direcionar o gosto do público. A maioria desses textos não era assinado e trazia descrições das obras, seu impacto e importância para o contexto artístico. Discutiam questões relativas ao circuito artístico, ao gosto – o que se deveria adquirir, recomendando artistas que apresentavam na atualidade uma produção mais significante, e, inclusive, o que a Pinacoteca do Estado deveria garantir a seu acervo. E ainda opinavam acerca do ensino da arte, reivindicando ao governo do Estado políticas mais sérias para incrementar a formação e garantir a sobrevivência do artista, como também a educação artística da população em geral.

    Com um discurso bastante comedido e de caráter pedagógico, esses críticos demonstravam conhecer a trajetória do artista, pois comentavam os avanços e recuos de seus processos, os deslizes e desafios encarados e ainda apontavam possíveis caminhos para aprimorar a técnica e o tratamento conferido aos temas, ao mesmo tempo que se preocupavam com a perda de identidade dos artistas que estudavam fora do Brasil. Mas esses discursos eram pouco consistentes. Havia uma certa referencialidade a alguns critérios e ao modo como escrevia o crítico francês Émile Zola por parte dos críticos de serviço, que em nada haviam contraído o seu fervor de exaltação ao naturalismo. Esses críticos tinham pouco repertório e visualizavam toda a produção da época como desdobramentos das experiências do impressionismo e pós-impressionismo e ainda não estavam atentos ao debate artístico europeu que as vanguardas já problematizavam. Não vislumbravam o grande impacto da falência de universais, como a quebra da perspectiva, e a crise da representação e como estas povoaram as correntes artísticas que revolucionaram a arte sob o ponto de vista de sua criação e finalidade.

    A linguagem respeitosa dos textos, aliada à necessidade de (uma pretensa) imparcialidade informativa, talvez não tenha permitido aos responsáveis pela seção especializada do Estado uma tomada de posição mais declarada a favor do naturalismo nacionalista. (…)

    (…) A obra era, portanto, valorizada na crítica do Estado quando nela se percebia o assunto tratado através do temperamento de seu autor. (…) Tal postura remete diretamente à formulação célebre do escritor e crítico de arte francês Émile Zola, que dizia ser a arte um pedaço da criação visto através de um temperamento. (Chiarelli, 1995, pp. 77-78)

    A apologia ao naturalismo demonstrou-se mais intensamente contrária à arte moderna quando Anita Malfatti apresentou telas claramente influenciadas pelo expressionismo alemão na Exposição de Pintura Moderna/Anita Malfatti (1917). A artista expôs obras como A Estudante Russa (ca. 1915), O Homem Amarelo (1915-1916), Tropical (1917), que apresentavam nitidamente procedimentos da pintura moderna que incorporara dos tempos de estudos com Fritz Buerger na Academia Lewin Funcke, assim como a não hierarquização entre figura e fundo, uma pincelada mais livre, o uso de cores não realistas. O impacto de suas telas se fez sentir em jovens intelectuais como Mário de Andrade: Ninguém pode imaginar a curiosidade, o ódio, o entusiasmo que Anita Malfatti despertou. Não posso falar pelos meus companheiros de então, mas eu pessoalmente devo a revelação do novo e a convicção da revolta a ela e a força dos seus quadros (Andrade, Fazer história [publicado originalmente na Folha da Manhã, em 24/8/1944], in Lonta, 2007, p. 143).

    E um desconforto também se pulverizou entre muitos críticos e comentadores de arte, que estavam habituados a valorizar o fato de um artista pintar aspectos que representassem a brasilidade da cultura, a exaltar a capacidade de captar o entorno típico do país. Esses críticos acreditavam, principalmente, que o artista não deveria priorizar ditames estéticos acadêmicos e uma perícia técnica em detrimento de sua personalidade na tela. Benedito Calixto era um desses heróis da crítica:

    O seu pincel é senhor de todas as vivas e variáveis cores que abrilhantam o nosso litoral, as nossas praias, as nossas paisagens; que tornam os nossos céus, os nossos mares tão característicos, tão brasileiros, tão cheios de encantos para todos os que conhecemos e por isso os adoramos com arrebatamento e profunda paixão.

    (…) Calixto reproduz, em todos os seus quadros, trechos vivos da natureza, apanhados pelo flagrante de seu pincel amestrado (…)

    É um naturalista, não um fantasista. ([Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 21/11/1903], in Chiarelli, 1995, p. 79)

    Assim como a crítica de arte de serviço, a crítica de arte militante também utilizava uma exaltação ao naturalismo como critério de julgamento, com a diferença que esta última articulava uma maior atenção a um tom marcadamente nacionalista. Apresentava um desejo por uma arte nacional que tratasse de temas brasileiros e exaltasse a identidade do que se vivia no país. Em comum, as duas vertentes também estavam inaptas a lidar com as produções que referenciavam processos provenientes das vanguardas europeias. E, assim, acabavam por se refugiar em critérios academicistas e em cânones estéticos, ainda que, no plano do discurso, os negassem frequentemente.

    A crítica militante apresentava textos mais comprometidos com uma vontade de transformação do cenário artístico brasileiro e, sobretudo, uma discussão acerca do potencial ético da arte, aspecto até então raro às especificidades da produção local. Os críticos traziam formulações que

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