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Presença centro-africana no Vale do Paraíba (SP)
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Presença centro-africana no Vale do Paraíba (SP)
E-book186 páginas2 horas

Presença centro-africana no Vale do Paraíba (SP)

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Sobre este e-book

A originalidade cultural da região do Vale do Paraíba expressa a presença centro-africana - Congo e Angola - e é notável ainda hoje em festas religiosas da região. Para encontrar os africanos escravizados na região, foram preciosas as fotografias de Marc Ferrez, elaboradas na segunda metade do século XIX, bem como estudos em demografia histórica: censos, registros de batismos, de óbitos etc. Enfim, dados numéricos, longe de tornar a análise fria e formal, podem sensibilizar-nos para outros protagonismos. É possível também localizar traços de culturas centro-africanas nas singularidades do catolicismo praticado no Vale do Paraíba (delineado no século XIX e com prolongamentos ainda hoje). Essa tradução expressou-se também nas artes – estátuas de santos nó de pinho – e nas festas religiosas – Festa do Divino Espírito Santo. Seus autores, africanos e descendentes, criaram e utilizaram-se delas em suas experiências de recriar "Áfricas" na diáspora. Enfim, compreender como africanos escravizados tomaram para si elementos culturais que lhes foram impostos, traduzindo e criando Áfricas no Brasil, significa evidenciar novos sujeitos históricos e dinâmicas sociais de crioulização.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de fev. de 2022
ISBN9786525220994
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    Presença centro-africana no Vale do Paraíba (SP) - Mônica Savieto

    CAPÍTULO 1 CENTRO-AFRICANOS E DESCENDENTES NO VALE DO PARAÍBA

    Identificar quem são os africanos e descendentes no Vale do Paraíba, bem como em todo o Brasil, é um desafio que nos últimos anos a historiografia brasileira tem enfrentado, sobretudo após a década de 1980, com estudos realizados por pesquisadores africanistas. As dificuldades se avolumam, pois esta memória foi intencionalmente silenciada, negligenciada ou esquecida e, mesmo quando registrada, o foi perifericamente, ou seja, retratada com foco no lugar social de escravizados.

    Muitos dos documentos que tinham por objetivo registrar o centro-africano escravizado do século XIX o fizeram, claramente, através do olhar de autores europeus ou europeizados. Na fotografia, linguagem que se difundiu no Brasil do século XIX em meio à sociedade letrada e escravista, nas poucas vezes em que o escravizado se tornou o foco central da imagem, raras foram as referências sobre o fotografado. As lentes registram, mas o olhar do fotógrafo não encontra completamente o olhar do fotografado, pois pouco o conhece ou, antes, pouco procura conhecê-lo. As referências sobre os fotografados são sempre lacunares. Há, neste sentido, uma ambiguidade: captam-se imagens de africanos em cenas de trabalho ou mesmo em retratos, porém faltam registros em torno de quem eles são. Enfim, eles não tiveram direito à identidade ou identificação. Poucas imagens são acompanhadas por dados referenciais, tais como: onde, quando, quem. Omissão ou desinteresse fez com que muitas das imagens fotográficas, embora belíssimas e preciosas, perdessem o contexto em que foram elaboradas.

    As fotos que se seguem, de africanos e descendentes no Vale do Paraíba, realizadas por Marc Ferrez⁶, foram reunidas por museus, institutos e colecionadores particulares, sendo que muitas delas pertencem atualmente aos acervos do Museu Imperial de Petrópolis (RJ) e do Instituto Moreira Salles, na cidade de São Paulo. Marc Ferrez, nascido em 1843 no Rio de Janeiro, captou imagens de negros em cenas de trabalho e também em retratos realizados em estúdios. Nos retratos, vislumbra-se, em muito, sua preocupação com os tipos físicos e a diversidade – vista como uma manifestação mais biológica que cultural, em concepção própria da intelectualidade europeia no século XIX. Nas fotos, ambientadas em fazendas de café do Vale do Paraíba, é possível, em um momento raro, encontrar olhares de sujeitos com quem se pretende dialogar. A fotografia, nesse sentido, tem o poder de emocionar, mas sobretudo de denunciar, em meio às práticas de modificar e elencar, inerentes ao autor. A foto também possibilita algo único: o entrecruzar dos múltiplos olhares que ela contém.

    Tanto nas cenas de trabalho como nos retratos, os escravizados olham a lente da câmera e o fotógrafo, mas este encontro de olhares não significa necessariamente que houve comunicação ou interação. Os nossos olhares (o do pesquisador e o do leitor/apreciador) encontram, na foto, os demais olhares (o da pessoa retratada e o do fotógrafo) e, em um esforço de comunicação, vislumbramos a possibilidade de aproximação. Esta possibilidade é intencionada por nós, pesquisadores e leitores, de forma diferente da realizada pelo próprio fotógrafo. Boris Kossoy, em estudos sobre a linguagem fotográfica, aborda estes três olhares: o olhar do personagem retratado, o do autor e o do leitor/apreciador. Neste sentido, considera que a fotografia se conecta fisicamente ao seu referente – e esta é uma condição inerente ao sistema de representação fotográfica –, porém, através de um filtro cultural, estético e técnico, articulado no imaginário de seu criador (KOSSOY, 2009: 42-3).

    Kossoy nomeia a imagem fotográfica como uma segunda realidade, que se relaciona, por vezes, de forma fugidia com a primeira realidade – com a cena retratada –, através do brevíssimo instante em que se registra a imagem.

    Através dos olhos de Marc Ferrez, passamos, então, a também olhar os escravizados do Vale do Paraíba.

    .Foto 1: Marc Ferrez. Partida para a colheita do café com carro de boi, no Vale do Paraíba. 1885. Coleção Gilberto Ferrez. Acervo Instituto Moreira Salles.

    Na imagem (foto 1), é possível notar que, em meio à névoa sobre o morro, característica das manhãs de inverno no Vale do Paraíba, um grupo de trabalhadores escravizados parte para a colheita de café acompanhado por carro de boi. É possível identificar gestos do corpo: os homens carregam instrumentos de trabalho; as mulheres carregam vários objetos em bacias sobre a cabeça, além de levarem crianças no colo. Homens, mulheres e crianças⁷ aparecem na foto vislumbrando uma possibilidade de articulação em laços familiares.

    Foto 2: Marc Ferrez. Colhedores de café. Vale do Paraíba. RJ. 1882. Coleção Ruy Souza e Silva.

    Acompanhado por instrumentos de trabalho (foto 2) – cestos e peneiras –, o centro-africano é retratado, pelo fotógrafo, igualmente como um instrumento. Dessa forma, os utensílios seriam praticamente extensões dos corpos, e a plantação seria o local mais adequado para retratá-los. Homens, mulheres e crianças trabalham na colheita do café. Seus olhares fugidios revelam o quanto a imagem foi roubada, montada ou imposta. A disposição dos africanos na foto também fala da redução dos mesmos a corpos/instrumentos. O fotógrafo, ao organizar a cena, além de selecionar ângulos e momentos para a captura da imagem, sugere uma posição de aparente ordenamento e subalternidade às pessoas

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