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Áfricas, Literatura e Contemporaneidade: Memória, imaginário e narrativa: trânsitos
Áfricas, Literatura e Contemporaneidade: Memória, imaginário e narrativa: trânsitos
Áfricas, Literatura e Contemporaneidade: Memória, imaginário e narrativa: trânsitos
E-book669 páginas8 horas

Áfricas, Literatura e Contemporaneidade: Memória, imaginário e narrativa: trânsitos

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Sobre este e-book

Os textos reunidos são desdobramentos de comunicações que integraram as sessões do VI Colóquio Internacional Áfricas, Literatura e Contemporaneidade, realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 2019. Composto por resultados de trabalhos em andamento, desenvolvidos em sua maioria por estudantes vinculados a Programas de Pós-Graduação, o volume constitui uma amostragem dos caminhos que vêm sendo percorridos no domínio das Literaturas Africanas entre nós. Fruto de um esforço coletivo de investimento nas discussões que o presente reclama, os artigos, na sua diversidade, inclusive pela opção transdisciplinar que caracteriza os estudos africanos, ressaltam os laços entre História e memória e a sua centralidade na vida literária. Com foco nessa relação, eles alimentam também o debate à volta de narrativas autoritárias empenhadas na diluição de presenças fundamentais na formação de nossa sociedade e na exclusão de referências decisivas para a leitura de dilemas da contemporaneidade. Na busca de novas formas de pensar o passado e o presente, o compromisso com um diálogo aberto e com a aproximação entre a universidade e a sociedade motivou o exercício da reflexão como um ato de resistência nesses tempos de convite ao desalento.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de ago. de 2022
ISBN9786586723557
Áfricas, Literatura e Contemporaneidade: Memória, imaginário e narrativa: trânsitos

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    Áfricas, Literatura e Contemporaneidade - Rita Chaves

    Rita Chaves | Jacqueline Kaczorowski | Bruna Del Valle de Nóbrega

    Aline da Silva Lopes | Matheus Vieira dos Santos

    Áfricas, Literatura e Contemporaneidade

    Memória, imaginário e narrativa: trânsitos

    São Paulo

    e-Manuscrito

    2022

    Ficha1Ficha2

    SUMÁRIO

    Apresentação

    Programação do VI Colóquio Internacional Áfricas, Literatura e Contemporaneidade | Memória, imaginário e narrativa: trânsitos

    Portagem para o romance moçambicano

    Adilson Fernando Franzin

    As personagens femininas de Noémia de Sousa: narrativas do corpo

    Aline da Silva Lopes

    O discurso da ausência: voz, silêncio e escrita em alteridade

    Ana Paula Rodrigues da Silva

    Viriato da Cruz: percurso político de um nacionalista angolano

    Angela Lazagna

    Engajamento da literatura na Guerra de Independência da Argélia (1954-1962): Assia Djebar e Kateb Yacine

    Bruna Perrotti

    As quitandeiras do mercado Xamavo em Boaventura Cardoso e Jofre Rocha

    Estefânia de Francis Lopes

    Memórias da guerra civil moçambicana: entre Tempos de Fúria (2018) e Os Sobreviventes da Noite (2008)

    Fernanda Gallo

    Entre a voz e a escrita: subjetividade discursiva na referenciação ao outro em Mulheres de cinzas, de Mia Couto

    Flaviana dos Santos Silva

    É possível sonhar Moçambique? Mia Couto e a invenção de uma nova épica a partir dos conceitos de Glissant

    Gisele Krama

    Entra na roda e ginga: imaginário literário brasileiro sobre a Rainha Ginga

    Helder Thiago Maia

    Militância anticolonial e representação literária: Nós, os do Makulusu, de José Luandino Vieira, e Un fusil dans la main, un poème dans la poche, de Emmanuel Dongala

    Jacqueline Kaczorowski

    República, raça e cidadania: o jornal A Liberdade, de São Tomé e Príncipe

    Jéssica C. Rosa

    Memórias revisitadas e o sonho angolano de José Eduardo Agualusa

    João Gabriel Pereira Nobre de Paula

    A Literatura em diálogo com a História: uma leitura do poema Passe de Noémia de Sousa

    Juliana Kohari da Silva

    A costura da memória e imaginário em Duzu-Querença, de Conceição Evaristo

    Karine Rocha

    Errar à liberdade: medo e vida nua em Água, de João Paulo Borges Coelho

    Ludmila Guimarães Maia

    Celeste & Làlinha: os retornados e a ficção africana de José Cardoso Pires

    Luiz Maria Veiga

    Ao monte também subirás para encontrar a tua luz e a tua sombra: o caráter representacional dos montes em três obras literárias de Paulina Chiziane

    Mariany Teresinha Ricardo

    Presentismo antropocosmocêntrico: breve estudo sobre o tempo e os Regimes de Historicidade no continente africano

    Matheus Vieira dos Santos

    Vida morta em suspensão: a violência colonial em peças de Sony Labou Tansi e de Frantz Fanon

    Nicolau Gayão

    Literatura e oralidade em Verre Cassé, de Alain Mabanckou: a imposição da língua do outro nas sociedades coloniais africanas

    Rayza Giardini

    Colonialidade e comunidade em Macunaíma, o herói sem nenhum caráter

    Tatiana Sena

    O entrechoque e a coabitação de representações: a reinvenção do subjetivo e do coletivo na construção do imaginário e da moçambicanidade. Subversão do discurso da ordem: a potência de reinvenção das vozes femininas em Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa

    Thiago Wesley Custódio Silva

    Sobre os organizadores

    Sobre os autores

    Apresentação

    História e memória no presente africano

    Rita Chaves

    Jacqueline Kaczorowski

    Bruna Del Valle de Nóbrega

    Aline da Silva Lopes

    Matheus Vieira dos Santos

    No universo transdisciplinar que se institui à volta dos estudos africanos, os laços entre História e memória têm revelado a sua dimensão e, armando-se em muitas direções, não raro confrontam-se como objetos de disputa na análise de processos diretamente ligados à produção da Literatura, sobretudo em territórios plantados sob a luz da instabilidade. Eleger essa intrincada relação como tema de discussão pode ser uma aposta contra os expedientes convocados pelos setores que têm procurado legitimar narrativas autoritárias e apagar marcas essenciais do nosso desenvolvimento histórico. Em um momento tão hostil ao exercício da reflexão, dar continuidade a projetos que apostam no diálogo aberto e na aproximação entre a universidade e a sociedade é uma prática de resistência a que não nos devemos furtar. Em uma luta ainda muito desigual, com o risco das distorções, o perigo dos revisionismos e a sombra do desalento à espreita, é fundamental identificar problemas que, inscritos em nosso campo profissional, projetam-se nos dilemas de nosso cotidiano e reinscrevem-se como elementos que intervêm nos debates epistemológicos que o nosso presente reclama.

    Fruto de um esforço coletivo de investimento no debate, os textos aqui reunidos são desdobramentos de comunicações que integraram as sessões do VI Colóquio Internacional Áfricas, Literatura e Contemporaneidade, evento realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 2019, cuja programação transcrevemos ao final. Como em todas as suas edições, a reunião científica teve como objetivo essencial contribuir para a atualização dos debates sobre a produção cultural e as realidades sociais do continente africano, procurando focalizar de maneira especial o interesse pela atualidade. Apresentando resultados de trabalhos em andamento, desenvolvidos, em sua maioria, por estudantes vinculados a Programas de Pós-Graduação, o volume constitui uma amostragem dos caminhos que vêm sendo percorridos no domínio das Literaturas Africanas entre nós.

    No material coligido, se, por um lado, confirma-se a força da vertente à volta dos escritores dos países de Língua Portuguesa, é possível também observar a sensível ampliação do foco, aqui manifesta tanto na abordagem de autores africanos provenientes de países como Argélia e República do Congo como no enfoque da produção identificada como afrodiaspórica, que inclui obras de escritores brasileiros. A incorporação vem, de qualquer modo, confirmar a atenção aos dispositivos que caracterizam as relações impostas pelo sistema colonial, cuja condução refletiu-se fortemente na proeminência das línguas coloniais na escrita literária. A decisão de oficializar as línguas europeias por parte dos primeiros governos dos novos estados africanos atendeu a uma necessidade pragmática sem, todavia, diluir as tensões vividas pelas populações e projetadas pelos escritores em suas obras. Na literatura, sem qualquer dúvida, a conexão entre língua e identidade não pode ser desprezada, fato que implica a permanência do debate na vida literária e tem merecido atenção dos estudiosos. Uma leitura rigorosa dos trabalhos brasileiros, em perspectiva explicitamente comparatista ou não, publicados desde a década de 1980 sobre a escrita em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, em alguma medida, conduz aos ecos da interpretação de José Luandino Vieira, para quem a língua portuguesa deve ser vista como um espólio de guerra. Como um patrimônio do qual os africanos se apropriaram na luta pela sua afirmação como sujeitos de novos projetos, a língua não poderia ficar indiferente às condições que definem sua inserção.

    As especificidades que surpreendemos na colonização portuguesa, que de modo algum devem ser vistas pelo ângulo da virtude, também trouxeram marcas à incorporação do idioma pelos escritores africanos e na forma como se deu a sua oficialização. Se o pragmatismo de sua escolha pelos protagonistas das independências não dissolveu as contradições, as relações das populações com essa língua exterior em sua origem marcaram-se por uma dinâmica que, sem camuflar o movimento, procura preencher os espaços lacunares entre a realidade e o exercício de nomeá-la. Visto por um prisma variado, o terreno linguístico no continente africano marca-se pela instabilidade e pelo sentido da falta, revelando-se um fabuloso espelho em que podemos perceber matizes de tantos impasses. A percepção desses dilemas e dos instrumentos forjados no universo literário interdita a celebração de programas à volta de uma visão conciliadora da lusofonia – termo, aliás, nunca bem acolhido pela USP.

    Se nos anos de 1970, quando se iniciaram em nosso país as incursões pelas literaturas africanas, as antigas colônias portuguesas recém-independentes mobilizaram a nossa atenção, o que se deve também à especificidade do nosso momento histórico, hoje evidenciam-se os sinais de inclusão de repertórios produzidos em inglês e francês, por exemplo. Sem, portanto, significar uma recusa dos caminhos estabelecidos pelos primeiros estudiosos, a diversificação pode ser também creditada à relevância que os estudos africanos conquistaram nos meios acadêmicos (e não só), processo decorrente da trilha aberta pelos estudos de literaturas em português e das análises críticas por elas motivadas. Sobretudo a partir de 2003, com a promulgação da lei 10.639 pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva, que determina a presença de conteúdos de História e culturas africanas e afro-brasileiras em nossas escolas, vimos consolidar-se o interesse pelo continente africano e pelos laços que nos unem. Importa sempre reforçar que tanto esta lei quanto a posterior 11.645 foram respostas a reivindicações de movimentos sociais insatisfeitos com a marginalização das referências de grande parte de nosso patrimônio cultural e da subalternização de significativas parcelas da nossa população.

    Objeto de sucessivos atos de violência, os povos africanos tiveram interceptados seus pontos de vista e confiscadas suas vozes nas narrativas que contariam a sua História e sagrariam sua memória. Nos mais variados campos do conhecimento, a complexidade das questões é comumente diluída pela supremacia de outros sujeitos e pela prevalência do uso de fontes alimentadas pela biblioteca colonial (MUDIMBE, 2013), acervo formado a partir de perspectivas externas e sob o signo da apropriação. Se, por um lado, deve-se reconhecer que a colonização ocupa um período da história africana, por outro não se pode ignorar a força dos seus efeitos. Esse período, coincidente com uma fase do desenvolvimento capitalista em que o direito à exploração de outros povos alcançava um extraordinário patamar, está muito próximo e são muito vivos os seus efeitos.

    Nessa biblioteca, formada por tantos ramos do conhecimento, enraíza-se o etnocentrismo de que ainda padecemos. Idelogicamente construída, a visão etnocêntrica permanece se alimentando da dimensão epistemológica que contaminou todas as formas de interpretação. Em sua montagem foram maiores os influxos dos Impérios Britânico e Francês, mas é nítida a certeza de que em todos os impérios a dominação não poupou os caminhos do imaginário como fonte de poder. Não obstante a entusiasta alegação das particularidades do mundo português, animando teorias e ideologias lusotropicalistas, a própria razão de ser do colonialismo elimina dúvidas acerca da violência e do silenciamento impostos. As mesclas foram processadas apesar dos colonos e não como resultantes de sua vocação.

    Para muito além da religião, utilizada sem cerimônia alguma, o discurso científico integrou a articulação em nome da hierarquia de direitos e deveres. E, sabemos, a história das ciências, especialmente das chamadas ciências humanas, na Europa em muito ficou a dever ao interesse despertado pelo contato com outras realidades, como demostra o desenvolvimento da Antropologia no século XIX na Inglaterra. Outros sinais se confirmam na repercussão da célebre Missão Dacar-Djibuti¹ para a Antropologia Francesa e nas famosas sociedades de geografia, que abriam caminho desde o século anterior. No panorama lusitano, o atraso do país refletia-se na gestão da proposta imperial determinando o precário investimento na construção do que se pode reconhecer como saber colonial (SOUSA, 2018, p. 26). Henrique Galvão, um nome chave na história do colonialismo português, em suas rigorosas avaliações, durante décadas reclamou outra taxa de eficiência por parte do governo português, com o qual entraria em colisão desde o fim dos anos de 1940. Vista às vezes como virtude, a ineficiência da administração era apenas derivada de sua incompetência e da falta de meios.

    De qualquer modo, independentemente das possíveis singularidades que incidem sobre a História dos impérios, é inegável a convergência de procedimentos nos campos material e simbólico: os africanos conheceram a violência da dominação e na condição de derrotados entraram na História do mundo ocidental, essa espécie de metonímia do poder que ainda em nossos dias é exercido em nome de si próprio e do seu direito às hegemonias legitimadoras. Para Césaire, qualquer hesitação é descabida e a lógica colonial exprime-se em uma equação: colonização – coisificação. Seu belíssimo Discurso sobre o colonialismo esclarece:

    Ouço a tempestade. Falam-me de progresso, de realizações, de doenças curadas. De níveis de vida elevados acima de si próprios.

    Eu falo de sociedades esvaziadas de si próprias, de culturas espezinhadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas. (p. 26)

    Esse itinerário de acumulação de um lado e depauperamento de outro, de incorporação e supressão, de multiplicação e confisco, não seria processado sem respostas por parte do oprimido, respostas que, entretanto, durante muito tempo tiveram seu registro sequestrado. Da primeira grande guerra movida pela França para anexar o território que é hoje a Argélia, ainda nas primeiras décadas do século XIX, que durou 13 anos, às chamadas campanhas de pacificação já no século XIX, foram muitos os conflitos. As lutas mais intensas, segundo Ki-Zerbo, foram travadas pelos povos politicamente menos organizados, para os quais era fundamental defender a própria terra e/ou a própria sobrevivência comunitária. Daí talvez o arguto poder de observação de Frantz Fanon ao captar o interesse dos movimentos de matriz camponesa, cujo voluntarismo censurado por alguns aparece com inegável peso nesse processo. Se a insubmissão, que teve sempre seus sinais, foi o quanto possível apagada, sua repercussão se fez sentir de modo determinante em meados do século XX, quando as diversas formas de luta pela libertação levaram às independências.

    De todo esse processo a escrita participou, ajudando a fixar o lugar dos invasores e a justificar as demarcações que tiveram na raça um dos fundamentos básicos. Dos livros de viajantes que descreviam as terras e seus habitantes, a partir de imagens redutoras, passando pelos missionários – incansáveis em sua intenção de realizar a salvação dos selvagens –, chegamos à literatura que, em nome de muitas crenças e convicções, também soube aprisionar a África. Na chamada literatura colonial as marcas são incontáveis; seu compromisso com uma suposta vocação imperial das metrópoles domina o ponto de vista da narrativa e interdita ao colonizado o lugar de sujeito. A ideia de um vazio a ser preenchido pela voz e letra do colonizador torna-se um ponto de destaque na agenda de funcionários administrativos e outros agentes do colonialismo que chamam para si a tarefa de confirmar simbolicamente a posse do território. O objetivo de domesticar o espaço estendia-se na direção das gentes e os habitantes da terra ocupada funcionavam apenas como elementos do cenário destes textos.

    Mary Louise Pratt (1999) chamaria a forma eurocêntrica de consciência global, de que a literatura colonial é parte, consciência planetária, demonstrando como alguns de seus efeitos têm consequências persistentes e impactam as representações que os indivíduos colonizados empreendem de si mesmos de forma comprometida com os termos do colonizador, o que a autora denominaria auto-etnografia ou expressão auto-etnográfica. As zonas de contato de que a autora trata também não desconsideram as assimetrias de poder sempre em jogo quando se observam dinâmicas coloniais.

    Em outras palavras, sob o véu vagamente humanitário (LEIRIS, 2012, p. 199) com que procuravam ocultar seus reais interesses, todos os impérios buscaram garantir dividendos a uma minoria, instalada predominantemente nas metrópoles. Todos os impérios se esforçavam na perpetuação de seus privilégios. Não obstante as diferenças que podemos identificar na história da atividade literária até meados do século XX, mesmo grandes escritores do denominado mundo ocidental abrigaram em suas obras suportes para as justificativas mobilizadas pela empresa imperial. Em seu instigante Cultura e imperialismo, Edward Said elenca uma série de obras que, disseminando estruturas de atitudes e referências (SAID, 1995, p. 99), legitimavam a divisão do mundo e investiam na grafia da Terra. A geografia saltava dos mapas para se projetar nas páginas dos romances com que se povoavam estantes e semeavam-se ideias. O império das letras não se contrapunha ao império territorial, aliás, muito frequentemente, confirmava-o e contribuía para sua legitimação.

    Chinua Achebe (2012, p. 82) recorda que o jornalismo, por trás da sua aludida objetividade, viria reafirmar a triste aposta de muitos textos literários. Mais ainda, ultrapassando as fronteiras das páginas impressas, essa espécie de condenação seria atualizada nas salas do cinema. Como se fosse um inescapável destino, o africano desembarcaria nas telas cumprindo o papel de desterrado de sua humanidade em sua própria casa, ou seja, sempre o Outro, como seria referido no discurso da Etnografia, a ciência que, para Michel Leiris surge estreitamente ligada ao facto colonial, independentemente da vontade dos etnógrafos (LEIRIS, 2012, p. 200).

    São muitos os exemplos da encenação da hierarquia que fixava as populações e seus sistemas culturais em seus devidos lugares. Trazendo para sua linguagem fílmica os recursos da retroprojeção com notórios efeitos na estrutura discursiva, W. S. Van Dyke faz de Tarzan, de 1932, um caso paradigmático da espetacularização dos africanos, limitados ao papel de carregadores, dividindo o terreno com a flora e a fauna, enquanto se concede à Jane, a heroína branca, a primazia do olhar e da fala. A articulação entre planos tomados pelo diretor na região dos Grandes Lagos na parte oriental da África e a sua retroprojeção em estúdio um ano mais tarde modulam a abordagem que expõe a relação de poder pretendida na exposição do "Outro reduzido à condição de imagem projectada, objectivada" (CASTRO, p. 108).

    Essa síntese parece-nos suficiente para alertar para o processo de redução a que foram submetidas a variedade da paisagem e a diversidade humana apresentadas pelo continente. Construída ao longo dos séculos por várias formas de linguagem, essa montagem da apresentação de realidades africanas produziu e reproduziu uma ideia de passado identificada com a infantilidade, com o atraso material, não raro com a animalidade. O mais grave é que tal passado intervém fortemente em seu presente e, num período em que o mundo parece mergulhar nas águas de uma obsessão memorial, a África arrisca-se a permanecer aprisionada num reduto cercado por estereótipos, correndo o enorme perigo de se ver eternizada nos escaninhos ocupados pelas lembranças que outros construíram. Encarcerada nas representações do passado que povoou a tradição hegemônica, o continente, suas terras e populações ficariam fadados ao lugar de objeto a que a expansão os condenou.

    Contra várias formas de congelamento que se abateram sobre a História e a memória africanas, tentativas de insurgência conheceriam maior sucesso a partir de meados do século XX, com o percurso das independências da maioria dos territórios até então submetidos à ocupação europeia. Tendo em 1956 um marco com a independência da República de Gana, esse roteiro vitorioso só seria partilhado pelas então colônias portuguesas na década de 1970. Desse itinerário a literatura também participaria, convertida agora, pelas mãos dos africanos, em instrumento a favor da independência e da implantação de uma outra sociedade. Envolvidos diretamente nos processos de libertação, os escritores trouxeram para a escrita a dimensão ativista preconizada pelo desejo de mudança do real, sem descurar do projeto estético.

    Essa espécie de sequestro do continente africano, materializado na supressão de seu lugar na história da humanidade, de modo impressionante toca também o panorama da memória que ganhou um efetivo protagonismo nos anos de 1980. Ao assinalar que é habitual localizar em meados da década de 1980 a centralidade da memória, Enzo Traverso, além da publicação de obras como Os lugares da memória, de Pierre Nora, Zakhor, de Yosef Hayim Yerushalmi, Os afogados e os sobreviventes, de Primo Levi, e o lançamento do filme Shoah de Claude Lanzmann, refere o surgimento do holocausto na esfera pública, um processo cujo ápice foi o Historikerstreit (A queda dos historiadores na Alemanha) (TRAVERSO, 2018 p. 137-8). Observa-se que, restringindo-se a ideia de ataque em grande escala ao povo judaico, não há qualquer referência a outros registros de dores coletivas. Traverso também associa a ascensão da memória à derrubada do marxismo e à substituição das utopias pela melancolia que atinge sobretudo a Esquerda, o que torna mais significativa a marginalização das lutas pelas independências que, a partir de um certo tempo, tiveram seu itinerário tingido pelas cores do socialismo. Reconhecendo o enorme interesse das questões que o intelectual italiano aponta e a sua competência ao fazê-lo, não podemos deixar de observar a naturalidade que ganha a diluição do que se passa no continente. Antes sem história, agora alijado da memória.

    A urgência de sair desse circuito nos levou a privilegiar precisamente esses laços na realização do evento. A ruptura com esse destino depende de um grande esforço para desocultar materiais, diversificar enfoques, dialogar com pensadores e artistas que trazem a África para o centro de suas preocupações e que, com isso, ajudam também a desamarrá-la de um lugar fixo, cativo de um foco sempre exotizante. A ideia é, nesses pequenos movimentos, alterar minimamente um quadro que tem interditado aos povos do continente um lugar ativo até mesmo em situações vinculadas à sua própria trajetória. Na tão referida crise de paradigmas talvez seja viável instituir outros modos de ver e de fazer mundos, apoiados em alguma dose de desconfiança relativamente aos riscos de mitificação de fatos ou hipóteses que assombram a própria escrita da História. Expostos às controvérsias que nos cercam a todos, precisamos ter os sentidos em alerta e, como observa Fernando Rosas, não esquecer que

    [...] a História, que vive também da leitura crítica da memória, e os usos da memória que são marcados pela História interagem numa tensão dialética que acompanha os fluxos e refluxos, as paixões e as reações que marcam as sociedades e os debates nela em curso. Debates sobre as representações fundacionais do passado, na realidade, disputas pelas hegemonias legitimadoras do presente. (2017, p. 56-7) 

    De frente para a crise gerada pela derrocada das utopias, inclusive daquela que, sabemos, orientou os movimentos de libertação e esteve em pauta nos projetos estéticos que dominaram a produção literária na segunda metade do século XX, os intelectuais africanos têm procurado enfrentar os usos e os abusos da memória cristalizada e redutora, buscando favorecer uma atuação produtiva desta tensão dialética na revisão histórica que as sociedades africanas demandam. O compromisso com o presente e a sedução que a noção de futuro carrega, embora sob o signo do desencanto, não foram afastados da escrita literária.

    Desde os anos de 1970, quando os escritores africanos entraram no cenário brasileiro e introduziram, de forma singular, temas fundamentais para os estudos literários, os complicados contornos da vida literária e o confronto com as formulações da contemporaneidade africana têm motivado o ensino e a pesquisa sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo. Decisiva na implantação da disciplina na graduação há mais de 40 anos, a opção pelos laços entre a produção literária e a experiência histórica nos países colonizados por Portugal permanece como um dado de relevo no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. E, apostando no compromisso contra certas ideias de África, desde 2011 a disciplina de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa vem realizando iniciativas como a deste Colóquio, um esforço contínuo que tem contado com o apoio do Centro de Estudos Africanos, do Centro de Estudos de Literatura e Cultura dos Países de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão e do Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. A programação diversificada e os convidados de distintas áreas de atuação, colocando em cena professores, pesquisadores, ativistas, estudantes, escritores e cineastas, exprimem o compromisso com a reflexão empenhada no desconfinamento da África e nas questões relacionadas à sua participação na História do mundo.

    À volta do tema Memória, imaginário e narrativa: trânsitos, a mais recente edição do Colóquio ocupou o mês de outubro de 2019. Em várias sessões, intelectuais já maduros e pesquisadores em processo de formação reuniram-se em debates a respeito da História e da cultura das Áfricas, trazendo o continente e suas formas de representação para o debate presente. Com a participação de convidados brasileiros e de países como Angola, Itália, Moçambique e Portugal, as discussões privilegiaram a pluralidade de saberes provenientes de um espaço usualmente tratado apenas como receptáculo em vez de rico produtor de sentidos.

    Para sua realização foi fundamental a parceria com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, consolidando uma relação já estabelecida e que tem sido dinamizada especialmente pela Profa. Dra. Margarida Calafate Ribeiro, coordenadora do Projeto Memoirs: Filhos de Império e Pós-Memórias Europeias, cuja pauta, voltada às relações entre memória, narrativa e sociedade, com foco na conformação do imaginário e em seus efeitos complexos na realidade social, explica a legitimidade e o significado dessa colaboração. Além da coordenadora, pelo projeto Memoirs participaram do Colóquio também o prof. Dr. Roberto Vecchi, da Universidade de Bologna, e o Prof. Dr. António Pinto Ribeiro, também do CES-Coimbra.

    A ligação sempre cultivada com os países africanos manifestou-se na participação do Prof. Dr. Nelson Pestana, da Universidade Católica de Angola, do Prof. Dr. José Luís Cabaço, da Universidade Técnica de Moçambique, e do Prof. Dr. Lourenço do Rosário, da Universidade Politécnica de Moçambique. Desse concerto de vozes participaram ainda colegas de Portugal como a Profa Dra. Catarina Isabel Martins (Universidade de Coimbra) e o Prof. Dr. Fernando Rosas (Universidade Nova de Lisboa). Do Brasil, pudemos contar com a Profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca (da UFMG e da PUCMINAS), a Profa. Dra. Simone Schmidt (UFSC), o Prof. Dr. Deivison Mendes Faustino, da Universidade Federal de São Paulo. Do próprio Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa tivemos a presença da profa. Dra. Rejane Vecchia da Rocha e Silva, da Profa. Dra. Rosangela Sarteschi e da Profa. Dra. Tania Macêdo. Os debates foram enriquecidos com a participação da Embaixadora Irene Vida Gala e o jornalista Tom Farias, dois nomes com atuação reconhecida nos campos dos estudos africanos e afro-brasileiros. A fala africana foi também representada por dois de seus maiores escritores, o angolano Pepetela e o moçambicano Mia Couto, que participaram de atividades no Centro de Educação Unificado de Perus e na Biblioteca Municipal de Perus. Na diversidade das abordagens refletiu-se o compromisso com a discussão de problemas contemporâneos que encontram projeção na produção cultural e desafiam a capacidade de artistas, críticos, intérpretes e público.

    Durante uma semana, os participantes puderam acompanhar diversos ângulos da reflexão sobre os trilhos que assumem a História e a memória em quadros de tensão, suas ligações com formas de resistência e variadas formas de narrativa, seus ecos em diferentes linguagens artísticas. Em tela estiveram também as heranças históricas que continuam a atuar no presente do continente, lembrando a complexidade dos sentidos que nortearam os processos de libertação com ênfase nas tensões e contradições presentes nas produções literárias africanas. O enfoque recaiu ainda no difícil papel da crítica que, tendo que lidar com os elos entre estética e sociedade num quadro global refratário ao reconhecimento das literaturas emergentes, sem sucumbir aos riscos de uma celebração que uniformiza, defronta-se com o desafio de examinar a matéria artística confrontando-se com o preconceito institucionalizado que, infelizmente, ainda encontra solo fértil para crescer entre nós.

    Mais uma vez, o evento foi aberto a interessados em geral, atendendo ainda à demanda de professores das redes pública e privada de ensino. Sensíveis à importância de insistir na legitimidade de diretrizes fortemente ameaçadas no momento, procuramos reforçar o debate sobre o lugar da África no Brasil, bem como sobre os processos de invisibilização do pensamento negro em nosso contexto sociocultural. Embora seja crescente o interesse na leitura dos nossos laços históricos, reconhecemos a importância do alargamento do espectro usualmente abrangido pelas discussões. Sem desprezar a relevância dos estudos sobre o passado, é essencial chegar à contemporaneidade, cujos fluxos, ainda pouco abordados, investem na superação de limites de um olhar fixado em uma África mítica atemporal. Atenta às disputas de poder sempre em jogo quando se toma a palavra, e conhecendo os limites de cada gesto, a Academia, em seu compromisso contra o maniqueísmo e as tensões estéreis, deve assegurar espaços às discussões em torno das representações do passado e das hegemonias que condicionam suas apropriações. Nesse sentido, o evento reuniu a contribuição de autores e estudiosos de diversos campos, cujos aportes têm se mostrado decisivos para melhor compreensão do contexto africano e de suas produções culturais, bem como dos possíveis diálogos com produções de outros espaços.

    Resultado deste grande esforço coletivo, a presente publicação é composta por uma seleção de alguns dos textos apresentados por participantes do evento. A diversidade de temas e cenários tocados pelas reflexões indica uma vez mais o compromisso com a perspectiva comparatista, a interlocução com outras áreas das ciências humanas e outras linguagens artísticas, assim como com os diálogos com o Brasil.

    No conjunto de textos, um dos sinais da pluralidade cultivada está na abrangência do corpus examinado. Para além do foco voltado ao nosso país e às literaturas angolana e moçambicana, bastante familiares ao público brasileiro, há textos trazendo à discussão São Tomé e Príncipe, Argélia, República do Congo e Portugal. Com recursos a distintos aportes teórico-críticos, a atenção concentra-se nas tensões e contradições que remarcam as projeções da constituição imperial que não se apagam e são captadas pelos artistas cujos trabalhos nos permitem, ao mesmo tempo, perceber e iluminar também disputas políticas que não podem ser ignoradas.

    Muitos dos textos recebidos focalizaram a literatura moçambicana. A escritora Noémia de Souza foi contemplada por duas estudiosas: Juliana Kohari da Silva, que privilegiou as relações entre Literatura e História, e Aline da Silva Lopes, que discute a representação das personagens femininas e seus corpos na obra Sangue Negro. Paulina Chiziane é outra autora trazida à discussão, por Mariany Teresinha Ricardo, em uma análise da representação dos montes em três obras.

    Do mesmo país outros escritores são visitados por Flaviana dos Santos Silva, Thiago Wesley Custódio Silva, Fernanda Gallo, Ana Paula Rodrigues da Silva, Gisele Krama, Adilson Fernando Franzin e Ludmila Guimarães Maia. Mulheres de Cinzas, de Mia Couto, tem seus narradores analisados por Flaviana dos Santos Silva, enquanto Thiago Wesley Custódio Silva compara esta obra à de Ungulani Ba Ka Khosa, As mulheres do Imperador. Ba Ka Khosa também é trazido à comparação com Hassane Armando no trabalho de Fernanda Gallo, que busca revisitar a memória coletiva deste país por meio da leitura literária. Já Mia Couto é também examinado por Ana Paula Rodrigues da Silva, que lê Antes de nascer o mundo à procura das vozes da alteridade, e por Gisele Krama, que lê Terra Sonâmbula recorrendo a conceitos de Glissant e Mbembe. O pioneiro romance moçambicano Portagem, de Orlando Mendes, é relembrado por Adilson Fernando Franzin, que alerta a crítica sobre o que vê como um esquecimento. Por fim, Água, de João Paulo Borges Coelho, é interpretado pelo trabalho de Ludmila Guimarães Maia.

    Angola é terreno visitado por Angela Lazagna, que traça um amplo panorama político da trajetória de Viriato da Cruz; João Gabriel Pereira Nobre de Paula, que trata da memória e do sonho em dois romances de José Eduardo Agualusa; Jacqueline Kaczorowski, que compara Nós, os do Makulusu, de Luandino Vieira, ao romance Un fusil dans la main, un poème dans la poche, do congolês Emmanuel Dongala; Estefânia de Francis Lopes, que analisa representações de personagens quitandeiras; e Helder Thiago Maia, que revisita a rainha Ngola Nzinga Mbandi para buscar representações desta figura na literatura brasileira.   

    O Brasil é foco também dos trabalhos de Tatiana Sena, que relê o herói sem nenhum caráter buscando dar relevo às heranças africanas e indígenas que constituem o nosso país, e de Karine Rocha, que busca os ecos da herança afrodiaspórica em um conto de Conceição Evaristo.

    A imprensa em São Tomé e Príncipe é abordada por Jéssica C. Rosa, que traz à discussão o jornal A Liberdade. Já os países africanos de língua francesa estão representados pelos trabalhos de Bruna Perroti, Rayza Giardini e Nicolau Gayão. Bruna Perroti focaliza o engajamento em dois autores argelinos, Assia Djebar e Kateb Yacine. Outros dois escritores congoleses também foram enfocados: Rayza Giardini pensa a oralidade em Verre Cassé, de Alain Mabanckou, e Nicolau Gayão investiga a violência colonial no teatro de Sony Labou Tansi, em uma comparação com o de Frantz Fanon. O autor português José Cardoso Pires é observado por Luiz Maria Veiga, que vê a obra Celeste & Làlinha, de 1978, como o primeiro romance de retornados. Por fim, o tempo e suas diferentes formas de organização são objeto da discussão no texto de Matheus Vieira dos Santos, que investiga os regimes de historicidade no continente africano.

    Esses textos, reiteramos, compõem uma amostragem da produção apresentada nas sessões de comunicação que integraram o Colóquio. Optamos por privilegiar os trabalhos de pesquisadores inscritos que asseguraram a dinâmica das discussões e nos trazem notícias da pauta de estudos no variado campo das Literaturas Africanas e Afrodiaspóricas em nosso contexto acadêmico. A todos agradecemos o interesse e a disponibilidade da participação nos debates e, agora, na publicação.

    Referências

    ACHEBE, Chinua. A educação de uma criança sob o protetorado britânico. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

    CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.

    FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005.

    KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Portugal: Publicações Europa-América, 1999.

    LEIRIS, Michel. O etnógrafo perante o colonialismo. In: SANCHES, Manuela Ribeiro. Malhas que os impérios tecem. Textos anticoloniais. Contextos pós-coloniais. Lisboa: Edições 70, 2012.

    MUDIMBE, V. Y. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Lisboa: Mangualde; Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013.

    PRATT, Mary-Louise. Os olhos do império. Relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999.

    ROSAS, Fernando. História e memória. Lisboa: Tinta da China, 2017.

    SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

    SOUSA, Sandra. Ficções do outro. Império, raça e subjectividade no Moçambique colonial. Lisboa: LusoSofia:press, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2014.

    TRAVERSO, Enzo. Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória.  Belo Horizonte: Âyiné, 2018.

    Programação do VI Colóquio Internacional Áfricas, Literatura e Contemporaneidade | Memória, imaginário e narrativa: trânsitos

    22 de outubro de 2019

    9h Abertura

    9h30 Mesa 1: Memória e História em contextos contracoloniais

    Participantes:

    Prof. Dr. Fernando Rosas (Universidade Nova de Lisboa)

    Prof. Dr. Nelson Pestana (Universidade Católica de Angola)

    Prof. Dr. José Luís Cabaço (UDM/Moçambique)

    Coordenação: Profa. Dra. Leila Hernandez (USP)

    19h30 Mesa 2: Narrativa e memória nas Literaturas Africanas

    Participantes:

    Prof. Dr. Lourenço do Rosário (Universidade Politécnica de Moçambique)

    Profa. Dra. Maria Nazareth S. Fonseca (PUC/MG)

    Coordenação: Profa. Dra. Rosângela Sarteschi (USP)

    23 de outubro de 2019

    14h Sessão de comunicações

    16h30 Mesa 3: Questões de gênero: passado e presente na cena africana

    Participantes:

    Profa. Dra. Simone Schmidt (UFSC)

    Profa. Dra. Catarina Martins (UC)

    Coordenação: Profa. Dra. Rejane Vecchia R. e Silva (USP)

    19h30 Mesa 4: Circulação de imaginários artísticos entre o Atlântico e o Mediterrâneo

    Participantes:

    Prof. Dr. Antonio Pinto Ribeiro (CES/Universidade de Coimbra)

    Profa. Dra. Rosana Paulino (Artista Plástica)

    Coordenação: Profa. Dra. Tania Macêdo (USP)

    24 de outubro de 2019

    14h Sessão de comunicações

    16h30 Mesa 5: Áfricas nossas: imaginários de resistência e transformação social

    Participantes:

    Embaixadora Irene Vida Gala (Ministério das Relações Exteriores do Brasil)

    Prof. Dr. Deivison Faustino (UNIFESP)

    Jornalista Tom Farias (IBEL)

    Coordenação: Prof. Dr. José Luís Cabaço (UDM)

    19h30 Mesa 6: Fantasmas coloniais e fantasias da memória

    Participantes:

    Profa. Dra. Margarida Calafate Ribeiro (Universidade de Coimbra)

    Prof. Dr. Roberto Vecchi (Universidade de Bolonha)

    Coordenação: Profa. Dra. Rita Chaves (USP)

    Portagem para o romance moçambicano

    Portagem for the Mozambican novel

    DOI - 10.29327/566703.1-1

    Adilson Fernando Franzin²

    RESUMO: Apesar de ser citado com frequência como o romance pioneiro da literatura moçambicana, distante do crescente interesse pelo multifacetado universo romanesco de Moçambique, Portagem raramente figura no escopo da crítica que se atém às literaturas africanas de língua portuguesa. Nesse sentido, o breve estudo que se segue tenta lançar luz à via inaugurada por Orlando Mendes a fim de contribuir para que leituras ulteriores possam dar, ao autor e sua vasta obra, a importância que lhes cabe.         

    ABSTRACT: Despite being frequently cited as the pioneering novel of Mozambican literature, far from the growing interest in the multifaceted fictional universe of Mozambique, Portagem rarely appears in the scope of the criticism that is dedicated to African literatures of Portuguese language. In this sense, the brief study that follows tries to shed light on the path inaugurated by Orlando Mendes in order to contribute so that future readings may give the author and his vast work the due importance.

    PALAVRAS-CHAVE: Romance moçambicano; Colonialismo português; Orlando Mendes.

    KEYWORDS: The Mozambican novel; Portuguese colonialism; Orlando Mendes.

    A maioria dos críticos que se debruça sobre as literaturas africanas de língua portuguesa, e especificamente sobre a literatura de Moçambique, considera Portagem, da autoria de Orlando Mendes, efetivamente como o primeiro romance moçambicano. Publicado em 1966, nos anos iniciais da guerra de libertação, no desfecho da trama romanesca podemos conferir, entretanto, a indicação de local e data, esta última um pouco difusa a encetar o término da feitura do livro: Lourenço Marques, anos 1950 (1981, p. 163). Sendo assim, o enredo do romance parece refletir muito mais o contexto social das décadas de 1940 e 1950, centrando-se nos conflitos rácicos da lógica colonial portuguesa, opondo-se sobremaneira ao romance colonial que serve de instrumento ideológico num momento no qual a ideia de doutrinação impõe-se precisamente porque tanto os eventos como as próprias personagens funcionam como títeres (NOA, 2015, p. 55) dos princípios salazaristas no seio literário.

    Na revista Luso-Brazilian Review, no artigo intitulado Esboço de uma história da literatura em Moçambique no século vinte, Orlando de Albuquerque e José Ferraz Motta, em tom encomiástico, citam o nome de Rodrigues Júnior como sendo uma marcada e versátil figura intelectual da época, a quem atribuem a autoria de "algumas obras de ficção, nomeadamente de romances de temática moçambicana (Sehura, 1944; O branco da Motase, 1952; Calanga, 1955; Muende, 1960) (1996, p. 29), supostos títulos romanescos que seriam anteriores ao Portagem de Orlando Mendes. Entretanto, após fazer a leitura de Literatura ultramarina, de Rodrigues Júnior, Gilberto Matusse salienta que o autor se recusa a admitir a existência de uma literatura moçambicana, considerando, pois, apenas a literatura ultramarina a refletir os anseios do homem português, o meio em que ele se movimenta e a influência desse meio sobre ele (1998, p. 13). Em suma, as obras romanescas indicadas pelos articulistas parecem se enquadrar teoricamente no rol da literatura colonial e não na construção de uma identidade moçambicana no universo das letras.

    Sendo assim, nem sempre a tarefa de definir culturalmente as origens de determinado fenômeno ou atestar pioneirismos mostrou-se como uma atividade isenta de polêmicas, ideologias e interesses, os quais muitas vezes beneficiaram apenas determinado segmento social. Se hoje podemos falar em Portagem como ponto de partida para a compreensão do universo romanesco moçambicano, a sua instituição como cânone não raro enfrentou disputas no campo literário a dividir pontos de vista eclipsados, sobretudo, pelas linhas de aproximação, que em sua fase cosmopolita (NOA, 2015, p. 62), a literatura colonial lançou em direção à literatura moçambicana. Portanto, em Literaturas africanas de expressão portuguesa, publicado em 1995, Pires Laranjeira afirma que Raízes do ódio (1963), da autoria de Guilherme de Melo é efetivamente o primeiro romance moçambicano (p. 293), asserção refutada de maneira comedida por Francisco Noa, em Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária, publicado em 2015, cujo principal contra-argumento se baseia na inclusão da voz dos dominados (p. 236) na narrativa, a que Guilherme de Melo faz hábil uso dando-lhe contornos aparentes de moçambicanidade a acobertar valores ideológicos, éticos e culturais mais condizentes com a metrópole.

    É importante ressaltar que Orlando Mendes, antes da publicação de Portagem, já havia se consolidado como poeta e, de certa forma, devido às recensões nos periódicos, como crítico literário, tendo contribuído em jornais de Moçambique e Portugal. Filho de colonos portugueses radicados em solo moçambicano, nasceu na Ilha de Moçambique, em 1916. Com tenra idade mudou-se para Lourenço Marques e, posteriormente, em 1939, fixou-se na Beira. Em 1944, Mendes foi para Coimbra a fim de licenciar-se em Ciências Biológicas. Em 1951, de volta à Moçambique, exerceu atividades jornalísticas em órgãos da imprensa, tais como Itinerário, A voz de Moçambique, Tribuna, Caliban, Notícias e Tempo. Na seara literária, dedicou-se mais ao universo da poesia, motivo pelo qual possui em sua obra poética quase uma dezena de títulos publicados entre outros gêneros.

    Em verso, são de sua lavra os seguintes títulos: Trajectórias (1940), Clima (1959), Depois do sétimo dia (1963), Portanto eu vos escrevo (1964), Véspera confiada (1968), Adeus de Gutucumbui (1974), A fome das larvas (1975), País emerso II (1976), Lume florindo na forja (1980). Seus poemas também figuram em antologias de poesia moçambicana, tais como Poesia em Moçambique (1951), Poetas de Moçambique (1960) e Poetas de Moçambique (1962). Para além do romance Portagem (1966), em prosa também publicou Um minuto de silêncio (1970), Papá operário mais seis histórias (1980), sendo que País emerso I (1975) abarca poesia, conto e teatro, e, finalmente, Produção com que aprendo (1978) contém poesia e histórias. Para além de tais títulos, postumamente, em 1995, há a publicação de dois livros de contos infanto-juvenis: Telefonemas a calhar e outros contos e A garrafa que veio do mar e outros contos, os quais são praticamente desconhecidos de um público leitor mais numeroso.

    Anos antes de seu falecimento, em 1990, Orlando Mendes redigiu o prefácio de Raiz de orvalho, em 1983, primeiro livro de Mia Couto, cuja estreia se deu igualmente no território da poesia – o incipit literário do autor de Terra sonâmbula. Sobre os dois poetas-prosadores, ao que parece, nessa altura de recém-independência ambos partilhavam também outras afinidades, para além do cultivo da palavra poética: o fato de serem moçambicanos e igualmente filhos de colonos portugueses; a coincidência de residirem na cidade da Beira e não em Maputo, principal cidade do país; ambos terem desempenhado atividades jornalísticas nos periódicos moçambicanos; e, por último, tanto Orlando Mendes como Mia Couto obtiveram formação em Biologia. Enfim, nas páginas preambulares de Raiz de orvalho, o primeiro romancista de Moçambique, ao conceder seu beneplácito ao jovem poeta, saudava sem saber o eminente romancista que os moçambicanos veriam projetar-se internacionalmente num futuro próximo, tornando-se o mais galardoado representante da literatura nacional.

    Em 1934, quando tinha apenas dezoito anos, Orlando Mendes publicou seu primeiro poema no periódico lisboeta O diabo, órgão independente e eclético, ao menos no começo, que encontramos as primeiras manifestações direta ou indiretamente antipresencistas (MOISÉS, 2008, p. 392), e a partir do fim da década de 1940, começou a contribuir regularmente com alguns jornais metropolitanos, a exemplo de quatro poemas que publicou no jornal Mundo literário, sob o título de Poesias Africanas, ou, em Seara nova, seus Cinco Poemas do Mar Índico, a que se seguiram outras publicações de sua autoria nas revistas Vértice, Colóquio/Letras e África (MACHADO, 2009, p. 6). Por conseguinte, como se pode deduzir, esse relativo livre-trânsito literário entre o mundo africano e europeu, cuja poética será embasada, a um só tempo, por um olhar moçambicano influenciado inevitavelmente pelas estéticas em voga em Portugal, vai marcar decisivamente a obra de Orlando Mendes e, de tal modo, as gerações vindouras, por vezes discordes, terão reservas quanto ao seu nome figurar como basilar na literatura moçambicana ou como figura de proa a inspirar-lhes a pluma.

    Pertencente a uma novíssima geração de escritores moçambicanos, Pedro Pereira Lopes, cuja escrita abarca diversos gêneros literários – de poesia, conto e romance a títulos infanto-juvenis – em sua página pessoal, em postagem de 21 de março de 2020, diz o seguinte: "Orlando Mendes, profícuo escritor, escreveu aquele que é, talvez, o primeiro romance de Moçambique, Portagem (1966). É uma pena que sua obra, mais de 20 títulos, esteja incrivelmente esquecida."

    À guisa de exemplo, Luís Carlos Patraquim, poeta e importante personalidade da vida cultural de Moçambique, tem consciência da importância de Orlando Mendes no âmbito das letras moçambicanas:

    O Orlando Mendes foi para mim – outros conheceram-no melhor – um homem muito discreto, de oficina, escudado num

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