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Manual Jurídico da Escravidão (vol. 2): Cotidianos da opressão
Manual Jurídico da Escravidão (vol. 2): Cotidianos da opressão
Manual Jurídico da Escravidão (vol. 2): Cotidianos da opressão
E-book1.255 páginas16 horas

Manual Jurídico da Escravidão (vol. 2): Cotidianos da opressão

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Sobre este e-book

O Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão convida o leitor a caminhar pelas ruas das cidades brasileiras no século XIX e enxergar o sistema escravista em funcionamento, observando como se dava a opressão de milhões de homens, mulheres e crianças, respondendo várias questões:
Como era a regulamentação da vida dos escravos nas cidades do Império? Qual a diferença entre escravo de ganho e escravo alugado? O cativo poderia se casar? A Igreja apoiou a abolição da escravidão? Como se organizava o Mercado de Escravos? Havia tributos sobre o comércio de cativos? Como a lei tratava os Africanos livres? Como era a estrutura da Lei Eusébio de Queirós, o marco para o fim do tráfico de escravos? Os libertos poderiam votar e ser eleitos? Qual o procedimento para se obter judicialmente a liberdade? Havia algum meio para reescravizar uma pessoa? As revoltas de escravos eram criminalizadas? Houve grandes insurreições de escravos no Brasil? Qual o rito previsto na Lei do Ventre Livre para libertar escravos?
O Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão explora e aprofunda temas que não foram objeto de estudo no Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil, de forma simples e objetiva, sistematizando o assunto, permitindo ao leitor compreender como o sistema escravista se estruturava nos seus detalhes e, consequentemente, a realidade de exclusão por ele construída.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de abr. de 2021
ISBN9786558403418
Manual Jurídico da Escravidão (vol. 2): Cotidianos da opressão

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    Manual Jurídico da Escravidão (vol. 2) - André Barreto Campello

    final

    PREFÁCIO

    No dia 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, Lei nº 3.353, pondo um fim ao instituto da escravidão, ao menos no plano jurídico. "É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil", anunciava o diploma legal, após décadas de pressões internas e internacionais.

    É muito comum o debate a respeito dos impactos sociais dessa lei. Sua edição foi suficiente para romper os laços de dominação consolidados por séculos? Ainda que tardia, qual a real contribuição da Lei Áurea para a derrubada de uma estrutura de dominação tão cruel e violenta? Serviu o direito ao propósito da liberdade e em que medida?

    Se por um lado o direito contribuiu com a extinção desse nefasto sistema de exploração, por outro lado serviu de lastro para sustentar e legitimar tamanha abominação por séculos no Brasil. Ainda que no plano jurídico, o direito que declarou extinta a escravatura foi o mesmo que a manteve hígida no sistema legal nacional por séculos.

    São, portanto, dois problemas a serem enfrentados e que, à primeira vista, parecem não se relacionar: as relações de exploração contra o povo negro se exauriram com a edição da Lei Áurea? Quais os instrumentos jurídicos utilizados para legitimar a escravidão durante sua vigência no Brasil?

    A falta de relação é apenas aparente. É que o direito foi apenas uma ferramenta de estruturação da escravidão, que não era propriamente um sistema jurídico. Era algo muito maior, uma estrutura social e econômica, que utilizou o direito como ferramenta de institucionalização.

    Assim, se o instituto jurídico da escravidão era algo que estava englobado na estrutura social e econômica escravista, não é preciso muito esforço para concluir que, extinta a escravidão no plano jurídico, não há necessariamente sua extinção no plano social e econômico. Por isso é fundamental, atualmente, entender quais os mecanismos jurídicos contemporâneos à escravidão e que lhe davam suporte, de modo a, em primeiro lugar, não nutrir falsas expectativas sobre a real capacidade do sistema jurídico em alterar estruturas sociais de exploração e, em segundo lugar, questionar se não houve um processo de sofisticação desses mecanismos de modo a que, hodiernamente, façam o papel de colaboradores dessa estrutura de exploração reempacotada em novos formatos.

    O fim da escravidão no Brasil, da forma como foi, não terminou por perpetuar uma estrutura exploratória duramente verticalizada pela desigualdade, compatibilizando-a com os novos arranjos institucionais e geopolíticos? Saber como o direito se portava à época pode ajudar a desvendar esses questionamentos.

    A negação da cidadania, e até da condição de sujeito de direito ao homem negro, eram ferramentas de instrumentalização da escravatura semeadas pela legislação. São apenas exemplos de tantas e tantas contribuições jurídicas ao flagelo do cativeiro negro, fazendo do direito muito mais cúmplice da escravidão do que propriamente seu algoz.

    Como era possível que a Constituição do Império Brasileiro de 1824, fortemente influenciada pelo pensamento liberal, que garantia a inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade pudesse, ao mesmo tempo, apenas considerar como cidadãos os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, excluindo da rede proteção constitucional os escravos?

    Não parece novidade a ideia de que a proteção da liberdade possa ser utilizada para justificar uma estrutura extremamente desigual e exploradora, na forma de meritocracia desacompanhada de equidade. É um elemento do vasto pacote de normalidades instituído pelo sistema jurídico, institucionalizando o institucionalizável, pior, cristalizando um sistema que só veio a ser abolido no Brasil, ao menos no seu aspecto formal, já no final do século XIX, sendo uma das últimas nações do mundo a fazê-lo, à frente apenas de Zanzibar, Etiópia, Arábia Saudita e Mauritânia: 1897, 1942, 1962 e 2007, respectivamente.

    Descortinar o papel do direito como instrumento de perpetuação da escravidão como sistema de exploração é essencial para compreendê-lo em sua plenitude, o que sublinha a importância do seu estudo para História do Direito. Isso não deve ser negligenciado.

    No Brasil sempre foi hegemônico o sentimento de silenciamento sobre a escravidão. Um silenciamento que se impunha durante sua vigência, sendo um tabu social a franca discussão sobre sua legitimidade e moralidade. Mesmo após a Lei Áurea, o processo de silenciamento se renovou, obstruindo qualquer reconhecimento e reflexão sobre a barbárie desse período, sendo imposta a ideia de que com a abolição a escravidão fora extinta, assim como todos os problemas dela decorrentes.

    Mas o fato é que a abolição não extinguiu a escravidão como sistema produtivo no Brasil, nem tampouco expiou as culpas de nossa sociedade que, hipocritamente, se escuda num discurso liberal para defender a igualdade de oportunidades nesse oceano de desigualdades, como forma de perpetuar ou ao menos postergar ao máximo esse sistema de exploração, que ao invés de ser abolido, tem se sofisticado.

    O silenciamento é uma das ferramentas mais efetivas. À época, não faltavam argumentos em favor da segurança jurídica e social para defender a escravidão, tudo de maneira mais confortável dada a normalidade institucional garantida pelo sistema jurídico. Ainda hoje o processo de silenciamento é vigente, de maneira mais sofisticada. Não raro se verificam defesas acaloradas dando conta de que no Brasil não há racismo, de que não há desigualdade racial e que qualquer medida compensatória estimula o preconceito racial.

    Enfim, o silenciamento recai sobre a visão da escravidão não apenas como um sistema jurídico, mas como uma estrutura social e econômica, sua repugnância moral e graves consequências perpetuadas até os dias atuais. A sofisticação desse processo consegue até acusar de racista quem se propõe a pensar políticas públicas compensatórias desse flagelo.

    As gerações mais recentes, mesmo não tendo praticado os atos de seus antepassados, são também responsáveis pelas consequências da escravidão na medida em que usufruem da desigualdade e da exploração, ainda que inconscientemente. São cúmplices também porque reproduzem, ainda que desavisados, uma estrutura de desigualdade, violência a exploração racial, o que se convencionou chamar de racismo estrutural. Não há inocentes.

    Se é verdade que no Brasil vemos um cenário de desigualdade econômica, não é menos verdade que essa desigualdade é reforçada por elementos raciais. Há, portanto, ainda mais desigualdade quando a cor da pele se apresenta. Dados relativos à renda, empregabilidade, saúde e educação são bem mais desfavoráveis para os negros, mesmo entre os mais pobres.

    Recente pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre a redução da pobreza entre 2004 e 2014, verificou que a queda foi maior entre pretos e pardos que entre brancos. Embora tenha diminuído a desigualdade, ela continua elevadíssima. Em 2014, o nível dos indicadores de pobreza de pretos e pardos era quase igual ao dos brancos em 2004, uma diferença de quase dez anos. Na média, pretos tinham chance 2,5 vezes maior de serem pobres que os brancos, e a chance dos pardos era 3,2 vezes maior. Ainda no ano de 2014, a chance de pretos serem pobres ainda era 2,1 vezes maior que a dos brancos, enquanto a dos pardos permanecia alta, 2,6 vezes maior.

    Na pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) verificou que a percepção da desigualdade racial é reforçada com o recorte por nível de instrução e por hora trabalhada. No ano de 2018, o rendimento médio das pessoas ocupadas brancas era de R$ 17,0 por hora, ao passo que entre as pretas ou pardas era de R$ 10,1 por hora. Quanto ao nível de instrução, as pessoas de cor ou raça preta ou parda receberam rendimentos por hora trabalhada inferiores aos das pessoas brancas, independentemente do nível considerado. Quanto maior o nível de instrução, maior o rendimento de forma significativa. Entretanto, as disparidades de rendimentos do trabalho, quando analisado o aspecto cor ou raça, mantêm-se presentes em todos os níveis de instrução, inclusive no mais elevado: as pessoas brancas ganham cerca de 45% a mais do que as de cor ou raça preta ou parda.

    Isso não se deve, obviamente, a uma condição pessoal ou racial. Esses fatores dizem respeito à estrutura social que aloca a força produtiva considerando o elemento racial de forma duríssima, herança dos escombros da escravidão. O negro não ganha menos em média apenas por uma decisão deliberada com base num juízo de valor racista, embora isso exista e seja muito frequente. Há uma estrutura social determinante em inúmeros fatores para que esses números se realizem, independentemente de aspectos pessoais.

    Por essa razão, romper o silenciamento sobre a escravidão, e, consequentemente, sobre o racismo em todos os seus matizes, inclusive o estrutural, como sua consequência direta, é fundamental para entender esse processo, que não se encerrou com a Lei Áurea, e promover as mudanças necessárias, inclusive no direito, para dirimir essas sequelas. Afinal, foram cerca de 300 anos de escravidão e pouco mais de 100 anos de sua abolição.

    No Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil, André Barreto Campello delineou com bastante precisão a arquitetura do sistema jurídico da escravidão brasileira, desde suas origens, seus aspectos constitucionais e repercussões nos demais diplomas infraconstitucionais, civis e penais, o tráfico, a gestão e o caminho para a abolição.

    O tema e, como dito, a necessidade de conhecê-lo e debatê-lo com mais profundidade, além da imensa repercussão da primeira obra, praticamente exigiram do autor a continuidade de suas pesquisas e estudos, resultando no presente Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão.

    Mais do que uma continuidade, Cotidianos da Opressão é um mergulho no dia a dia desse sistema, uma crônica íntima com a especial moldura jurídica que lhe embasava. Conhecer a disciplina legal das relações cotidianas do sistema escravista permite, por um lado, mergulhar nesses hábitos cristalizados em normas e, por outro, perceber como o direito era o eixo institucional dessa organização.

    A obra se inicia com um alvorecer típico dos dias normais das cidades imperiais brasileiras. Por um lado, emoldurado pelas belezas arquitetônicas e naturais, por outro, às voltas com as rotinas imundas de recolhimento dos excrementos das casas, missão imposta aos escravos, dada a inexistência de sistema de esgotamento sanitário. O cenário descreve simbolicamente as contradições da época. A beleza urbana e natural como um cenário sobre o qual uma rotina de exploração cruel e cotidiana se impõe, tão imunda quanto os excrementos que desfilavam pela cidade na alvorada.

    Metodologia utilizada durante toda a obra de forma brilhante, a descrição das intimidades e rotinas diárias da sociedade brasileira da época vem sempre associada às respectivas disciplinas jurídicas, como as normas urbanísticas, de costumes e, mais adiante, sobre relações civis, parentais, mercantis, tributárias e inclusive processuais. Libertação do escravo, o tráfico e sua proibição, além dos aspectos judiciais desses temas também são finamente abordados.

    A segunda metade do trabalho se debruça sobre as questões políticas internas, faz uma varredura sobre as insurreições do período e encerra esmiuçando a lei do ventre livre, passo fundamental que antecedeu a Lei Áurea. Sempre, em todos os temas, é feita uma completa e abrangente abordagem sobre as normas jurídicas então em vigor que tratavam sobre essas circunstâncias.

    Um bom indicativo da profundidade da pesquisa realizada pelo autor no aspecto de revisão de literatura e documental é o imenso portfólio de notas de rodapé com ampla pesquisa bibliográfica, informações complementares e indicação de documentos ou diplomas jurídicos e jurisprudenciais dos mais diversos níveis. É uma obra à parte, que justifica sua leitura cuidadosa tal como se fosse a obra em si, denotando, tal como na primeira publicação do autor, cuidado, riqueza e precisão metodológica quase que obsessivas.

    Como conclusão o autor apresenta reflexões muito profundas e observa como a escravidão era de fato um elemento central não apenas do sistema social e econômico do período, mas um eixo propriamente dito da vida cotidiana da cidade e do campo.

    Fica, portanto, o convite ao leitor para se debruçar sobre mais essa brilhante obra de André Barreto Campello a respeito do tema, agora sob uma perspectiva diferente, a cotidiana. Trata-se de um livro de direito, fortemente respaldado em documentos, atos normativos e vastíssima revisão de literatura, o que com certeza trará vida longa para a publicação.

    Boa leitura!

    Outubro de 2020.

    Gustavo Ramos Carneiro Leão

    Procurador Federal

    Professor da Universidade Católica de Pernambuco – Unicap

    Doutor em Direito Público pela UFPE

    INTRODUÇÃO

    A continuação de uma obra pressupõe não apenas a necessidade de dar seguimento às ideias apresentadas na anterior, mas, sobretudo, ter algo diferente para dizer; algo novo, que ainda não fora abordado; novas perspectivas, novos territórios a serem explorados, pois, do contrário, estaria apenas a se reproduzir os conteúdos já enfrentados, modificando apenas a forma de redigir.

    O Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão traz consigo esse objetivo, explorar novos aspectos que não haviam sido objeto de estudo no Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil, não apenas por serem novos temas, mas porque se almeja a conferir um aprofundamento maior.

    O leitor poderia talvez afirmar que, enquanto o Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil constituiria a Parte Geral do estudo sobre o odioso instituto jurídico do cativeiro negro; o Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão, se apresentaria como a sua respectiva Parte Especial, especificando os temas que foram enfrentados no primeiro livro sobre esse monstruoso sistema produtivo. Inegavelmente, não se pode deixar de se admitir que a presente obra detalha várias passagens do Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil, entretanto, não se restringe apenas a isso.

    Seu objetivo não é somente o de aprofundar os temas ou explorar assuntos que já foram vistos, vai além: convida o leitor a descer para as ruas do Império do Brasil e enxergar o sistema escravista em funcionamento: os Cotidianos da Opressão, a partir da perspectiva jurídica, ou seja, busca observar como era a realidade da opressão implementada pela sociedade brasileira, como se organizava e funcionava, mas sobretudo, como era regulamentada.

    Almeja-se saber como a sociedade escravista regulamentava aspectos do seu cotidiano, no qual os cativos necessitavam ser controlados e suas ações limitadas, sobretudo para fins de segurança pública. Por essa razão a obra busca uma maior aproximação com o objeto estudado da forma como será apresentada a seguir.

    Ingressando no cotidiano do Brasil do século XIX

    O Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil se apresentou como um ponto de partida, como que retirar um véu que encobria a verdadeira face da sociedade brasileira do século XIX, permitindo que o leitor viesse a adentrar no inferno que era o mundo da escravidão, ingressando no coração das trevas¹: uma viagem ao sombrio universo do cativeiro negro no Brasil do século XIX, em um país totalmente diferente do nosso, mas estranhamente familiar, no qual esse fruto da maldade humana era um elemento da paisagem.

    O Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão vai além, ele ingressa nessa horrenda paisagem. Se na primeira obra, o convite foi feito para adentrar naquela sombria realidade, na qual o leitor deveria deixar suas esperanças para trás, aqui, como Dante por Virgílio, o leitor é guiado por vários círculos desse inferno que era o sistema produtivo escravista, observando, com detalhes, o sistema de opressão em ação: como a estrutura jurídica funcionava para esmagar os estratos mais baixos da sociedade.

    Tendo isso em mente, no seu Capítulo primeiro, a obra se inicia com uma caminhada por uma cidade imperial, observando como se dava a regulamentação da vida dos escravos no cotidiano, por meio das Posturas Municipais, que almejavam normatizar aspectos mínimos da vida pública desses indivíduos que estavam submetidos ao cativeiro: comércio, negócios, ocupação do espaço urbano, onde poderiam habitar, festividades etc.

    Nesse mesmo capítulo, também são aprofundados outros aspectos: (a) as diferenças entre escravos de ganho e escravos alugados, analisando com precisão as suas características, a fim de compreender como se realizava o trabalho servil nas cidades; (b) o matrimônio escravo, isto é, a possibilidade, os fundamentos e os requisitos para que um escravo pudesse, formalmente, vir a se casar; (c) a regulamentação da religiosidade dos cativos e a relação entre a Igreja e a escravidão; e (d) o mercado de escravos, a regulamentação da tributação e as questões que envolviam a importação dos cativos.

    O Capítulo segundo tem seu foco na figura do Africano Livre e o seu estatuto jurídico. Estuda-se com profundidade a regulamentação e a aplicação da Lei de 7 de novembro de 1831 (e sua regulamentação), a conhecida lei para inglês ver (a Lei Feijó), bem como se deu o tormentoso e o burocrático trajeto para que eles viessem a obter a liberdade.

    No Capítulo terceiro realiza-se uma detida análise sobre como a Lei Eusébio de Queirós pôs fim ao tráfico de escravos, em 1850, comentando os seus dispositivos, verificando a sua regulamentação, estudando também como se originou tal diploma legal, nascido de uma séria crise diplomática entre o Brasil e o Reino Unido, que ficaram à beira de um conflito armado².

    Os Libertos são o tema do Capítulo quarto: (a) o conflito entre o direito à liberdade e o direito de propriedade; (b) o liberto e a lei civil; (c) as formas como se operacionalizava e podia se concretizar a alforria; (d) o que seria a carta de liberdade; (e) o rito e os detalhes das ações de liberdade; (f) a ingratidão e a sua regulamentação; (g) a infame ação de reescravização e o seu procedimento; (h) a Revolta dos Marimbondos, desencadeada pela realização do censo geral, cuja legislação ficou conhecida como a lei do cativeiro; (i) o exercício dos direitos políticos pelos libertos.

    Por sua vez, o Capítulo quinto do Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão faz um interlúdio e convida o leitor para estudar as causas, eventos e consequências da revolução de 7 de abril de 1831: o Brasil em crise, a morte de Líbero Badaró, a viagem do Imperador para Minas Gerais, a Noite das Garrafadas, a cidade do Rio de Janeiro em anarquia, as manifestações de 6 de abril, a abdicação de D. Pedro I, a ascensão da Regência e as revoltas que explodiram em todo país.

    As Insurreições, as grandes revoltas em busca da liberdade realizadas pelos escravos, são o objeto do Capítulo sexto. Analisa-se como a sociedade brasileira vivia em constante estado de medo e que a criminalidade escrava era uma realidade temida pela classe opressora dos senhores. Estuda-se a tipificação penal do crime de insurreição, previsto no Código Criminal do Império, de 1830, e do procedimento instituído na Lei de 10 de junho de 1835 para punir tais cativos. Finaliza-se o capítulo apresentando as Insurreições de Carrancas (1833), na província de Minas Gerais; o ciclo de conflagrações na província da Bahia, com a Revolta dos Malês, de 1835; e a conflagração social na Balaiada, na província do Maranhão, entre 1838 e 1841.

    Por fim, no Capítulo sétimo, ao leitor é oferecida uma inédita abordagem acerca da Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871), estudando suas origens, mas não apenas isso, de forma minuciosa, analisa-se, anota-se e comenta-se cada um dos seus dispositivos, à luz da regulamentação da época, e de como a administração pública interpretava e conferia aplicação a esse diploma legal, inclusive em relação ao fundo emancipatório, à compra das alforrias, ao funcionamento das juntas de classificação e ao sistema de matrícula dos escravos.

    O método e as justificativas apresentadas no Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil também se aplicam à presente obra.

    Construindo a obra

    Como exposto, o leitor pode perceber que os temas que foram abordados no Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão diferem do que foi tratado na obra anterior. Tratou-se com muito detalhe de temas bem pontuais, mais ligados a como a escravidão se desenvolvia, bem como a detida apresentação de eventos marcantes, sobretudo rebeliões ou insurreições, em que as classes esmagadas pelo cativeiro se insurgiram contra o peso do sistema produtivo.

    Entretanto, apesar desses novos horizontes a explorar, a forma como os temas serão abordados continua semelhante: pretende-se estudar a escravidão sob a perspectiva jurídica, apresentando os assuntos de forma mais sistematizada possível para o leitor, de forma simples e objetiva, mas não de forma superficial.

    O objetivo é que o leitor possa, mais uma vez, ingressar no Brasil do século XX, sobretudo durante o período em que o Império brasileiro existiu, e consiga compreender, e também sentir, como aquela sociedade escravocrata funcionava: os limites que eram concedidos para a vida pública e privada dos cativos.

    Para ser possível ao leitor entender tal realidade, bem como o fenômeno jurídico que nela existia, realiza-se a sistematização do conhecimento à luz das categorias lógicas contemporâneas, a fim de permitir a compreensão da legislação vigente naquele período: de forma didática são descritas a estrutura e a aplicação do direito na sociedade brasileira oitocentista. Método bem similar ao empregado nas obras de direito romano³ e que também foi utilizado no Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil.

    É necessário, mais uma vez, tecer a advertência que se buscou evitar cair no erro do anacronismo: as ferramentas dadas pela moderna ciência do estudo do Direito foram utilizadas apenas para entender a realidade passada e buscar transmitir ao leitor, com mais clareza, de forma sistematizada e lógica, a compreensão, o significado e o alcance das normas jurídicas estudadas.

    Por óbvio, o direito não pode ser compreendido como um fenômeno isolado no tempo e no espaço; não se trata também de um amontoado de normas que não se relacionam com os valores, as visões de mundo e as expectativas de um grupo social (que o edifica e que é por ele governado), em determinado momento da sua história⁴.

    Evidente que os indivíduos que integram a nossa sociedade, por exemplo, sejam, ou não, operadores do Direito, percebem as normas jurídicas, isto é, há uma mínima compreensão dos principais limites impostos pelo ordenamento às suas condutas, inferindo também os direitos que lhe são assegurados. Em outras palavras, por se viver sob o império do direito, é possível senti-lo; consegue-se perceber a sua dinâmica.

    Portanto, o que se pretende realizar no Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão, seria, de certa forma, um ato de reconstrução daquele ordenamento jurídico que já não mais existe. Reconhece-se que se trata de uma tentativa de reconstrução, pois os integrantes daquela sociedade, sobre os quais incidiam aquele ordenamento estudado, não se encontram mais presentes, por esta razão, para o estudo desse direito, deve-se buscar a doutrina, a opinio iuris, de contemporâneos que nos explicam a dinâmica daquele sistema. A utilização desse método é imprescindível, pois, como já explicado no Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil:

    [...] não seria possível apenas estudar o direito do passado com os olhos dos homens daquele período, afinal tanto o leitor desse trabalho, quanto o seu autor, integram a sociedade brasileira do início do século XXI, ou seja, pertencem a outro contexto histórico⁵.

    É esssa a razão pela qual, ao longo do Cotidianos da Opressão, busca-se enxergar o direito imperial do Brasil à luz das interpretações dos doutrinadores do século XIX, pois, será com essas visões e ensinamentos que teremos o real significado de como o ordenamento jurídico daquele período era aplicado, servindo de ponto de partida para as análises realizadas. Também, por essa razão, tal estudo não se fará apenas com vagas referências: as normas serão transcritas para que o leitor possa tirar suas próprias conclusões.

    Deve-se registrar que não se prescindirá de estudar os principais fatos históricos, que muitas vezes servem de fonte do direito⁶, entretanto, por óbvio, o foco será o ordenamento jurídico positivado durante o Império do Brasil.

    Evidente também, como se pode perceber ao longo da obra, que não se furtou a tentar adequar os institutos à tecnologia linguística do direito contemporâneo, sobretudo a fim de decifrar as disposições legais estabelecidas, além de também adaptar a linguagem utilizada naquele período histórico às regras ortográficas atuais, para facilitar a fluidez da leitura e a compreensão sobre o que está sendo abordado.

    Cada capítulo é independente um do outro, podendo o leitor começar a sua apreciação a partir de qualquer um deles, dessa forma, se torna mais acessível o estudo dos temas, pois alguns apreciadores poderão ter interesse em pontos específicos para sua pesquisa. Deve-se registrar também que alguns assuntos que foram abordados no Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil são aqui retomados, mas de forma diferente: são sistematizados, ampliados e enfrentados com muito mais profundidade.

    Deve-se advertir que a pretensão do Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão não é servir de obra geral, absoluta e definitiva sobre a escravidão. Não é esse o seu objetivo. Para a elaboração de uma obra com tal natureza seria necessária redigir um verdadeiro tratado, com vários tomos, não apenas pela bibliografia existente, mas sobretudo pelos séculos em que no Brasil perdurou o sistema escravista, bem como a complexidade desse tema⁷. Não obstante, a bibliografia sobre o cativeiro negro é vastíssima: a quantidade de obras sobre a escravidão é imensa⁸, poderia até se afirmar que não há uma única biblioteca que reúna todos os livros que analisam os infindos aspectos desse sistema produtivo na realidade brasileira no século XIX.

    A pretensão do Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão é mais modesta, almeja-se organizar esse conhecimento e apresentá-lo, como se disse, de modo sistematizado, claro e objetivo: oferecer as primeiras linhas para que o leitor possa compreender a escravidão negra sob a perspectiva jurídica. Trata-se, portanto, de um estudo de História do Direito cuja preocupação é a de realizar uma exposição compreensível, a ponto de que seja possível visualizar não apenas as relações de poder entre o senhor e o seu escravo, mas também como o direito brasileiro, durante o Império do Brasil, regulamentava tal relação jurídica.

    No Cotidianos da Opressão, mais do que nunca, fica evidente a importância do estudo do direito como forma de compressão do Brasil do século XIX: ao se estudar o fenômeno jurídico, consegue-se apreender como aquela sociedade, que não mais existe, valorava e qualificava os fatos⁹, mas não apenas isso, também é possível se observar quais as condutas reprovadas pela coletividade.

    Para exemplificar: no Código de postura do Rio de Janeiro de 1838¹⁰, por exemplo, estava vedado ao escravo, pelo seu art. 6º, trafegar pela cidade após as dezenove horas sem autorização por escrito do seu proprietário:

    Tít. 7º. Art. 6º. Todo escravo que for encontrado das 7 horas da tarde em diante sem escrito de seu Senhor, datado do mesmo dia, no qual declare o fim que vai, sofrerá 8 dias de prisão, dando-se parte ao Senhor¹¹.

    Se existia um diploma legal que vedava a realização de tal ato, por óbvio, é porque havia destinatários daquela norma jurídica que tinham o hábito de realizar essa conduta que passou a ser considerada ilícita, não mais apenas moralmente reprovável. A sociedade reputou que merecia haver a positivação de uma proibição, com o estabelecimento de sanções legais contra aquela conduta. Portanto, ao se estudar o direito, evidentemente, também era possível se conhecer os hábitos do cotidiano daquela coletividade e como eles eram valorados.

    Isso nos rememora um evento ocorrido na Faculdade de Direito do Recife, em 1994, quando era ofertado Direito Romano como disciplina obrigatória, tendo como professor o então jovem mestre Torquato de Castro Júnior. Como aluno, ao estudar tal tema, pela primeira vez, o que mais me chamou atenção, além das excelentes aulas ministradas, foi a possibilidade que o docente nos conferiu de realizar um trabalho para obtenção da segunda nota. Então foi possível escolher e estudar, com calma, um ponto específico e apresentar algo diferente para avaliação, no caso: um rascunho de autos de um processo (civil) de Direito Romano, em que os personagens foram colegas de sala, envolvidos em uma complexa trama, tendo, ao final, o pretor decidido o caso concreto.

    Evidente que tal trabalho apresentado ao professor de Direito Romano se tratava de uma ousadia da juventude, um arroubo, dentre tantos outros de um estudante de Direito, pois o que se pretendeu realizar foi reanimar um direito morto.

    Entretanto, é exatamente nesse ponto que reside o fascínio e também a razão de ser do Manual Jurídico da Escravidão: Cotidianos da Opressão, pois, ao se estudar a legislação de um ordenamento jurídico que não mais vigora, em verdade, o pesquisador se depara com a alma de uma sociedade que não mais existe. Seu trabalho é como reanimar, com um sopro, um ser que não mais vive, observando como ele reage e se movimenta, quais são seus objetivos, suas visões de mundo, seus traumas.

    Anos depois, já em 1997, quando estava em período mais avançado do curso, por alguma razão tive de ir ao subsolo da Faculdade de Direito do Recife, por volta das onze horas, antes de encerrar o horário matutino, talvez para resolver alguma coisa em um dos departamentos. Notei que havia uma pilha de documentos, livretos e outros materiais que seriam descartados e lá se encontrava o simpático Sr. Ademir, servidor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que estava, juntamente com terceirizados de serviços gerais, organizando tudo aquilo para ser levado embora. Indaguei se poderia dar uma olhada nessa pilha de livros: ele consentiu. Nesse momento encontrei um pequeno livro de Décio Freitas, o qual integrava uma coleção sobre cidadania e, no caso, abordava as normas jurídicas processuais que deveriam ser aplicadas quando os escravos cometessem crimes¹². Ao observar rapidamente o seu conteúdo, me deparei com algo que me transformou: o livreto trazia informações que nunca ouvira falar. O servidor permitiu que ficasse com a pequena obra. Ela despertou uma irresistível curiosidade, mas não possuía, na época, maturidade para transformar esse interesse em algo maior.

    Com o tempo, o que me chamou atenção foi que, em regra, não se estudava o direito brasileiro do século XIX e também não se ensinava um dos temas mais relevantes para se compreender o Brasil atual: a Escravidão, que guarda consigo uma relevância manifesta, sendo assunto imprescindível para compreender a história do nosso país¹³.

    Leitor, seja mais uma vez bem-vindo, o Sol já está nascendo e a sua luz já toca nas paredes dos sobrados, as quais reluzem e brilham, devido aos azulejos, juntamente com as vidraças e os lampiões nos postes. Nas vazias ruas calçadas com pedras, já é possível se observar as ruidosas carroças d’água trafegando, bem como os aguadeiros, que iam nas casas para encher as banheiras e os potes; e os escravos começavam a sua labuta diária, realizando o seu ganho¹⁴. Uma das cidades do Império do Brasil está despertando, nos acompanhe nessa estranha viagem aos sombrios Cotidianos da Opressão.


    Notas

    1. Nas palavras de Ruy Barbosa: Se Dante Alighieri tivesse vivido no século XVIII, colocaria o vértice dos sofrimentos inexprimíveis, o círculo íntimo do seu Inferno no porão de uma embarcação negreira, num desses núcleos de suplícios infindos que apenas poderia descrever a poesia sinistra da loucura; numa dessas gemônias flutuantes, ninhos de abutres humanos que a mão da mais perversa das malfeitorias espargiu durante trezentos anos no Atlântico [...] (Lima, Manuel de Oliveira. O Movimento da Independência: o Império brasileiro (1821-1889). São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 405).

    2. Prado Júnior, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979, p. 151.

    3. Cretella Junior, José. Curso de direito romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 19-20. Esse mesmo método é utilizado pelos autores quando se busca a compreensão do direito romano (Correia, Alexandre; Sciascia, Gaetano. Manual de direito romano. Rio de Janeiro: Sadegra/Livros cadernos Ltda, 1996, p. 32).

    4. Ferreira, Luís Pinto. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 31.

    5. Campello, André Barreto. Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil. Jundiaí: Paco, 2018, p. 23.

    6. Para Savigny: Fonte substancial do direito, pois, é a consciência comum do povo, que dá origem e legitimidade às normas lógicas que, dela, a razão extrai (Ráo, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 249). Para uma crítica acerca da ambiguidade e outros problemas decorrentes dessa expressão, ver Ferraz Junior, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 192. Por fontes do direito havemos de compreender os focos ejetores de regras jurídicas, isto é, os órgãos habilitados pelo sistema para produzirem normas, numa organização escalonada, bom como a própria atividade desenvolvida por esses entes, tendo em vista a criação de normas. [...] não basta a existência do órgão, devidamente constituído, tornando-se necessária sua atividade segundo as regras aqui previstas no ordenamento [devido processo legislativo] (Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 79).

    7. Malheiro, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil. v. 1. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1867, p. 14.

    8. Acerca do volume de obras e estudos acerca da escravidão, com diferentes abordagens, sugere-se Gaspar, Lúcia. O negro no Brasil: uma contribuição bibliográfica. Recife: Fundaj/Editora Massangana, 1994 e Subsídios para o estudo da abolição: guia de sala. Recife: Ed. Massangana, 1983, p. 31-107.

    9. [...] a relevância do estudo do direito para a interpretação histórica de uma determinada sociedade pode ser ajuizada pela noção de que ele nomeia, qualifica e hierarquiza todo divórcio entre a ação do indivíduo e o princípio fundamental dessa sociedade (Silva Júnior, Waldomiro Lourenço da. História, Direito e Escravidão. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2013, p. 15).

    10. Na ausência de um código civil, e antes da Consolidação das leis civis, em 1857, a vida dos citadinos era regulamentada pelos Códigos de Posturas, que eram aprovados pelas Câmaras municipais.

    11. Santos, Ynaê Lopes dos. Que lancem todos os dias os nomes, empregos e mais sinais: circulação escrava e tentativas de controle estatal nas leis municipais do Rio de Janeiro e de Havana na década de 1830. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 9, 2015, p. 35. Disponível em: https://bit.ly/39Hb3d1. Acesso em: 21 ago. 2020.

    12. Freitas, Décio et al. A Cidadania no Brasil: o índio e o escravo negro. Brasília: Ministério do Interior, 1988.

    13. Moura, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Ed. USP, 2004, p. 206.

    14. Azevedo, Aluísio. O mulato. São Paulo: Ática, 1988, p. 15.

    Capítulo 1

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    A vida urbana do escravo: o cotidiano da opressão

    1. O escravo nas cidades

    O dia começava em uma das cidades do Império do Brasil¹⁵. Já era possível ver os raios solares iluminando as ruas, com o seu calçamento de pedras, e na parte superior dos sobrados mais suntuosos e altos, os telhados já adquiriam as cores daquela manhã, e os azulejos resplandeciam aquela iluminação.

    Com a alvorada, os ruídos da vida urbana começavam a dissipar o silêncio¹⁶. Na zona portuária o trabalho havia se iniciado durante a madrugada, pois os cativos iniciavam muito cedo a sua jornada matinal de labuta; todavia, os escravos e as escravas que haviam trabalhado em atividades noturnas, com autorização do seu proprietário, já haviam se recolhido com o advento da madrugada. Evidente que, para tais escravos que passaram a noite em claro, em atividades de inúmeros tipos, seria exigido deles autorização expressa dos seus senhores para estar a vagar pelas ruas¹⁷.

    Já era possível também ouvir, em algumas igrejas, o badalo dos sinos anunciando a celebração das missas matinais, não tão intensamente frequentadas como aquelas que ocorriam nos finais de semana, mas com seu público costumeiro. Era uma quarta-feira, um dia como qualquer outro, um dia de trabalho no Império do Brasil¹⁸.

    Com a chegada da alvorada, os escravos já ganhavam as ruas para realizar suas atividades, como por exemplo, o recolhimento dos excrementos das casas, já que praticamente não existia sistema de esgotos nas cidades brasileiras¹⁹, com a população urbana vivendo, em sua grande maioria, em péssimas condições de salubridade²⁰.

    Tratava-se, nesse caso, dos escravos denominados de tigres²¹ ou cabungos²², que carregavam os tonéis com tais resíduos para serem jogados na maré²³. Como tais barris envelheciam, não raramente o seu conteúdo vazava e sujava o escravo que o transportava²⁴. Colocavam tal barril (barricas de madeira) na cabeça e seguiam para lugar distante, deserto ou na praia, para despejar o seu conteúdo, já que normas municipais, em regra, proibiam que os indivíduos lançassem tais resíduos nas vias públicas, como por exemplo a Postura do Município de Recife, de 1831:

    Art. 3º Nenhum morador lançará, nem mandará lançar nas ruas, ou lugares públicos que não forem para este fim designados, lixos, imundices, ou qualquer cousa que possa incomodar, ou causar dano ao público: os infratores serão multados em 2,000²⁵.

    A Postura Municipal de Manaus de 1848 também trazia proibição similar:

    Art. 17. Ninguém poderá lançar ou consentir, que se lance águas infectas nas ruas, quintais, pátio, estradas, e canos de casas, devendo estes servir somente para dar saída às águas pluviais. O infrator incorrerá na multa de dez mil réis ou quatro dias de prisão.

    Art. 18. Ninguém poderá lançar nas ruas, praças, praias, cais, e mais lugares públicos imundícies, cisco, vidros, resto de peixes, o que só poderá ser feito nos lugares que as Câmaras designarem por editais. O infrator incorrerá na multa de dois mil réis, ou um dia de prisão, e será obrigado a mandar fazer a limpeza a sua custa, ou a pagar a despesa, que o Fiscal para isso tiver feito²⁶.

    As posturas municipais eram instrumentos normativos que tinham por objetivo a regulamentação da vida na comunidade, disciplinando, de forma até minunciosa, o convívio e comportamentos dos indivíduos, o cotidiano dos citadinos:

    Estes códigos de posturas municipais eram um conjunto de normas que estabeleciam regras de comportamento e convívio para uma determinada comunidade, demonstrando a preocupação com a segurança pública e com a preservação da ordem, incluindo aí os problemas relacionados com a saúde pública²⁷.

    Portanto, é possível observar que nas cidades e vilas do Império do Brasil, competia à Câmara Municipal, órgão colegiado, com membros escolhidos pelas assembleias paroquiais²⁸, legislar, nos termos da Constituição do Império²⁹, por meio de Posturas, sobre o dia a dia dos habitantes, exercendo o poder de polícia e administração sobre o espaço urbano³⁰. Estes órgãos realizavam a normatização do cotidiano dos indivíduos que habitavam as cidades e vilas³¹.

    Os códigos de postura³², que proliferaram ao longo do século XIX³³, eram instrumentos de controle da sociedade³⁴ e que, dentro do sistema escravista de produção, dispunham sobre o cativo, tratando-o como um inimigo³⁵ e um problema potencial de segurança pública³⁶:

    Visando o controle, foram elaborados os códigos de posturas com o objetivo de disciplinar as práticas dos transeuntes nas ruas, estabelecendo as formas de convívio no espaço da cidade³⁷. As posturas foram técnicas de controle, que, com o discurso da cidade salubre e higiênica³⁸, pretenderam disciplinar as massas no espaço urbano. [...] podemos considerar que os códigos de posturas e regulamentos, criados a partir do século XIX, podem ser analisados como uma forma de normalização da sociedade³⁹, de organização da cidade diante do processo de urbanização. Os códigos de posturas não deixaram de legislar sobre os escravos⁴⁰.

    Por exemplo, os escravos, segundo a legislação municipal, deveriam, como os demais membros da coletividade, manter o decoro, isto é, trajar roupas que respeitassem o pudor público:

    Art. 11 [...] § 4º. Ninguém poderá mandar a rua, escravos, ou escravas, sem que sejam vestidos de roupa, que lhes cubra os corpos, e que essas roupas não sejam esfrangalhadas [...]⁴¹.

    Logo pela manhã, se viam os carregadores trabalhando em equipe⁴², sob olhar atento do feitor, nas imediações do porto e no centro da cidade, realizando o transporte⁴³ de enormes toneis, fardos e sacos, retirando-os dos armazéns⁴⁴, levando-os até o seu destino, que poderia ser o local onde se realizaria a fiscalização alfandegária e, para as mercadorias já inspecionadas, as embarcações, galpões ou para estabelecimentos comerciais:

    Em 1857, grande parte dos negros de Salvador, escravizados ou não, trabalhava nas ruas. Eram responsáveis, sobretudo, pela circulação de objetos e pessoas através da cidade. Carregavam de tudo: pacotes grandes e pequenos, do envelope de carta a pesadas caixas de açúcar e barris de aguardente, tinas de água potável e de gasto para abastecer as casas, tonéis de fezes a serem lançados ao mar; e transportavam gente em saveiros, alvarengas, canoas e cadeiras de arruar⁴⁵.

    Sobre o transporte de mercadorias e pessoas serem feitos, preferencialmente por escravos, Debret explica como isso interligava inúmeros interesses da cadeia produtiva no sistema escravista:

    Embora pareça estranho que nesse século de luzes se depare ainda no Rio de Janeiro com o costume de transportar enormes fardos à cabeça dos carregadores negros⁴⁶, é indiscutível que a totalidade da população brasileira da cidade, acostumada a esse sistema, que assegura a remuneração diária dos escravos empregado nos serviços de rua, opõe-se à introdução de qualquer outro meio de transporte, como seja, por exemplo, o dos carros atrelados. Com efeito, a inovação comprometeria dentro de pouco tempo não somente os interesses dos proprietários de numerosos escravos, mas ainda a própria existência da maior parte da população, a do pequeno capitalista e das viúvas indingentes, cujos negros todas as noites trazem para casa os vinténs necessários muitas vezes à compra de provisões do dia seguinte⁴⁷.

    Ao mesmo tempo, nas ruas mais agitadas da cidade, onde era comum o comércio, inclusive de ambulantes, e nas feiras⁴⁸, já era possível observar os primeiros escravos de ganho⁴⁹ chegando com as suas mercadorias para serem ofertadas aos clientes que começavam a sair à rua⁵⁰. Sobre tais modalidades, veremos detalhadamente mais adiante.

    Com a abertura dos primeiros estabelecimentos, por volta das oito ou nove horas da manhã, seria possível perceber também, em muitos locais, os escravos ajudando os seus proprietários em seus afazeres profissionais⁵¹, como, por exemplo, em sapatarias⁵². Muitos dos escravos que atuavam nesses locais, auxiliando o dono do estabelecimento, eram escravos diaristas, isto é, alugados pelos seus senhores sob pagamento diário⁵³.

    Caminhando pelas calçadas da região central da cidade, pelas suas estreitas ruas, esperando que não caísse nenhum vaso ou jarro sobre sua cabeça⁵⁴, nem que lançassem água suja pela janela⁵⁵, e onde havia concentração de comércio e de pessoas com seus afazeres (públicos ou privados), seria possível ter-se a impressão que a população negra era a maioria das pessoas que viviam naquela cidade⁵⁶.

    Os escravos estavam em todos os estabelecimentos, realizando todo tipo de atividades⁵⁷: como operários⁵⁸; como prestadores de serviços⁵⁹; no transporte de cargas pelas vias públicas (não poderiam utilizar as calçadas, para não atrapalhar o fluxo de pedestres⁶⁰); como artesãos⁶¹; e atuando no comércio em geral⁶². A escravidão era um fenômeno universal⁶³. O escravo se inseria por completo na realidade brasileira⁶⁴, não vivia à parte, pois as relações humanas estabelecidas no cotidiano traziam consigo interação com essa massa de indivíduos subjugados ao cativeiro⁶⁵.

    A presença maciça dos escravos na vida urbana, não apenas como uma passiva mão de obra, mas como um dos agentes das interações sociais, é bem descrita por Diniz, ao retratar a vida diária em uma próspera⁶⁶ capital provincial do Império do Brasil:

    O cotidiano da cidade de São Luís no século XIX era fortemente marcado pela presença dos escravos nas casas e, principalmente, nas ruas. Os cativos apresentavam - se não só como mão-de-obra, mas também como portadores de subjetividade⁶⁷, não deixando de expressar em suas ações seus gostos e vontades⁶⁸.

    Se a base produtiva da sociedade era o trabalho escravo, não é possível ver essa massa de indivíduos negros submetidos ao cativeiro apenas como seres inertes, sem desejos, sem vontade. Ao contrário, os escravos também eram agentes das relações humanas travadas nos ambientes, ocupando espaços e interferindo na vida da comunidade na qual eles estavam inseridos⁶⁹.

    Com a abertura do comércio, com os estabelecimentos em funcionamento, também começavam a aparecer nas principais ruas da cidade os escravos artesãos⁷⁰, que realizavam atividades especializadas, se valendo de seus talentos em alguma atividade artesanal, prestando serviços⁷¹. No que se refere às obras contratadas pelo poder público, arrematadas por particulares⁷², a maioria dos indivíduos envolvidos em atividades braçais era composta por escravos, cujo trabalho era gerido por mestres de obras e artesãos⁷³.

    Por volta das dez horas da manhã, quando o movimento se intensificava e as ruas ficavam cheias era possível de se ver, em alguns locais o mercado de escravos, em que expostos os indivíduos (e examinados), poderiam vir a ser até objeto de leilão público⁷⁴:

    Os corretores de escravos examinavam, à plena luz do sol, os negros e moleques que ali estavam para ser vendidos; revistavam-lhes os dentes, os pés e as virilhas; faziam-lhes perguntas sobre perguntas, batiam-lhes com a biqueira do chapéu nos ombros e nas coxas, experimentando-lhes o vigor da musculatura, como se estivessem a comprar cavalos⁷⁵.

    Tais leilões⁷⁶ de escravos, regulamentados pelo Código Comercial de 1850, exigia que o agente de leilões⁷⁷ tivesse uma detalhada escrituração comercial dos atos praticados por ele, no seu estabelecimento⁷⁸, sendo vedada a venda a fiado, a prazo certo, sem autorização do proprietário daquele bem que fora colocado em oferta e alienado⁷⁹.

    Somente com o advento do Decreto nº 1.695, de 15 de setembro de 1869⁸⁰, foi proibida vendas de escravos por meio de pregão, em leilões, com exibição pública dos cativos⁸¹. Pelo mesmo decreto foi vedada também a venda separada das famílias compostas por escravos⁸².

    Continuando nesse dia, nas agitadas ruas centrais e de comércio da cidade, seria possível, com um olhar um pouco mais atento, perceber que alguns negros não calçavam sapatos. Tratava-se de um costume da época⁸³: o escravo se distinguia dos demais por não possuir sapatos, entretanto, os libertos, costumeiramente, os utilizavam: Para o escravo, o uso do sapato era o símbolo da sua libertação⁸⁴.

    Inclusive, alguns negros forros⁸⁵, para enganar os recrutadores do exército⁸⁶, se passavam por escravos, retirando seus sapatos e andando descalços, quando aquelas autoridades militares buscavam por novos recrutas⁸⁷, pois os escravos, como não eram cidadãos do Império⁸⁸, não poderiam vir a ser convocados⁸⁹.

    Nessas andanças pelas ruas das cidades do Império do Brasil, seria possível observar também grupos de escravos sendo conduzidos, por autoridades policiais ou militares, em direção a algum canteiro onde estivesse sendo realizada uma obra pública⁹⁰. Tais cativos estariam usando gargalheiras⁹¹ e, muitas vezes, calcetas⁹².

    Esse mencionado grupo era composto pelos condenados em galés, prevista na legislação criminal, que impunha a estes indivíduos a pena de trabalho forçado⁹³. Na prática, tais escravos passavam a ser propriedade do Estado, após a sua condenação⁹⁴, devendo ser recolhidos ao calabouço passando a exercer diversas atividades. A pena de galés significava trabalhos forçados (penalidade físicas, em regra, colocação de gargalheira de ferro⁹⁵) e poderia ser temporária⁹⁶ ou perpétua⁹⁷.

    Essa pena foi muito criticada, não apenas pelos seus efeitos sobre o próprio condenado⁹⁸, mas porque não gerava o efeito intimidador pretendido⁹⁹. Posteriormente, passou-se a entender que a pena de galés não poderia ser aplicável aos escravos, por gerar uma verdadeira sensação de impunidade¹⁰⁰:

    A Pena de galés para o escravo não preenche suas finalidades¹⁰¹. Ao contrário, é um incentivo para crimes desse tipo. Matam seus senhores ou feitores para se verem livres, depois apresentam-se para serem enviados à casa de correção¹⁰².

    Outra perspectiva apresentada por juristas da época é que, para os escravos, as penas de galés eram muito menos severas que a própria rotina sem fim de trabalho e de violência¹⁰³:

    A narração dos fatos notáveis dá a conhecer que muitos desses infelizes praticam crimes para trocarem o látego da escravidão pela golilha¹⁰⁴ do condenado, e costumam dizer ao Juiz na indagação das causas: Matei para servir ao Rei! Matei para sair do cativeiro!¹⁰⁵

    Nessa mesma andança pelas ruas dessa cidade do Império do Brasil, também chamaria a atenção do leitor os negros que estariam portando a gargalheira¹⁰⁶, também chamadas de colar de ferro:

    O colar de ferro é o castigo aplicado ao negro que tem o vício de fugir. [...] O colar de ferro tem vários braços em forma de ganchos, não somente no intuito de torná-lo ostensivo, mas ainda para ser agarrado mais facilmente em caso de resistência, pois apoiando-se vigorosamente sobre o ganho a pressão inversa se produz do outro lado do colar, levantando com força o maxilar do preso; a dor é horrível e faz cessar qualquer resistência principalmente quando a pressão é renovada com sacudidelas¹⁰⁷.

    Usado como sanção para escravos que houvessem tentado fugir, e também como meio para dissuadi-los de possíveis novas tentativas (além de alertar a comunidade, marcando o escravo com aquele vexatório e torturante instrumento), Debret descreve como era o procedimento dos proprietários após descobrir a evasão de um dos seus cativos:

    [...] A polícia¹⁰⁸ tem ordem de prender qualquer escravo que o use, quando encontrado de noite vagabundeando na cidade, e de deixá-lo na cadeia até o dia seguinte. Avisado então, o dono vai procurar o seu negro ou o envia, acompanhado por um soldado, à prisão dos negros no Morro do Castelo. A mesma medida é aplicada em todas as estradas fora da cidade pelos capitães de mato¹⁰⁹, guardas campestres sem uniforme, ajudados por negros a seu serviço. Assim um proprietário que perde um escravo no Rio declara-o imediatamente à polícia, dando o nome e os sinais do fugitivo; a mesma declaração é feita aos diversos capitães do mato dos arrebaldes da cidade. Quando o fugitivo é preso, o capitão de mato o entrega acorrentado ao dono, recebendo gratificação habitual de quatro mil réis¹¹⁰.

    A fuga era um ato de extrema coragem individual do escravo¹¹¹ e algo muito comum¹¹²; uma forma individual de resistência¹¹³ que era, de forma intensa, reprimida pelo sistema escravista e não tolerada por esse¹¹⁴, pelo fato de que a sua ocorrência solapava a manutenção dessa estrutura de opressão de milhões de homens e mulheres submetidos ao cativeiro¹¹⁵.

    A fuga¹¹⁶ dos calhambolas¹¹⁷ gerava uma desorganização na estrutura produtiva desde os primórdios da introdução do trabalho escravo como mão de obra nas grandes lavouras:

    As fugas dos escravos¹¹⁸, como não podia deixar de ser, acarretavam desastrosas consequências econômicas e sociais. O escravo era a mão de obra responsável por toda a produção, tirando da comercialização desta, o senhor, todas as parcelas necessárias à cobertura de suas obrigações comerciais, de seus compromissos industriais, de suas despesas sociais com seus mesmos escravos, com seus familiares, com seus luxos etc¹¹⁹.

    Para os juristas da época, a fuga do escravo não gerava prescrição extintiva¹²⁰ do vínculo que lhe submetia àquela triste situação¹²¹, ou seja, o indivíduo não perdia a condição de escravo pela fuga, já que havia uma espécie de roubo de si mesmo, ou seja, havia a má-fé¹²².

    As horas se passavam e, ao meio-dia, sob o sol escaldante, já no horário do almoço muitos dos estabelecimentos comerciais fechavam as portas, para reabrir a partir das 14h. Já no período vespertino, com o aumento da umidade (podendo prenunciar uma pancada de chuva ao final da tarde), seria possível ver proprietários mais abastados, homens ou mulheres, sendo transportados por escravos em liteiras¹²³, ou como se chamava comumente no Brasil, cadeiras de arruar¹²⁴, pela cidade¹²⁵, em direção aos seus afazeres¹²⁶.

    Deslocando-se pela cidade, sobretudo por algumas regiões, o proprietário poderia ver como existiam locais com um imenso agrupamento de escravos¹²⁷, geralmente sendo conduzido para o trabalho, ou mesmo desocupados, o que poderia consistir em verdadeira ameaça, ou indícios de vadiagem¹²⁸. A vadiagem e a mendicância constituíam crimes, previsto no código criminal, e eram combatidas pelo aparato policial:

    Art. 295. Não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta, e útil, de que passa subsistir, depois de advertido pelo Juiz de Paz, não tendo renda suficiente.

    Pena - de prisão com trabalho por oito a vinte e quatro dias.

    Art. 296. Andar mendigando:

    1º Nos lugares, em que existem estabelecimentos públicos para os mendigos, ou havendo pessoa, que se ofereça a sustentá-los.

    2º Quando os que mendigarem estiverem em termos de trabalhar, ainda que nos lugares não hajam os ditos estabelecimentos.

    3º Quando fingirem chagas, ou outras enfermidades.

    4º Quando mesmo inválidos mendigarem em reunião de quatro, ou mais, não sendo pai, e filhos, e não se incluindo também no número dos quatro as mulheres, que acompanharem seus maridos, e os moços, que guiarem os cegos.

    Penas - de prisão simples, ou com trabalho, segundo o estado das forças do mendigo, por oito dias a um mês.

    Apesar de se exigir muitas vezes o trabalho coletivo de escravos, atuando em grupo¹²⁹, como força de trabalho organizada e fiscalizada por feitores, o poder público não tolerava a manutenção de grupos de escravos reunidos e ociosos:

    Art. 92 – [...] o agrupamento nas ruas e praças desta Cidade de mais de três escravos, exceto para algum serviço reconhecido, que será logo dispersado pelas rondas, e no caso de reincidência serão presos para serem entregues a seus Senhores, Administradores ou quem suas vezes fizer, para os punir publicamente, e não o fazendo incorrerá na multa de quatro mil réis¹³⁰.

    Findo o dia de trabalho, com chegada da noite, ocorria na cidade o toque de recolher¹³¹, quando então a liberdade de locomoção dos habitantes, pelos logradouros e vias públicas, sobretudo dos escravos, era restringida e estava sob fiscalização da autoridade policial¹³².

    Em regra, era vedada a locomoção de escravos após o toque de recolher, os quais somente poderiam estar nas ruas em excepcionais hipóteses, portando documentos autorizadores dados pelo seu proprietário, ou seu administrador:

    Art. 91 – Nenhum escravo depois do toque de recolher sairá à rua sem escrito assinado por seu Senhor, Administrador, ou quem suas vezes fizer¹³³, pena de ser recolhido à prisão para ser entregue no outro dia ao Senhor, Administrador para castigá-lo publicamente, e não o fazendo incorrerá na multa de mil réis¹³⁴.

    Nessas horas, após o toque de recolher, proliferavam atividades como a prostituição¹³⁵, a capoeira¹³⁶ e as tabernas (onde, não raro, realizavam-se jogos¹³⁷), atividades reprimidas pelas autoridades, sobretudo por serem uma decorrência da vadiagem, no entender da mentalidade daquela sociedade¹³⁸. Merece registro que várias posturas municipais vedavam a prática da capoeira, eis um exemplo da Postura municipal de Sorocaba, na Província de São Paulo, em 26 de agosto de 1850:

    Art. 151. Toda e qualquer pessoa que em praças, ruas, ou outro qualquer lugar exercer o jogo denominado capoeiras, ou qualquer outra luta, será presa por dois dias e pagará dois mil réis de multa, e sendo cativa, será presa e entregue o seu senhor para o fazer castigar na grade com vinte e cinco açoites [...]¹³⁹.

    Umas das formas de que os senhores podiam vir a explorar o potencial econômico das suas escravas era a prostituição¹⁴⁰. Não existia no direito brasileiro a regra vigente no direito romano¹⁴¹ que possibilitava a concessão de alforria para a escrava submetida à prostituição, já que o art. 179, da Constituição de 1824¹⁴², garantia plenitude de propriedade ao senhor¹⁴³, que poderia explorá-la de qualquer forma, como inclusive já havia decidido o judiciário na época¹⁴⁴.

    Os senhores concediam bilhete de permissão¹⁴⁵ para que as escravas pudessem vagar à noite. Pela manhã exigiam o dinheiro pela concessão de tais documentos¹⁴⁶. Havia nas ruas, sobretudo próximo à zona portuária, os prostíbulos, nos quais escravas menores de idade já se exibiam nas janelas, seminuas¹⁴⁷, essas escravas de ganho, que trabalhavam tanto de dia (em tabuleiros), como de noite (como prostitutas), nas ruas, expondo e buscando vender seus produtos e seu corpo, evidentemente estavam muito mais sujeitas a serem vítimas¹⁴⁸ de criminosos¹⁴⁹ de todo tipo¹⁵⁰.

    O nível de exploração da prostituição era tão alto, tão apelativo, a coroa portuguesa havia proibido a utilização, desde 1696, por escravas, de certas vestimentas e joias, cedidas pelos seus proprietários, a fim de diminuir o encanto dessas, cerceando então o proxenetismo¹⁵¹.

    Não se tolerava que, nos espaços públicos, sobretudo no período noturno, houvesse ajuntamento de escravos, sobretudo com o uso de atabaques¹⁵², que diziam que inflavam o espírito guerreiro deles; também se coibia a manifestação das suas práticas culturais¹⁵³, como se pode extrair, por exemplo, de normas do Código de Postura de Porto Alegre, na Província do Rio Grande do Sul:

    Artigo 48 - São proibidos os zungús e batuques. Os moradores das casas, onde eles se fizerem, ou chefes dos mesmos zungús serão multados em 10$ ou 10 dias de cadeia.

    Artigo 122 - Ficam proibidos os cambombes ou batuques, e danças de pretos na Várzea, chácaras ou noutro lugar. Pena de 16$ de multa ao dono da casa ou chefe de batuque, e sendo escravo 25 açoites¹⁵⁴.

    Também não se admitia, nas tabernas ou vendas (e estabelecimentos afins), o ajuntamento e a permanência de escravos¹⁵⁵, nem se tolerava a realização das suas danças rituais¹⁵⁶. A prática coletiva dessas manifestações – denominadas pela legislação da época – era tolerada em alguns dias festivos do ano, mas, claro, de forma controlada¹⁵⁷.

    Como se pode observar, as vendas, locais de lazer que funcionavam à noite, eram vistas com muito maus olhos não apenas pelas autoridades públicas, mas também pelos contemporâneos, por representar um local de ajuntamento do que aquela sociedade via como a sua escória¹⁵⁸, razão pela qual existiam severas proibições paras esses ajuntamentos¹⁵⁹:

    Art. 47 – todo dono de venda, taberna, botequim, ou casa pública que consentir em sua loja escravos entretidos em jogos, rifas, e danças que corrompem o bom regime que tais indivíduos devem ter, será multado em seis mil réis, e na reincidência trinta mil réis, e se continuar a dupla pena e quinze dias de cadeia, pertencendo à Patrulha de Polícia¹⁶⁰ que verificar a infração deste artigo, a metade das multas pecuniárias, nele impostas¹⁶¹.

    Ou seja, a vida noturna, nas cidades do Império, estava sob intenso e rigoroso controle, sobretudo em relação às atividades e movimentações de escravos, os quais eram vistos com um real problema de segurança pública, não apenas pelo risco de insurreição (como ocorrera na cidade de Salvador, no dia 25 de janeiro de 1835¹⁶²), mas porque não se podia tolerar as fugas e os crimes praticados pelos cativos, que compunham um grande percentual da população em muitos municípios brasileiros¹⁶³.

    As festividades na cidade, assim como toda vida dos seus habitantes, estavam sob rígida fiscalização por parte das autoridades públicas¹⁶⁴. A regulamentação destas celebrações alcançava até mesmo aspectos minuciosos, sendo necessária a obtenção de autorização administrativa para soltar fogos¹⁶⁵, para realização de danças¹⁶⁶ e, inclusive, para organizar detalhes dos eventos religiosos públicos¹⁶⁷.

    Existiam festividades que buscavam romper com este estrito controle realizado pelas autoridades públicas¹⁶⁸, sobretudo aquelas ligadas às celebrações carnavalescas¹⁶⁹, as quais tentaram cercear e limitar a sua realização, mas sem muito êxito¹⁷⁰. O carnaval passou a constituir uma exceção ao controle do poder público quando ele deixou os salões, com seus bailes de máscaras, e passou a cair no gosto da população, por volta de meados do século XIX, tomando conta das ruas das cidades¹⁷¹.

    Era o caso da folia denominada de Entrudo¹⁷², que por afrontar a ordem pública e os bons costumes, já era mal visto pelas autoridades, pois envolvia um imenso mela-mela que tomava conta das ruas das cidades¹⁷³. Os divertimentos carnavalescos populares, durante os dias de folia, com batalhas de arremessos dos populares limões de cheiro¹⁷⁴ entre os foliões e transeuntes e nas casas, contavam inclusive com escravos nas ruas participando dessa manifestação popular¹⁷⁵:

    O entrudo será ao longo do século XIX condenado, considerado como um evento escandaloso, indisciplinado, causador de desordens e moléstias, ofensivo à religião, principalmente pela imprensa e camadas mais abastadas da sociedade. A legislação se preocupará, principalmente, em acionar mecanismos que impedissem a realização do festejo, ou seja, estabelecimento de multas e penas, proibição de venda de instrumentos próprios para a realização do festejo¹⁷⁶.

    Ou seja, a autoridade municipal almejava não apenas manter a ordem e a segurança pública dos habitantes, pelo exercício dos controles sobre os festejos, mas também deter poder sobre costumes e a vida dos citadinos¹⁷⁷. Eis o que dispunha a Postura municipal de Curitiba, de 1861, sobre os limões de cheiro e o entrudo:

    Art. 86. É proibida a venda de limões de cheiro pelo entrudo, assim como os mais jogos deste: os contraventores multa de 5$000 e de serem inutilizados os limões¹⁷⁸.

    No mesmo sentido, já havia estabelecido a proibição ao festejo do entrudo pela Câmara de Manaus:

    Art. 104 - A ninguém é permitido andar pelas ruas, e lugares públicos jogando o entrudo, nem das casas lançar coisa alguma sobre os viandantes, sob pena de incorrer cada um dos infratores na multa de vinte mil réis, ou oito dias de prisão.

    Parágrafo único. São livres as mascaradas e danças próprias do tempo do carnaval, mas de forma que não ofendam a moral, nem perturbem a tranquilidade pública, e comodidade dos habitantes¹⁷⁹.

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